terça-feira, 14 de novembro de 2006

Homenagem a meu pai

Na remota década de 50 do século transacto, Álvaro vivia em Queluz com sua mulher, Aurora, e o filho de ambos, Francisco, este ainda a dar os primeiros passos. As dificuldades eram mais que muitas e as perspectivas menos que poucas. Ouviu-se, então, o chamamento africano, e Álvaro rumou, com mulher e filho, para a então remota cidade de Luanda, que ficava a 17 dias de barco, numa viagem em que não escassearam as atribulações.
Francisco foi crescendo num ambiente em que os pais – sobretudo Álvaro, sempre mais interventivo e assertivo – lhe transmitiam um conjunto de princípios e de valores que só mais tarde começaram a ser entendidos na verdadeira plenitude do seu significado intrínseco.

Para não vos incomodar mais com historietas estéreis, invoco então apenas três dos incontáveis momentos que retenho das conversas com meu pai. Elenco-os por ordem cronológica, não pela hierarquia da importância que possam encerrar.

Numa conversa a três – mãe, pai e filho –, Álvaro disse a Francisco não recear que este andasse com más companhias, porque a obrigação de Francisco seria a de trazer os maus exemplos para os caminhos do bem. Falou então em coisas à época tão herméticas para mim, como a missão que estava cometida a todos os homens livres para apontarem o rumo dos bons costumes aos seus semelhantes, em ordem a que pudesse ser construído um Templo no seio do qual cada um pudesse encontrar-se consigo próprio e com os outros, no respeito pela fraternidade. E lá foi acrescentando, perante a perplexidade de Francisco, que tinha aprendido aquilo com um homem de estatura intelectual invulgar, chamado Norton de Matos que, ao que fiquei a saber, era tio de uma tia minha.

Um ou dois anos volvidos, Francisco começou a fumar, buscando assim uma forma de afirmação perante os pais de sua namorada, que o consideravam imaturo. Mas Francisco escondia ciosamente de Álvaro as provas do vício, até que um dia, inadvertidamente, entrou em casa com um maço de cigarros no bolso transparente de uma camisa.
Quando Francisco reparou no lapso, tentou emendá-lo e dirigiu-se com celeridade à casa de banho. No momento em que escondia no bolso opaco das calças a “prova do crime”, Álvaro disse-lhe, do outro lado da porta: “Não vale a pena esconderes os cigarros. Comecei a fumar com a tua idade. Estou arrependido, mas não consigo voltar atrás. E por isso não tenho moral para te condenar. Os exemplos transmitem-se por acções concretas e não por palavras vadias. Fuma e fica em paz.”.
Abrindo receosamente a porta da casa de banho, por recear que aquelas palavras encerrassem uma cilada, Francisco estacou frente a Álvaro, que lhe sorria, dizendo: “Meu filho, devemos contribuir para a construção de um mundo mais tolerante, aceitando as diferenças, mas teimando para que o nosso exemplo possa ser seguido e multiplicado. Sabes quem me ensinou isto? Norton de Matos.”. Foi a segunda vez que ouvi aquele nome.

Mas Álvaro, apesar das suspeitas de Aurora, de quando em vez, à noite, pegava numa linha e em anzóis e anunciava que ia pescar. Claro que Aurora pensava que a pesca tinha mais a ver com carne do que com peixe, até porque meu pai raramente regressava com algo que pudesse constituir um álibi inquestionável. Numa dessas noites, Álvaro convidou Francisco a acompanhá-lo. E lá fomos para uma praia deserta, a duas vintenas de quilómetros de distância.
Álvaro iscou o anzol, arremessou a linha e distanciou-se. Permaneceu calado e exortou-me a não quebrar o silêncio.
Mas, a certa altura, Francisco não aguentou mais. “Tenho fome!” – murmurou, timidamente. Álvaro foi ao farnel, retirou duas generosas postas de bacalhau e uma dúzia de batatas com casca, colocou tudo dentro de uma panela que encheu de água do mar, fez uma fogueira e a tão esperada refeição começou a ser cozinhada.
Todavia, Álvaro era uma caixa de surpresas. Foi buscar uma toalha de mesa cuidadosamente dobrada, que cuidadosamente desdobrou e colocou sobre a areia. Duas facas, dois garfos e dois guardanapos de pano completavam o cenário.

Era uma noite ferozmente tropical, em que a Lua fazia multiplicar, no espreguiçar remansoso das ondas, uma miríade de minúsculos corpos luminosos, símbolos da vida que o mar encerra. Atrás de nós erguia-se uma falésia rochosa, inclinada, de onde, de repente, começaram a surgir uns repugnantes e bem encorpados caranguejos brancos, cujo habitat era aquele. E, descaradamente, ignoraram a nossa presença, dirigindo-se para o local preparado para o repasto, apoderando-se dos talheres, que a custo removiam para os buracos onde habitavam.

Indignado, mas com medo daqueles seres que mais pareciam frutos de um filme de qualquer Spielberg de ocasião, revoltei-me com o furto e insurgi-me contra meu pai, por nada fazer para o evitar. Extasiado perante a cena, Álvaro retorquiu-me: “Deixa-os em paz. E admira a coragem deles, que enfrentam o perigo para conseguirem objectos de que provavelmente necessitarão para a construção da casa deles. Nós não precisamos dos talheres. Eles, pelos vistos, sim. Podemos comer à mão. É que também foi à custa de muita coragem que alguns homens conservaram até hoje símbolos que significam coisas que eu gostaria que tu um dia mais tarde conhecesses e de que te apercebesses. Norton de Matos ensinou-me alguns.”

Francamente, e aproveitando o facto de a cena se desenrolar na praia, permitam-me que desabafe: era muita areia para a minha camioneta. E mais ainda quando, logo de seguida, ao sentir a linha de pesca a mexer-se convulsivamente, anunciei a meu pai que, por fim, havia pescado algo, ele se lhe dirigiu, recolheu o imprevidente peixe, desembaraçou-o do anzol e devolveu-o à água.

Por instantes temi que Álvaro tivesse ensandecido. Com o mesmo sorriso, adiantou-se: “Julgavas que eu vinha à pesca? Não! Este é apenas um pretexto para sublimar o silêncio, para comungar com a natureza, para apreciar a sua perfeição e para me aperceber das minhas imperfeições.”. Pretensiosamente irónico, murmurei entre dentes: “Se calhar esse tal Norton de Matos também era pescador!...”
- Não – elucidou Álvaro. Era construtor.
- Da construção civil? – perguntei, incrédulo.
- Não. Da construção de coisas de que talvez um dia possas aperceber-te.

Assim se encerra este tríptico. Um triângulo traçado com linhas talvez metafóricas, mas nem por isso menos reais.

Autor: Álvaro