quarta-feira, 31 de março de 2021

Quo Vadis Verdade

Quando iniciei as providências para discorrer sobre um “valor”, cedo me decidi pela “justiça”. É que a experiência profissional de três décadas a trabalhar na área do stresse fez-me perceber a importância da justiça na saúde da mente e do corpo, não olvidando as repercussões no que ao social diz respeito.

Com efeito, o ser humano, na sua essência bio-psico-social - seja na família, nas empresas, na sociedade, mas também na relação consigo mesmo -, é tingido pela virtude da justiça, no seu sentido lato relativo à equidade, imparcialidade e à integridade. Se ser tratado com justiça é um direito, relacionar-se com os outros de forma respeitosa e justa é um dever. 

Sobrevém que, a determinado momento da minha pesquisa e reflexão, me dei conta que a justiça não tem sentido sem “verdade”: ou será que pode haver justiça na mentira, na falsidade e na hipocrisia? Não creio, nem mesmo na mentira piedosa que muitos de nós preferem recorrer quando confrontados com situações relacionais difíceis.

Assim sendo, este escrito debruçar-se-á sobre aspetos do “valor verdade”. Digo “aspetos” porque, tratando-se de um conceito primordial da constituição do ser humano, é necessariamente abrangente, abraçando várias áreas do conhecimento, o que significa que as suas “hastes” podiam ser “pegadas” de vários vértices. 

Não tendo a pretensão de exaurir o assunto, no que seria uma jactância narcísica de abraçar o mito e a ilusão perfecionista de vislumbrar a verdade em todos os seus vértices, a minha escolha recai no lavrar terrenos em que me sinto mais confortável - e onde granjeei conhecimentos e experiência-, e que mais me cativam, a saber: os da subjetividade da mente humana, obviamente não desaproveitando a oportunidade de acostar, q.b., outros ângulos que se me afigurem importantes.

A “psicologia da verdade” pode ser vista como uma caixa preta de um avião, em que nela tudo fica registado. A mente também regista tudo, mas o sentido, a semântica dos registos, são filtrados pelas perceções decorrentes de sentimentos, afetos, emoções, pensamentos, crenças, sensações, linguagem (...). Assim, a verdade torna-se subjetiva, todavia nem por isso menos válida em relação à dita verdade objetiva.

Considerando que a busca da verdade constitui um dos problemas fundamentais da filosofia, não posso deixar de a realçar, porém, assumo conscientemente a opção por salientar a psicologia pois, como muito apropriadamente refere Donald Meltzer , um destacado psicanalista norte-americano, “toda a psicopatologia resulta de um autoengano”, por conseguinte encerrando na sua essência um dilema de verdade. 

Para além de Freud, que consolidou todo o edifício teórico-prático da psicanálise a partir da “falsificação mentirosa”, que as suas pacientes histéricas faziam das verdades reprimidas, também Wilfred Bion, um dos marcos da psicanálise, dedicou-se, a partir de 1958, no seu livro que traduzo por “Na Arrogância” , ao problema da verdade.

De acordo com este autor, que destacou os conceitos de verdade, falsidade, mentira e hipocrisia, o processo que leva à sua formação está intimamente associado à evasão do conhecimento das verdades. 

Pergunta: mas porque é que isto acontece se a criança está inatamente preparada para descobrir a verdade? Eis a resposta psicanalítica: por impedimentos principalmente emocionais, porque o ser humano está mais voltado para evadir e dominar as emoções difíceis do que propriamente para as enfrentar e, assim, promover um autêntico crescimento da personalidade. O ego, propugna a psicanálise, tem medo de conhecer as verdades porque elas estão associadas a intensos conflitos emergentes dos seus dramas e tragédias íntimas.      

Mas voltemos a Bion. Enquanto a falsificação configura um processo eminentemente inconsciente, na mentira predomina uma intenção consciente, ou pré-consciente, de produzir uma distorção da verdade. Já sobre a hipocrisia o psicanalista esclarece: “o facto de um indivíduo ter ódio à “não verdade”, não é o mesmo que ter amor à verdade”; e acrescenta, “a forma hipócrita de lidar com a verdade pode ser observada nas personalidades obsessivas, as quais, embora o façam de forma honesta, não toleram transgressões às verdades conhecidas, porém, a título de funcionarem como vestais da verdade, elas opõem-se tenazmente ao surgimento de outras faces ocultas dessa mesma verdade, ou de outras tantas intoleráveis” . 

