Julgo que será consensual que o órgão que mais distingue o ser humano dos restantes seres vivos é o cérebro. De facto, na natureza é fácil encontrar animais que nos são superiores em muitos aspectos. Não nos comparamos em força a um elefante, em velocidade a uma chita, em audição ou olfacto a um cão e em acuidade visual a um lince, mas nenhum outro animal tem a nossa capacidade de raciocínio, de elaboração de linguagem ou de cálculo abstracto.
Uma vez que a natureza nos dotou com um cérebro acima do vulgar entre todas as espécies, parece-me que o mínimo que poderemos fazer será usá-lo. É isso que faz de nós animais racionais. Ou seja, sermos racionais não é um estatuto, mas uma obrigação natural.
A aplicação da racionalidade na análise da realidade implica inevitavelmente o recurso ao método científico. Quero no entanto deixar desde já bem claro que considero a ciência como uma ferramenta de trabalho na busca do conhecimento e não como um fim em si mesmo e ainda menos como uma forma alternativa de credo.
No método científico, há uma pedra basilar: o cepticismo. De facto o cepticismo, não é uma doença nem uma forma de antipatia, mas o ponto de partida para a construção de um raciocínio lógico e coerente. Respeito a opção daqueles que preferem acreditar em vez de pensar, mas para mim esse caminho não serve. Pessoalmente, assumo não só a minha formação científica como procuro sempre guiar-me por ela na minha forma de pensar.
No entanto, tenho de admitir que a crença tem uma vantagem inegável sobre a ciência. Enquanto esta é cansativa na sua dúvida permanente e na sua busca constante por mais e melhores respostas para as questões postas pela realidade, a crença não dá trabalho e é uma forma muito reconfortante de ter “certezas”. Mas ao pouparmos o esforço do cérebro, em vez de conseguirmos uma imagem tão objectiva quanto possível da realidade, ficamos submetidos às ideias e fantasias de outros, às superstições e aos preconceitos.
Na verdade são poucas as certezas absolutas que a ciência nos dá. A razão é óbvia: a ciência não é um livro sagrado, mas um método de trabalho. Talvez a única certeza seja a de que temos de manter sempre o espírito aberto às novas descobertas e estarmos preparados para, perante uma prova de que as nossas teorias estão erradas, as substituir. É que não são os factos que se têm de adaptar às nossas ideias, mas estas aos factos desde que devidamente comprovados.
A ciência é um livro aberto. Um livro de que talvez nunca se escreva a última página. E é isso que a torna mais fascinante para quem gosta de desafios e de dar trabalho aos neurónios.
Penso ter deixado clara a forma como encaro a ciência.
Passo então à questão que levanto no título desta prancha: Serei ateu?
A pergunta é mais séria do que possa parecer. É verdade que sou uma pessoa de ideais e de convicções, mas pelas razões que antes apresentei, tento nunca ser obstinado ou cego perante a realidade.
Penso que baseados apenas numa lógica racional, não nos é possível concluir que existem seres sobrenaturais. Mas também não podemos provar que não existem. E ao falar de seres sobrenaturais incluo deuses, fadas, duendes, anjos, demónios, o Pai Natal, o Coelhinho da Páscoa e tantos outros. Estou convencido de que todos eles são apenas produto da extraordinária e inesgotável imaginação de gerações sucessivas de seres humanos.
Apercebemo-nos de que somos mortais – inventamos seres imortais.
Percebemos que a nossa força é limitada – inventamos o Hércules, o Super-homem, o Homem Aranha e feiticeiros que levantam montanhas com uma varinha mágica.
O nosso conhecimento é reduzido – inventamos seres omniscientes.
Ou seja, compensamos as nossas limitações inventando seres que as não tenham.
Será o momento de responder à minha pergunta.
Se por ateu entendermos alguém que não acredita em quaisquer deuses ou outros seres sobrenaturais, então sou indiscutivelmente ateu. Mas se para ter essa classificação se exigir também uma certeza absoluta e baseada em provas incontestáveis de que tais seres não existem, então tenho de admitir que não me poderei assumir como tal. Não por cobardia, mas por humildade. Na prática resolvo este dilema dizendo: «sou ateu até que alguém me prove racionalmente que existem seres sobrenaturais».
Devido à sistemática campanha dos cleros das diversas religiões, palavras como “ateu” e “ateísmo” ganharam uma conotação negativa. Para muitos, os ateus são alguém que odeia Deus e portanto adora Satanás, não percebendo que não se pode odiar nem adorar o que se considera não existir. Para tais pessoas o ateísmo é considerado sinónimo de imoralidade, de total insensibilidade e de toda a espécie de vícios.
Mas será o ateísmo um perigo para a humanidade como tentam fazer crer?
