Ora vejamos: O conceito de Democracia teve a sua origem na palavra grega demokratia, composta por demo - “povo” - e kratos - que se traduz como “poder” ou “governo”. Neste complexo sistema político, o povo fica adstrito à participação política que no fundo é o que motiva e justifica o próprio poder político. Democracia, assim, representa e pretende alcançar uma “unidade plural” - o que por si só, é claramente paradoxal. Representa uma unidade, comum e uniforme, que resulta da pluralidade de consciências e opiniões. São a diferença e a individualidade a produzir a semelhança e o comum.
O conceito de Democracia, como sistema político, surgiu por volta do Séc. V a.C., na cidade de Atenas. Representava uma alternativa à tirania, conceito definido por Platão e Sócrates como sendo a marca da ilegalidade, ou seja, a violação das leis e regras instituídas que conduziam à quebra de legitimidade para governar.
Não obstante, Platão, na sua obra República, é muito crítico do modelo de democracia ateniense da época, por não ser um regime democrático na sua plenitude de direitos e deveres, uma vez que não era plena, pois era vedado às mulheres, aos metecos (os estrangeiros) e ainda aos escravos o direito a eleger e a ser eleito. Platão também já antevia a democracia como permeável à corrupção, tal como a vemos na democracia moderna.
Platão considerava este modelo “o governo do povo”, mas usava a palavra “povo” em sentido pejorativo, pois para ele o povo era facilmente influenciado por características irrelevantes, como a aparência dos candidatos, e preconizava que só os filósofos, por terem uma compreensão mais profunda da realidade do que as pessoas comuns, estavam preparados para governar.
Platão dizia que a democracia era uma forma corrupta de governo. O idealismo platónico era muito acentuado no tocante ao modelo político de democracia que defendia e que se baseava na ideia de que só os filósofos, porque falam a verdade e amam a sabedoria, estavam preparados para governar.
A ideologia platónica convoca o perigo da democracia ateniense pelo facto de esta admitir opiniões e paixões desprovidas de saber filosófico e de relativizar a verdade e vencer pelo argumento e pelas paixões, tal como os que se limitam a dar opiniões. A estes Platão chamava Sufistas, e aos que querem convencer pelo argumento e que não se preocupam com a verdade ou com o saber e aos que opinam para convencer as outras pessoas e que amam apenas a opinião, não possuindo o conhecimento e o saber dos filósofos, para Platão são os Filodóxos.
Não obstante os mais de dois mil anos que que nos separam, e as idiossincrasias respeitantes à capacidade de eleger e ser eleito muito restrita, Platão tinha uma visão muito crítica e muito próxima do modelo de democracia moderna, pois já antevia os perigos da corrupção e da disseminação através de fake news, tal como hoje somos confrontados no nosso quotidiano.
Aqui chegados urge perguntar. Apesar dos vícios apontados por Platão relativamente ao modelo de democracia ateniense e que estão patentes cada vez mais na nossa Democracia Moderna, haverá um outro melhor e que mais afirme direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.? Infelizmente, não existe outro melhor, como Churchill muito bem sintetizou numa só frase. Ora toda a filosofia pós-platónica liga a democracia, no desenvolvimento do seu conceito, à tolerância.
Convém, no entanto, que comecemos por definir o termo “tolerância”, que deriva do latim tolerate, que significa “suportar” ou “aceitar”, e cuja evolução recriou um conceito diverso, complexo e, por vezes, contraditório.
Tolerância é o ato de agir com condescendência e aceitação perante algo que não se quer, algo que não se compreende ou algo que não se pode impedir, mas que, ainda assim, estamos dispostos a aceitar.
A falta de tolerância leva às guerras. No entanto, e ao mesmo tempo, não devemos - nem podemos – tolerar as guerras. A falta de tolerância leva à discórdia, e ainda assim, é da discussão civilizada que nasce o consenso e o entendimento. Devemos defender tolerância a mais ou tolerância a menos? No fim, de que vale realmente a tolerância, se esta constitui um paradoxo em que parece ser a semente do entendimento e simultaneamente do próprio conflito?