Nas palavras do saudoso Carlos Amaral Dias - para quem, como psicanalista, mestre e amigo, tenho uma enorme dívida de gratidão-, estamos na presença de uma defesa psicológica inconsciente para não se ser “apanhado com as calças na mão”. Um exemplo delicioso disto mesmo foi muito bem popularizado por Herman José, na célebre figura do Diácono Remédios, que no seu discurso rançoso moralístico de índole religiosa, “não havia necessidade”, faz assomar, por trás de uma protocolar secretária, duas sedutoras, sexies e experientes donzelas, simulando o fellatio. Eis a verdade da mentira do colorido obsessivo, não necessariamente patológico, aliás muito bem conhecido e descrito pela psicanálise.

No que diz respeito à origem e conceção, três vocábulos se distinguem, cada um deles com uma aceção diferente de verdade: a palavra latina veritas, a hebraica emunah e a grega aletheia. 

Veritas refere-se à precisão do discurso, relacionando-se ao rigor exatidão de uma descrição ou relato, no qual se diz - com detalhes, pormenores e fidelidade -, o ocorrido. Emunah significa confiança; a verdade é uma crença com raiz na esperança e na confiança, por conseguinte relacionadas com o futuro, com o que será e com o que advirá. Por último, aletheia tem a ver com o não oculto, não escondido, não dissimulado, por conseguinte aquilo que se manifesta aos “olhos do corpo e do espírito”. 

Dito de outra forma:
- No predomínio do latim veritas considera-se que a verdade depende do rigor e da precisão da linguagem; 
- Quando prevalece o hebraico enumah, a verdade depende de um acordo ou de um pacto de confiança - histórico, político... -, que deve ser respeitado por todos: o que se combinou vai mesmo acontecer;  
- Na influência do grego aletheia considera-se que a verdade está na evidência, isto é, na visão intelectual e racional da realidade, tal como é em si mesma, alcançada pelas operações da nossa razão ou do nosso intelecto. 

De acordo com Paulo Guiraldelli (2001, p.2) , “quando dizemos aletheia estamos nos referindo ao não-oculto ou ao que não está dissimulado. Aletheia é o oposto de pseudo ( ), que é justamente o escondido, o que está encoberto. Não importa aqui se é o "olho do corpo" ou o "olho do espírito" que está olhando. O que importa aqui é que ambos, quando estão vendo o verdadeiro, estão diante de algo manifesto próprio das coisas. A verdade está nas coisas. Falar verdade é dizer o que está na realidade manifestada e não na realidade que não se manifesta, oculta, a que engana”.

Ainda sobre a etimologia da palavra aletheia, o psicanalista brasileiro António Rezende  faz umas considerações interessantes. Para ele esta palavra forma-se a partir dos étimos “a” (sem) + letheia (esquecer). À letra, aletheia poderá significar não esquecimento, não negação: neste sentido “ser verdadeiro é não esquecer as coisas que merecem ser pensadas, vivenciando-as na prática” (p. 157). De outro ponto de vista, refere o autor, verdade também aparece como “desvelamento”, “desnudamento” e “desmascaramento” (ibidem, 174) da máscara (do grego persona, e daqui a palavra personalidade) ou dos papéis mascarados, disfarçados e trasvestidos que representamos, e que nos identifica, socialmente, para não falar da dissimulação que contruímos para esconder, de nós mesmos, as verdades não admissíveis.

Trilhando este caminho, urge perguntar: “quem sou eu”?; “qual é a verdade de mim mesmo”?; “eu sou o que mostro”?; “a imagem que vejo ao espelho sou eu mesmo”?; “o comportamento e as atitudes que tenho em sociedade são autênticos e genuínos, ou fazem parte da mentira que adotei para me proteger dos meus sentimentos de insuficiência”?; “quando me olho ao espelho e questiono, há alguém mais belo, puro e sábio do que eu, estou a falar de mim ou de uma mentira que criei de mim?”. Para se ser justo e verdadeiro, primeiro para connosco mesmos, depois para com os outros, é indispensável que nos conheçamos, pelo que não surpreende a sábia verdade socrática “conhece-te a ti mesmo”, aliás o mesmo que proferiu o célebre paradoxo “só sei que nada sei ou sei uma coisa: que eu nada sei”.

