segunda-feira, 25 de dezembro de 2006

Um conto de Natal

Pegadas na neve

O céu cinzento cor de chumbo tomara a cor branca como se fosse o tecto de uma sala imensa do tamanho do horizonte, toda atapetada com um espesso manto de neve alva onde enquanto caminhava em passos lentos e firmes, uma figura encolhida do frio imprimia os passos que dava.

Dirigiu-se à janela da primeira das muitas casas que ladeavam a avenida, onde luzes trémulas de Natal enfeitavam as árvores que dançavam ao som do vento, que lhes arremessava pequenos flocos brancos, saturando-lhes as pernadas que sacudia em golpes de tempestade.
Espreitou pela vidraça. Um sorriso ondulou-lhe os lábios confundindo-os com os longos cabelos brancos que se fundiam na barba da mesma cor. Lá dentro uma criança brincava junto à lareira, iluminada por esta, a que se juntavam os olhares dos pais como que a acariciá-la.

Aquecido na alma com aquele quadro familiar, seguiu adiante onde através de uma janela pequena, uma luz ténue fazia-se sentir num apelo que atravessava a vidraça embaciada. Uma figura pequena e dobrada pela idade aconchegava-se envolta por um xaile de lã que denunciava os anos de uso, mal cobrindo o magro corpo que se aninhava junto ao braseiro. Este solidário, aquecia a cafeteira de café, que lhe servia de consolo e de companhia. Os olhos daquele homem, que antes sorriam, agora juntavam-se tristes à solidão. As mãos dedilhavam os botões que lhe fixavam o manto do corpo, que agora retirava e colocava na maçaneta da porta daquela casa, onde batera antes de se afastar.

Continuou o caminho, no mesmo silêncio dos que caminham sós, até que um barulho de vozes lhe interrompeu o pensamento. Dirigiu-se aonde vinham as vozes, que mais perto, denunciavam uma discussão. Um casal sentado à mesa, mantinha os pratos vazios apesar da mesa farta, anunciando que era a alma a quem faltava o alimento que o desentendimento recusava. Ao lado da janela por onde assistia, num pequeno jardim resistiam as últimas rosas onde gotas de orvalho se transformaram em pequenos diamantes que o frio fabricara. Rapidamente colheu duas delas, deixando-as junto da porta do casal com dois pequenos bilhetes de papel que escrevera de improviso na soleira da porta. Tocou a sineta e regressou apressado ao caminho, enquanto as vozes se calaram na surpresa do toque.

De volta ao silêncio da caminhada, continuou lento, olhando para uma janela, esta um pouco mais iluminada que as restantes. Espreitou furtivo para o candelabro que iluminava intensamente um pequeno oratório, onde uma mãe ajoelhada erguia as mãos, como se buscasse a toalha de linho invisível que lhe enxugasse as lágrimas que lhe corriam pelas faces. Adiante, sentado estava um pai de cabeça tombada que encostava às mãos, que tomara nas suas, de um filho enfermo e febril. Cá fora a expressão do rosto daquele homem fazia coro com as daqueles pais que observava, enquanto colocava as palmas das mãos abertas sobre as vidraças, como se projectasse a bênção que a sorte desconhecera até então e que o sorriso inesperado da criança anunciava agora discreto.

A volta ao trilho por onde viera fez-se serena, como mansa era a neve que cobria tudo por onde passara e seguia agora. Um choro baixo mostrava-se discreto, escutado talvez, apenas por aqueles ouvidos treinados pela experiência de ouvir os que clamam em silêncio. Assomou à janela que só ouvindo se apercebia da pouca luz que as vidraças teimavam em deixar ver. Dois rostos ladeavam uma mesa vazia onde uma jarra de flores tomava digna, o lugar que a refeição não ocupava, deixando espaço a dois pares de mãos que pousavam solidárias sobre a toalha branca como a neve. As vestes eram simples e os remendos gritavam mudos de orgulho os cuidados que recebiam apesar do uso, agora menos intenso na actividade, provavelmente por falta de trabalho que atormentava quem aquelas vestiam. Apressado, o homem retirou dos bolsos um embrulho enrugado, onde guardava a refeição seguinte que contava como sua e que o corpo agora recusava. Juntou-lhe algumas moedas que recebera como pedreiro livre e pedinte e deixou no parapeito da janela onde batera no momento de se afastar.

Continuou a caminhar, agora dirigindo-se a um vulto que o acaso lhe fizera encontrar, encolhido na soleira de uma porta, por onde o calor se deixava escapar sorrateiro sob a porta pesada duma casa igualmente imponente e aquecida, reforçando o calor que pedaços de cartão a custo asseguravam delicadamente, como se embalassem o mais frágil dos seres. Com o cuidado de não acordar o homem que dormia quase inconsciente no frio, tirou-lhe as roupas velhas e o calçado roto que rápida e furtivamente trocou pelas suas, como se na troca ganhasse o melhor dos tesouros.

Voltou ao caminho que tomara antes, apoiado num bordão feito de madeira de acácia, perseguindo os passos que agora eram mais leves enquanto a iluminação de Natal se inclinava diante do brilho que levava nos olhos e o sorriso dos lábios calava o silêncio na noite e as mãos abertas acalmavam o vento e o frio. Olhava para si mesmo, feliz com os braços abertos de contentamento que a parca indumentária que agora tinha tomava lugar em vez das vestes vermelhas que usara como uniforme na noite de Natal. Não ia de trenó nem eram as renas que o transportavam. Era felicidade o que sentia enquanto a dava também aos outros. Era isso que o fazia sentir-se o verdadeiro Pai Natal em gestos e sinais que só ele entendia.

Autor: Sheikh

3 comentários:

Anónimo disse...

A beleza do texto, mostra a grandiosidade, da dádiva kuando advém dos nossos próprios corações.
Fez-me lembrar um pekeno trecho de outro texto igualmente belo, de Khalil Gibran k diz assim:
Então um homem opulento disse: “Fala-nos da dádiva.”

E ele respondeu:“Vós pouco dais, quando dais de vossas posses.
É quando dais de vós próprios que realmente dais.
Fico-me aki deliciada, na leitura de textos belissimos aki no Grémio

Ana Luar

Anónimo disse...

Assim também eu me acredito no Pai Natal...
Álvaro

Anónimo disse...

Nesta quadra em que somos ofuscados com o brilho do consumismo e dos metais, com a falsa luz, este texto sereno, livre, solidário, com uma enorme reflexão do que é o Natal nesta sociedade consumista, sózinha, egoísta, serviu-me muitas vezes de porto de abrigo para a minhas preocupações e inquietações, no entanto, cada vez que chegava ao fim da sua leitura, sentia-me rejuvenescido e voltava a acreditar que um mundo melhor é possível! Obrigado MQI! Saúde e Fraternidade!