quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

O Secretário

Sendo os primeiros reis portugueses analfabetos, foi-lhes necessário rodearem-se de pessoas da sua confiança para o exercício do governo do país. Vão surgir assim os cargos de Mordomo-Mor (uma espécie de Ministro do Interior), Chanceler-Mor (equivalente ao Ministro da Justiça), Monteiro Mor, Vedor, e, com D. Afonso III, o escrivão da puridade, que inicialmente era uma espécie de secretário ou escrivão, segundo a Wikipédia, mas que, a partir de D. Pedro I passou a ser o detentor do selo do camafeu, ou selo da puridade, que permitia autenticar documentos régios sem passar pela chancelaria. O escrivão da puridade foi, assim, uma espécie de primeiro-ministro.

Ainda que de configuração medieval, posto que a configuração do estado Moderno nasce com Maquiavel, Portugal teve governos desde o seu início. Segundo Viterbo, no verbete “puridade”, lê-se que “esta é o segredo íntimo de uma pessoa, principalmente real”, referindo que o escrivão da puridade correspondia ao que no tempo dos romanos se chamava “Conde dos Notários”, mas que naquelas épocas remotas correspondia ao cargo de maior poder do Estado. Segundo Sebastião César de Menezes, Bispo e Conde de Coimbra, o cargo de escrituração mor, nas cortes, além do privilégio e da dignidade, tem relação direta com o segredo, a confiança, e, de certo modo, contra a bajulação. Maquiavel escreve, em relação ao Príncipe: “De his quos a secretis principes habent”, ou seja, “poucos podem participar dos segredos da sua vontade”.

A palavra secretário, precisamente, tem origem no latim, onde encontramos as palavras secretarium/secretum, que significa lugar retirado, conselho privado; e secreta, que é: particular, segredo, mistério. Ora é a evolução semântica destas palavras que leva às significações de secretário/secretária de hoje.

Na Idade Moderna, o equivalente ao catual Ministro das Finanças era o Contador-Mor, funcionário da casa dos contos, responsável pela administração das receitas e das despesas públicas. Casa dos contos de onde deriva a nossa antiga unidade monetária de tradição popular, porquanto nunca teve formulação legal: o conto de reis. Ora na casa dos contos guardava-se o dinheiro em móveis próprios, que por isso tomaram o nome de
contadores. Então, quem era Chefe dos Contadores (funcionários que contavam) e tinha pleno acesso aos Contadores (os móveis) era Contador Mor.

Acontece que a contabilidade criativa e a manipulação das contas públicas não é um fenómeno recente. Convinha, por vezes, que as contas dessem resultados muito ou pouco diferentes da contagem real, e assim começou a ser pedido aos marceneiros que passassem a colocar nos contadores que manufaturavam esconsos e fundos falsos, chamados segredo, destinados a guardar os documentos referentes à contabilidade paralela verdadeira. Como tal, o nome da peça de mobiliário correspondente evoluiu de Contador – que já ninguém usa – para Secretária – peça onde está ou pode estar o segredo, ou que tem um segredo.

Continuando a evolução semântica, aquele que se sentava na Secretária do seu Senhor (primitivamente o Rei, depois o Chefe, o Patrão, ou simplesmente o superior hierárquico) era o Secretário, ou se mulher, a Secretária. Etimologicamente, pois, Secretário é aquele em quem se tem confiança para deter segredos, aquele em quem se pode confiar.

E deste modo, no último estádio da sua evolução semântica, Secretário ou Secretária passa a ser um cargo ou profissão. Nos Estados Unidos, os Ministros ainda se chamam Secretários, o que pretende inculcar ao Povo a ideia de que são capazes para o exercício dos segredos inerentes ao cargo de governantes que desempenham. Na Europa continental, são os Secretários de Estado que detêm os segredos dos Ministérios onde exercem. São as pessoas da confiança dos titulares da pasta ministerial, ou, para os espíritos mais prosaicos, os “ajudantes” dos ministros.

Não é de estranhar, portanto, que qualquer organização, e a Maçonaria também, tal como os governos, as outras associações ou as empresas, tenha também o cargo de Secretário na sua organização administrativa.

Assim, e para relembrar, nos termos do disposto no artº 86º do Regulamento, compete ao Secretário:

a) Redigir e ler as actas das sessões, nas quais deve indicar a hora de abertura e encerramento dos trabalhos; o nome simbólico dos Irmãos presentes, quer do Quadro quer visitantes; a referência ao expediente recebido; o resumo dos debates e as resoluções e propostas aprovadas, as moções de ordem e os requerimentos apresentados. As Actas devem ser, após aprovação, transcritas em suporte apropriado e assinadas pelo Venerável, Secretário e Orador;

b) Ter actualizado o registo de matrícula dos Obreiros da Oficina;

c) Remeter ao Conselho da Ordem os relatórios mensais de actividade;

d) Redigir, registar e expedir a correspondência da Oficina, bem como os avisos de convocações das sessões, de acordo com as indicações do Venerável;

e) Ler em sessão o expediente recebido;

f) Manter em boa ordem o arquivo da Oficina.

Como se pode desde logo discorrer, a diferença entre um secretário diligente e um secretário descuidado será a diferença entre a organização e o caos da loja.
A tarefa do Secretário deve exercer-se diariamente e sem atrasos, pelo que é, seguramente, o cargo mais trabalhoso da loja. É, porém, deveras gratificante, o sentimento do Secretário relativamente à confiança nele depositada, em primeira instância pelo Venerável, quando o indigitou, e subsequentemente pelos Irmãos, quando nele votaram para o exercício deste cargo, afinal, como a própria Maçonaria, discreto, mas fundamental.

Autor: Bocage