Num livro delicioso, que aconselho a todos vós, Brené Brown , uma assistente social americana e investigadora, surpreende-nos com a frase “mostre-se como é de verdade. Essa é a única forma de viver a vida”, ou de consumir a vida, como diria Irvin Yalom no seu livro “Quando Nietzche Chorou” . 

Mas o que significa viver a vida, e não “ser vivido por ela” ; o que quer dizer viver com ousadia?; o que exprime escolher a vida e não ser escolhido por ela?

Na resposta a esta questão Brown cita Theodore Roosevelt, que num discurso sobre Cidadania na República, em 1910, disse: “Não é o crítico que conta; nem aquele que aponta para o homem forte que tropeça ou diz que os que realizaram algo o podiam ter feito melhor. O crédito pertence ao homem que está de facto na arena, com o rosto desfigurado pela poeira, suor e sangue; que se esforça com valentia; que erra, que falha vezes sem conta, pois não há esforço sem erros e falhas (p. 9)”. 

Cravam-nos - bem fundo -, na nossa mente, “pregos” supostamente indolores , que na arena da vida temos que ser, ou mostrar, que somos bons, perfeitos, bem-sucedidos, espertos, seguros, extraordinários (...), o que nos faz tropeçar na ratoeira de desejarmos secretamente ser super-homens, almejar sermos fortalezas inexpugnáveis e invencíveis. 
Será que estou a exagerar e a dramatizar? 

Evidentemente que estou a ser enfático! Obviamente que nunca assumiremos isto porque está em causa um sentimento no âmago de nós mesmos que passamos em surdina àqueles que amamos, como os nossos filhos. Ser vulnerável, nem pensar, mostrar vulnerabilidade, nunca jamais em tempo algum, porque a vulnerabilidade (definida comummente como a suscetibilidade de ser ferido; ser sujeito a ataque ou dano) é fraqueza, é colocarmo-nos a nu, é prestarmo-nos à humilhação, à vergonha pública, e dos fracos não reza a história, diz-se. 

Mas estar vivo não é ser vulnerável? Qual é a verdade e essência da natureza humana? Quando susteremos de nos mentir a nós mesmos? E não será isso uma verdadeira traição a nós mesmos, uma “traição do eu”, como diria Arno Gruen no seu livro com o mesmo nome? 

A pandemia deixou a nu a nossa vulnerabilidade. É uma verdadeira ferida no narcisismo humano. Se considerarmos os três verdadeiros golpes aludidos por Freud, seria a quarta: 1ª) a descoberta de que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário (Copérnico e a Galileu); 2ª a evolução biológica das espécies que retirou o carácter divino ao homem (Darwin); 3º a descoberta dos processos mentais inconscientes pela psicanálise, pelo que todo o comportamento não é por acaso (Freud).

Numa era digital, moldada pela internet - grande feito da inteligência humana, mas também o esgoto da humanidade -, e pelas redes sociais – verdadeiro big brother à escala planetária – o espetáculo, o ruído mediático da informação e contra informação, da notícia ténue, passageira, reativa e de consumo rápido, transformaram o mundo atual numa vacuidade promíscua, num vazio em que a verdade é um conceito destinado a desaparecer do léxico dos melhores dicionários, em que falar a verdade sobre a vida real dificilmente sobrevive à necessidade de consumir emoções rápidas, verdadeiro fast-food servido em pratos coloridos a sangue – sim o que interessa é fazer sangue, quanto mais melhor. E o que dizer das mensagens com que todos os dias somos bombardeados, verdadeiro terrorismo verbal que não só nos atordoa os ouvidos como entorpece e anestesia a mente, principalmente num momento em que a serenidade, lucidez e a verdade seriam mitigadoras do sofrimento humano?. Por último, o que dizer do processo intestino, autêntica diarreia mental verborreica, cuja repetição das mesmas coisas, e das mesmas palavras, até à exaustão, nos criam sensações de vómito, náusea e enjoo e sentimentos de ansiedade, depressão e desmoralização?

