Falar em liberdade é também recordar a história da Loja Estrela d’Alva; tendo erguido colunas no início do século passado, a sua narrativa cruza momentos marcantes da nossa história, onde se incluem as décadas de ditadura que culminam no 25 de abril de 1974, cujo cinquentenário hoje celebramos.
É neste contexto que vos trago algumas palavras condignas com esta solenidade; palavras de difícil traçado, por evocarem um passado que, pela minha juventude não experienciei, mas que vive no meu coração e no meu quotidiano, e se sustenta no exemplo de vida dos inúmeros Irmãos que hoje recordamos e homenageamos. É um recorte dessas memórias que vos ofereço hoje, para que as histórias de vida dos Irmãos que lutaram incansável e altruisticamente em prol da liberdade, não se percam nas páginas estéreis dos livros e permaneçam sempre vivas nos nossos corações.
Dos inúmeros Irmãos vivenciaram esses tempos, há dois nomes que hoje entendi relevar, pelo papel que desempenharam neste hiato democrático, os Nossos Irmãos Raul Wheelhouse e José Joaquim Pascoal Gomes.
Recuando ao turbulento ínterim do início da década de 30, com o Palácio Maçónico encerrado e os Maçons a viverem em semiclandestinidade, Raul Wheelhouse, médico e cirurgião no Sardoal, enquanto Venerável da Loja Estrela d’Alva, desenvolve profusa atividade Maçónica dentro e fora da Loja, com uma importante participação na fundação dos Triângulos do Sardoal e do Entroncamento.
Republicano convicto, e fervoroso ativista político, enquanto opositor à ditadura militar vigente, é mantido sobre apertada vigilância pela polícia de defesa política e social o que conclui na sua demissão forçada de médico do partido municipal e na sua posterior prisão em 11 de março de 1933; a sua libertação precoce, serve apenas de preludio para o seu julgamento e condenação ao degredo, no forte de São João Batista em Angra do Heroísmo.
Em 1935, com a Maçonaria vetada à proibição e com o Palácio Maçónico usurpado pela Legião Portuguesa, Raul Wheelhouse regressa do exílio e retoma o seu Trabalho Maçónico como Venerável, cargo que desempenha até 1944. Manteve também durante inúmeros anos consultório na sua casa do Sardoal, sendo ainda hoje recordada a sua grande competência, altruísmo e generosidade para com aqueles que não tinham capacidade económica para pagar os honorários que lhe cabiam, reduzindo-os ou deles abdicando.
Em 1945, e com o fim da segunda grande guerra, Salazar anuncia a dissolução da Assembleia Nacional e a convocação de colégios eleitorais, com o intuito de mostrar no plano internacional o suposto carácter democrático do regime; aproveitando esta aparente abertura, um grupo de republicanos, do qual faz parte Raul Wheelhouse, reúne a 8 de outubro de 1945 no Centro Escolar Republicano Almirante Reis, plenário que mais tarde resulta na criação do Movimento de Unidade Democrática, MUD.
É nesse mesmo ano que primeiramente ouvimos falar de José Joaquim Pascoal Gomes, à época sem qualquer filiação Maçónica, mas cuja recusa persistente em subscrever qualquer lista de apoio ao governo de Salazar, o faz abandonar o serviço publico e filiar-se também no MUD. No ano subsequente, o Partido Socialista Português reorganiza-se sob a designação de Partido Socialista - Secção Portuguesa da Internacional Operária (PSP-SPIO), e vê Raul Wheelhouse ingressar como presidente da sua comissão executiva, cargo que exerce até 1948.
Viviam-se tempos que exigiam aos Maçons cuidado nos métodos e frugalidade na matéria escrita, e terá sido nesse período que Raul Wheelhouse não só exerce diversos cargos no Grande Oriente Lusitano Unido, como facilita o seu domicílio para a realização de reuniões dos distintos órgãos da Obediência. A 23 de outubro de 1947 é iniciado na Loja Estrela d’Alva, José Joaquim Pascoal Gomes, à data composta por cerca de trinta Obreiros.
Em 1949, Raul Wheelhouse e Pascoal Gomes tomam parte ativa na candidatura à presidência da república do general Norton de Matos; em 1958, enquanto apoiante de Arlindo Vicente, Pascoal Gomes é detido pela PIDE e mantido recluso em Caxias. Nesse mesmo ano, Raul Wheelhouse participa na candidatura do general Humberto Delgado à presidência, dando-lhe posterior guarida na sua casa do Sardoal aquando da sua perseguição pela polícia política, pouco antes de este ser forçado ao exílio.
Liberto do seu cárcere, os tempos obrigam a que Pascoal Gomes desempenhe uma multiplicidade de cargos em Loja; e é enquanto intendente dos banquetes, que assume a incumbência de assegurar a realização das reuniões de Loja, por à época estas tomarem frequentemente, e por precaução, a forma de um almoço mensal sob um qualquer pretexto profano. Esse desassossego, a bem do anonimato, conduz os Irmãos do Restelo a Linda-a-Velha, passando pelo estabelecimento do Garrido Alfaiate nos Restauradores, pelo Restaurante da Quinta de S. Vicente, pela Pastelaria Ferrari, e mesmo pelo domicílio de Raul Wheelhouse, no Sardoal.
Nesse tempo e geografia, Pascoal Gomes recorda três figuras notáveis que refere terem marcado a sua vida profana e Maçónica; o Dr. Ramon de La Féria, o Dr. Luís Rebordão, à época Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano Unido e o Dr. Luís Dias Amado, e enaltece ainda as relações de grande proximidade entre a sua Loja Estrela d’Alva e as Lojas Pureza, Simpatia e União e Liberdade. A partir de 1966 passa a integrar os órgãos do, à época denominado Asilo de S. João, até que entre 1970 e 1973 passa a membro efetivo da respetiva direção, período coincidente com a transição para a atual denominação, de Internato de São João.
Em torno de 1972, e ainda que com profundas reservas do regime, Raul Wheelhouse é finalmente autorizado a voltar a exercer a Medicina no serviço público, integrando a Casa do Povo do Sardoal.
Chegados a 25 de abril de 1974, Pascoal Gomes encontra-se afastado dos Trabalhos de Loja, por estar em tratamento no estrangeiro para uma grave enfermidade, e viu-se privado de testemunhar, o que o próprio denomina de “a gloriosa manhã da libertação da nossa Pátria amada”, ausência que muito o marcou.
Já em plena liberdade, a 30 de novembro de 1974 é formalmente entregue no Grande Oriente Lusitano o quadro da Loja Estrela d’Alva com 14 obreiros e a 11 de Dezembro desse mesmo ano realiza-se neste Palácio a primeira Sessão em plena liberdade.
Com o regresso dos Trabalhos Maçónicos à luz do dia, Pascoal Gomes participa ativamente na reconstrução deste Palácio, contribuindo com inúmeros recursos pessoais e materiais. Parte para Oriente Eterno em 18 de janeiro de 2000, como homem livre.
Não vivemos de memórias passadas, mas honramos o nosso passado e neste dia em que evocamos os 50 anos do 25 de abril, sobrelevo que cabe a nós maçons, mais do que nunca, a árdua, mas nobre tarefa de perpetuar esse legado, recordando hoje e sempre todos os que lutaram e continuam a lutar prol da liberdade.
Uma bela peça de arquitetura.
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