Os limites da tolerância parecem estar encerrados na própria tolerância. No fundo, é como se alguém nos pedisse para aceitarmos de forma cega e superficial a sua opinião e ainda assim, sabendo que não o devemos fazer, aceitássemos fazê-lo. É uma imposição intelectual ingrata e desconfortável, porque sabemos quem somos, ou, pelo menos, o que queremos, e, no entanto, existe aquele momento em que temos de abrir mão das nossas crenças e ideias, para tolerar umas novas, por vezes completamente alheias e opostas às antigas. Não se trata de integrar, mas, uma vez mais, tolerar. E isto, veja-se, por nossa própria escolha livre.
Não estamos a discutir compaixão, nem tampouco entendimento ou reconsideração. Estamos a falar de aceitar pelo mero facto de aceitar. Por exemplo: sabemos que a Liberdade - tema que nos é tão caro - é um valor que deve ser respeitado ao mais alto e íntimo nível, mas ainda assim sabemos que não é um valor absoluto, e temos consciência dos limites em que a mesma se contém: “a minha liberdade termina onde a liberdade do outro começa”. Ora a tolerância também não pode ir muito mais além. Não é aceitável algo como: “eu tolero o que tomas como absoluto, apesar de não concordar, aceitar ou acreditar nisso”. Aqui, a Tolerância e o acto de tolerar começa a parecer extremista, forçado e desnecessário.
Tolerância começa a parecer uma imposição idealista sem uma vontade de verdadeiro conhecimento e compreensão. Tal conceito - ou ideal - não pode manchar os nossos objetivos e visões individuais e para a própria humanidade. Sabemos, todos nós, onde estamos e para onde queremos e ambicionamos ir. A tolerância tem de ser contida - talvez corrigida – e quando ultrapassar aqueles limites tem de ser rejeitada pura e simplesmente. A tolerância é assim um pilar fundamental da capacidade de uma sociedade global para coexistir harmoniosamente, respeitando as diversas crenças e promovendo a compreensão mútua: esta afirmação provém da Declaração de Princípios sobre a tolerância aprovada pela UNESCO EM 1995, e é a forma correcta de definir o correcto dever de tolerância.
Portanto a tolerância é como a liberdade, que não é um valor absoluto, mas relativo, isto é, com limites (eu não posso tolerar aquilo que viola os meus valores mais perenes), e é útil no sentido em que eu, aceitando a priori um ponto de vista alheio, posso daí partir para a sua refutação.
Isto tem toda a aplicação no trabalho maçónico. Não adianta contrariar logo o meu “irmão” porque me expôs uma conclusão para mim inaceitável. Tenho, com toda a tolerância, de ouvir o caminho que o levou a essa conclusão, para refutar o preciso ponto onde divergimos.
Tal método é essencial para o trabalho em Loja, e este conceito de tolerância é seguramente aquele a que se referem todos os catecismos maçónicos, quando – frequentemente – usam o termo. A discussão em Loja é profícua até ao ponto onde os Irmãos concordam… em discordar. Entendo que em Loja não é admissível o caminho: “- Não discuto contigo porque não estás de acordo com o que eu digo ou penso, logo não és igual a mim.” A diversidade e a complementaridade são a riqueza de uma Loja maçónica, que não pode ser escamoteada.
E isto é tanto a riqueza de nós, maçons, quanto é certo que, se este fosse o caminho do fórum político-social profano, o método de trabalho de quem quer alcançar o poder (económico, político, social), o conceito de democracia andava mais próximo, e não estava sujeito às críticas, de Platão. Mas nesse caso - lá está - estávamos no mundo ideal que ele preconizava: só os que falam a verdade e amam a sabedoria devem governar.
Não vos trouxe estas reflexões para resolver o paradoxo, porque não sei fazê-lo. Trata-se, apenas, de o apresentar enquanto o nó górdio das sociedades dos nossos dias, para suscitar uma reflexão.
Autor: Bocage
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