Não é só nos Estados Unidos da América que se vive a era da pós-verdade, como o refere Fareed Zacaria no programa GPS, emitido na RTP3 no passado dia 23 de janeiro. Também em Portugal, estou-me a referir à verdade sobre a realidade da pandemia nos hospitais que teima em não aparecer, grassa a pós-verdade. E não pensem que não há perigo para a democracia porque, como o refere Tim Snyder - professor de história em Yale, especialista em Holocasto e autoritarismo, autor do livro publicado recentemente On Tiranny -, a pós-verdade é o pré-fascismo. 

Mas o que é a pós-verdade? 
Trata-se de um “neologismo que descreve a situação na qual, na hora de criar e modelar a opinião pública, os factos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais” . Na pós-verdade aceitamos que só há uma opinião e não há verdade, é uma cultura que deixou desaparecer as fontes dos factos. Aqui, os critérios da evidência, ausência da contradição e da prova, verdadeiros critérios de verdade que permitem distinguir um juízo verdadeiro de um falso, não têm cabimento. 

E o que sucede neste tipo de cultura? 
Quando as pessoas não acreditam na verdade, e não há factos, diz Timothy Snyder, caímos na crença, cria-se um vazio que é preenchido pelo espetáculo e pelo mito. Quando não há verdade os políticos carismáticos preenchem esse vazio., remata o historiador.

Um mestre, sem mestrado, mas com muita arte e engenho neste tipo de fazer política foi, e ainda é, Donald Trump. De acordo com uma investigação do Whashigton Post, o ex-presidente dos EUA fez 30.529 declarações falsas ou enganosas durante os quatro anos que esteve na Casa Oval; contudo, diz Fareed Zacaria, o mais grave não é o ataque ao Capitólio mas, outrossim, a mentira indecorosa e indigna criada que, 75% dos republicanos, cerca 40% dos americanos, acreditam ser verdade, a saber: que Donald Trump perdeu as eleições porque foi escandalosamente roubado, não obstante as evidências em contrário. A grande dúvida atual nos EUA, acrescenta o jornalista, é como é que o país inteiro, não só a Casa Branca, volta à sinceridade, ou à verdade de um Estado de Direito e a todos os pilares de uma democracia saudável.

E o que acontece mais próximo de nós? 

Sem qualquer intenção de cariz político ou ideológico da minha parte, vejamos dois exemplos:

- Luís Marques Mendes, no espaço de opinião semanal na SIC, relativamente ao estado da pandemia em Portugal  dizia que “é preciso serenidade e verdade da parte dos governantes, porque o exemplo vem de cima”;

- Patrícia Pacheco, diretora de infeciologia do Hospital Amadora-Sintra, em entrevista ao Observador , sem rodeios e papas na língua, com um discurso duro de quem viu o hospital onde trabalha ser “virado do avesso” para se transformar numa “amálgama de gente dedicada à Covid 19”, disse que aquilo que mais se sente nos corredores do Amadora-Sintra é a “frustração e indignação”, e acusa o Governo de ter deitado tudo a perder ao “mentir” aos cidadãos e fazer uma gestão “errática” da pandemia. E acrescentou: “A falta de honestidade e de transparência perturba-me, acho que é o pior que um líder pode ter e é o pior que esta liderança do Ministério da Saúde tem: não ser transparente, desvalorizar sistematicamente os problemas que existem, em vez de os encarar, em vez de dizer de uma forma muito clara que nós temos limites e que não os devíamos ter ultrapassado”.

“A verdade é aquilo que resiste ao teste da experiência”, disse Einstein; “três coisas não podem ser escondidas por muito tempo: o sol, a lua e a verdade, afirmou Buda; “Sem a busca da verdade, a sociedade depressa decai”  , “alcançar a verdade é desdobrar a vida, é dar-lhe a mais ampla possibilidade de expressão. Para mim, a única meta, o único mundo que é eterno, (…) absoluto, é o mundo da verdade” , proferiu Krishnamurti; “(...) e a verdade vos libertará” (João 8,31-32).

 Permitam-me agora a audácia de questionar: aonde estão os homens e as Instituições de bem, como a Maçonaria, que poderiam, e deveriam, assomar à janela numa atitude de coragem, falando e defendendo a verdade, fazendo a verdadeira diferença neste marasmo caótico de vacuidade existencial? 