A lógica dos que afirmam que sem religião o mundo entraria no caos é simples: sem o medo do castigo divino as pessoas fariam o que lhes apetecesse, o mesmo é dizer que só praticariam o mal. Discordo totalmente dessa perspectiva por várias razões.
Antes de mais, porque me parece evidente que as religiões têm fomentado muito mais ódios, violência e guerras, do que o amor, a paz e a tolerância que todas dizem defender. Até porque cada uma diz que só ela defende de facto esses valores.
É verdade que nos livros sagrados das religiões monoteístas se encontram versículos em que se proclamam a tolerância e o amor ao próximo. No entanto, nesses mesmos livros também se encontram claramente expressos pensamentos de sinal contrário, em que a destruição dos infiéis é um dever do verdadeiro crente.
Concretizando um pouco: um seguidor de uma determinada religião acredita que será castigado pelo seu Deus se matar um seu correligionário. Mas tudo muda de figura no caso de ser um “infiel”. Quanto sangue foi derramado pelo “povo eleito” em nome de Jeová na conquista da “Terra Prometida”? Quantas vidas foram ceifadas sem dó nem piedade em nome de Deus pelas Cruzadas ou pela Santa Inquisição? Quantos inocentes já foram sacrificados pela Guerra Santa dos fundamentalistas islâmicos?
O mais perverso de tudo é que, nestes casos, os torturadores e assassinos não só se sentem plenamente justificados como se acham uns heróis com lugar assegurado no Paraíso. São conhecidas as declarações de membros do clero e de outros dirigentes muçulmanos que prometem aos “mártires” que se suicidam com bombas no meio de “infiéis” não só esse Paraíso como um prémio suplementar: 70 virgens para cada um.
Este prémio levanta naturalmente outras questões como: alguém perguntou alguma coisa às tais virgens? E se for uma mártir também tem direito a 70 homens sexualmente inexperientes?
Estou plenamente convencido de que não haverá motivos para recear o caos por uma imaginária ausência de religiões. Pelo contrário, se as pessoas estiverem submetidas a leis baseadas num credo religioso, não terão liberdade de pensamento e estarão à mercê dos ditames de quem se arroga no direito de ser o verdadeiro intérprete da vontade divina. Uma sociedade governada por um clero que decide o que está certo e o que está errado, é certamente uma sociedade amordaçada e onde mais do que a fé, reinará o medo.
Por outro lado, parece-me que, mais importante do que um cumprimento do dever por medo do castigo divino, será que as pessoas compreendam que uma vida harmoniosa em sociedade só é possível num regime democrático, onde cada um pode pensar como muito bem entender e não ser perseguido por isso. Um regime democrático pode ter muitos defeitos, mas, até que se invente algo melhor, é sempre preferível a qualquer ditadura.
Penso que as directivas para o comportamento humano não devem resultar de dogmas ou crenças, mas serem fruto de uma moral racional e profundamente humanista. Só esta proporcionará mais harmonia entre as pessoas de qualquer sociedade ou cultura.
A moral que defendo baseia-se num princípio elementar: não fazer aos outros o que não queremos que nos façam a nós ou aos nossos entes queridos. Mas também deverá buscar incessantemente os grandes ideais da humanidade e que se podem resumir na magnífica trilogia Liberdade, Igualdade e Fraternidade. Só com esses pilares poderemos criar um mundo mais justo, mais pacífico e tolerante.
Ora esta moral racional e global já existe e seria magnífico que fosse ela a governar o mundo: é a que resulta claramente do espírito da nossa Augusta e Sublime Ordem.
Autor: Carl Sagan
2 comentários:
Sou de uma familia italiana e como tal fui batizado na igreja catolica apostolica romana, frequentei durante muito tempo a igreja e segui seus ensinamentos que sempre me levaram a crer que Deus era meu grande inimigo um ser que me pune, me ameaça, me vigia. Bastaram-me alguns anos de leitura e minha ideia sobre religiao, Deus e crença se abalassem, de forma muito simples entrei em conflito pessoal, de um lado a imagem de minha mãe, me dizendo "a vida só é digna se seguida nos preceitos igreja catolica" e de outro lado minha pequena percepção de que essa mesma instituição deflagrou verdadeiros horrores para conseguir dinheiro e poder. Por fim, acho dificil acreditar que não haja uma força maior que nos rege, chame-a como bem entender, mas crer na instituição que se intitula unico caminho a salvação, disso me reservo o direito de não faze-lo.
Deus foi craiado pelo homem para controlar o homem.
como um garnde comico um dia disse "A little guy in the sky that sees every thing knows every thing even what you are thinking and in despite all of that he need your money"
creio que chegou a altura de fazer o que esta certo porque esta certo e nao por medo de "deus"!
A humanidade tem de ter fe em si nao em "deus".
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