Considerando que o escrito já vai longo, e porque, como diz o ditado, “Falar muito e bem é talento de quem sabe; pouco e bem, é de carácter ajuizado; muito e mal, é vício do enfatuado; pouco e mal é condão do tolo”, permitam-me concluir apresentando a minha verdade, exprimindo algo que me engasga e tolda já há algum tempo. 

Segundo o Ritual do Grau do Aprendiz Maçom, “a maçonaria é uma sociedade de homens esclarecidos, unidos para trabalhar em comum para o aperfeiçoamento intelectual e moral da humanidade” (p. 93). O que está a maçonaria portuguesa, em geral, a nossa Loja e os irmãos, em particular, a fazer em prole da verdade que aludo neste trabalho?; Estamos a ser verdadeiros connosco mesmos, com o outro, nosso semelhante, e com os princípios que, todos nós, um dia, jurámos defender e prosseguir? 

Não consigo profetizar o meu futuro na Maçonaria. Os tempos não estão fáceis, grassando em mim desmotivação e descontentamento com o que entendo ser uma certa inércia e passividade geral. 

O que é que eu gostaria de ver? 

Mais verdade nas relações e na luta pelos princípios que são os nossos. 

Utopia? Ilusão? Talvez, mas não deixa de ser esta é a minha verdade, o meu desejo. Caso contrário vejo-me compelido a colocar uma máscara, fazer de conta, e isso é traição a mim mesmo. 


Autor: Jiddu Krishnamurti

 

segunda-feira, 22 de março de 2021

A Escravatura e a “Nova Escravatura”

A escravidão foi, desde tempos remotos, uma situação aceite e tornou-se essencial para a economia e para a sociedade de todas as civilizações antigas, embora fosse um tipo de organização muito pouco produtivo. A Mesopotâmia, a Índia, a China e os antigos egípcios e hebreus utilizaram escravos.

Na civilização grega, o trabalho escravo acontecia na mais variada sorte de funções: os escravos podiam ser domésticos, podiam trabalhar no campo, nas minas, na força policial de arqueiros da cidade, podiam ser ourives, remadores de barco, artesãos etc. Para os gregos, tanto as mulheres como os escravos não possuíam direito de voto. Muitos dos soldados do antigo Império Romano eram ex-escravos.

No Império Romano, o aumento de riqueza realizava-se mediante a conquista de novos territórios, capazes de fornecer escravos em maior número e mais impostos ao fisco. Contudo, arruinavam os pequenos proprietários livres, que, mobilizados pelo serviço militar obrigatório, eram obrigados a abandonar as suas terras, das quais acabavam por ser expulsos por dívidas, indo elas engrossar as grandes propriedades cultivadas por mão de obra escrava.

As novas conquistas e os novos escravos que elas propiciavam começaram a ser insuficientes para manter de pé o pesado corpo da administração romana. Os conflitos no seio das classes de "homens livres" começam a abalar as estruturas da sociedade romana, com as lutas entre os patrícios e a plebe, entre latifundiários e comerciantes, entre colectores de impostos e agricultores arruinados, aliados aos proletários das cidades. Ao mesmo tempo, começou a manifestar-se o movimento de revolta dos escravos contra os seus senhores e contra o sistema esclavagista, movimento que atingiu o auge com a revolta de Espártaco 73-71 a.C.. Desde o século II, a necessidade de ter receitas levava Roma a organizar grandes explorações de terra e a encorajar a concentração das propriedades agrícolas, desenvolvendo o tipo de exploração esclavagista.

E qual foi o papel de Portugal na escravatura?

“Os escravos pululam por toda a parte. Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou quase em crer que só em Lisboa há mais escravos e escravas que portugueses de livre condição. Mal pus o pé em Évora, julguei-me transportado a uma cidade do Inferno: por toda a parte topava com negros, raça por que tenho tal aversão, que eles só por si bastariam para me fazer abalar daqui.”

Foi assim que o humanista flamengo Clenardus registou as suas primeiras impressões acerca de Portugal, pouco tempo depois da sua chegada, no ano de 1535. Para alguém como ele, vindo do norte, a instituição da própria escravatura deve ter surgido como algo de inédito, ainda que no sul da Europa os escravos obtidos no comércio com as regiões próximas do mar Negro e nas incessantes guerras contra os estados islâmicos tivessem já representado o seu papel ao longo da Idade Média. O que era verdadeiramente impressionante no Portugal dos séc. XV e XVI era o número de escravos negros, que formava uma das maiores concentrações de gente negra numa sociedade europeia, nos séculos que nos precederam, embora nunca ultrapassassem o número dos portugueses por nascimento, como Clenardus fantasiosamente supôs.

A sua presença era consequência das viagens efetuadas ao longo da costa ocidental africana, fomentadas pelo Infante D. Henrique durante a primeira metade do séc. XV. Por volta de 1440, os seus capitães começaram a trazer escravos negros, e, um século mais tarde, os escravos negros ultrapassavam muito provavelmente o número de mouros que tinham constituído o grosso da população escrava portuguesa nas épocas medievais. Desta feita, Portugal tornou-se a primeira sociedade europeia da época moderna em que a escravatura negra passou a ser usual.

Dificilmente se encontraria uma área da vida portuguesa - económica, social ou intelectual – que a escravatura não influenciasse de alguma forma. Tratou-se de uma influência crucial no papel histórico de Portugal enquanto descobridor, já que foi a possibilidade de arranjar escravos que ganhou apoio popular para as viagens que patrocinou o Infante D. Henrique para o sul, assim como a intenção d encontrar novos fornecedores de escravos, ou seja, novos territórios cuja população pudesse ser escravizada. Dali em diante, o tráfico de escravos constituiu o mais central vínculo comercial entre Portugal e a maioria dos reinos litorais de África, ao mesmo tempo que a reexportação de escravos para Espanha e para as Américas veio a tornar-se uma característica essencial da economia portuguesa.

O Império Português foi o primeiro a iniciar o comércio de escravos para o Novo Mundo no século XVI e outros logo o seguiram. Os donos dos navios negreiros consideravam os escravos como uma carga que deveria transportada para a América da maneira mais rápida e barata possível, para então serem vendidos para o trabalho escravo em lavouras de café, tabaco, cacau, açúcar e algodão, nas minas de ouro e prata, campos de arroz, na indústria de construção, corte de madeira e como empregados domésticos.

As razões para o emprego de escravos têm sido objeto de debates que remontam ao séc. XVI. Há quem considere que os escravos eram importados para compensar a perda dos homens idos para as colónias de além-mar. No entanto, as províncias nortenhas, que eram as que mais emigrantes forneçam, eram as que tinham menor número de escravos. Os escravos eram empregues sobretudo nas regiões em que o contingente local de trabalho livre não podia satisfazer a procura criada pelo aumento da economia. Era esta a situação de Lisboa e das províncias mais a sul, no entanto há dados que indicam que, por volta de meados do séc. XVI, o crescimento populacional começou a tornar desnecessária a mão de obra escrava, pelo menos no que se refere a Lisboa.

Ora isto traz-nos para os tempos atuais e para aquilo que eu chamo a “Escravatura Moderna”. A exemplo do que acontecia no séc. XVI, também hoje os países desenvolvidos da Europa recorrem aos imigrantes para fazer face à escassez de mão de obra local, especialmente em algumas profissões menos desejadas pelos naturais dos países. Muitos desses imigrantes provêm de países em guerra ou com precárias condições de vida e procuram a Europa para terem uma vida melhor, mas nem sempre é assim. Países há onde estes imigrantes vivem em condições desumanas, degradantes mesmo, em grandes cidades de países ditos desenvolvidos, como tive oportunidade de testemunhar há três anos atrás em pleno Paris.

E que dizer de proprietários agrícolas que contratam estrangeiros para trabalhos sazonais e depois, por vezes, vem-se a descobrir que não lhes pagam, apenas lhes dão de comer e mantêm-nos prisioneiros, sem sequer os deixar sair à rua. Até aqui em Portugal já foram relatadas situações destas.

E as redes de mendicidade, que põem mulheres e crianças a pedirem nas ruas, explorando-os e tratando-os, mais uma vez, como autênticos escravos.

Mas há situações menos graves que estas que espelham igualmente algo de escravatura, desta escravatura moderna: trabalhadores de algumas profissões, que só têm uma folga semanal, trabalhadores que fazem dois e três turnos seguidos mas não ganham horas extraordinárias, trabalhadores que são excluídos ou prejudicados por cumprirem apenas o seu horário de trabalho e não fazerem horas extra pro bono.

Atente-se também no que se passa em países menos desenvolvidos da Ásia, onde crianças são utilizadas em trabalhos muitas vezes pesados, onde trabalhadores trabalham em condições precárias para produzirem produtos de grandes marcas, que depois são vendidos nos mercados ocidentais com grandes ganhos.

Não serão estes alguns exemplos correntes de escravatura moderna? Ou para se ser considerado escravo tem de se andar acorrentado e sofrer castigos e sevícias? Onde está a liberdade? Onde está a igualdade? Onde está a fraternidade? Onde estão os Direitos Humanos?

Mas voltemos à História:

A Dinamarca, que tinha sido ativa no tráfico de escravos, foi o primeiro país a proibir o seu comércio através de uma legislação de 1792, que entrou em vigor em 1803. O Reino Unido proibiu o comércio de escravos em 1807, impondo pesadas multas para qualquer escravo encontrado a bordo de um navio britânico. A Marinha Real Britânica, que na época controlava os mares do mundo, começou a impedir que outras nações continuassem a praticar o comércio de escravos e declarou que o tráfico negreiro era igual a pirataria e era punível com a morte. O Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei de Comércio de Escravos de 1794, que proibiu a construção de navios nos Estados Unidos para o uso no comércio de escravos. Em 1807, o congresso proibiu a importação de escravos a partir de 1 de janeiro de 1808, a primeira data permitida pela Constituição dos Estados Unidos para tal proibição. No entanto isso não impediu que a escravatura nesse país continuasse a existir por mais 57 anos!

O último navio negreiro registado a atracar em solo americano foi o Clotilde, que em 1859 contrabandeou ilegalmente vários africanos na cidade de Mobile, no Alabama. Os africanos a bordo foram vendidos como escravos e a escravidão nos Estados Unidos só foi abolida cinco anos mais tarde, após o fim da Guerra Secessão, em 1865. O último país a proibir o comércio de escravos no Atlântico foi o Brasil, em 1888. Um comércio ilegal vibrante tinha continuado a enviar uma grande quantidade de pessoas escravizadas para o Brasil e também para Cuba, até a década de 1886, quando a pressão dos britânicos finalmente pôs fim ao comércio atlântico.

O historiador Walter Rodney afirma que foi uma queda na rentabilidade das operações triangulares que tornou possível a consolidação das críticas contra o tráfico negreiro no Atlântico. Rodney afirma que as mudanças na produtividade, na tecnologia e nos padrões de intercâmbio na Europa e na América impulsionou a decisão dos britânicos de acabar com a sua participação no comércio de escravos em 1807.

Em 1998, a UNESCO, das Nações Unidas designou o dia 23 de agosto como o "Dia Internacional de Recordação do Tráfico de Escravos e de sua Abolição". Desde então, tem havido uma série de eventos que reconhecem os efeitos da escravidão.

Em 30 de janeiro de 2006, Jacques Chirac (o então presidente francês) disse que 10 de maio seria, a partir de então, um dia nacional em memória das vítimas da escravidão promovida pela França, marcando o dia em 2001, quando o país aprovou uma lei que reconhecia a escravidão como um crime contra a humanidade.

Em 27 de novembro de 2006, Tony Blair, então primeiro-ministro britânico, fez um pedido de desculpas parcial pelo papel do Reino Unido no comércio de escravos africanos. No entanto ativistas dos direitos africanos denunciaram o discurso como "retórica vazia" que não conseguiu resolver o problema corretamente. Blair novamente pediu desculpas no dia 14 de março de 2007.

Em 31 de maio de 2007, o governador do Alabama, Bob Riley, assinou uma resolução expressando "profundo pesar" pelo papel do estado na escravidão e desculpas pelos erros e os efeitos remanescentes. O Alabama é o quarto estado do sul a fazer um pedido de desculpas formal pela escravidão, após Maryland, Virgínia e Carolina do Norte. Em 30 de julho de 2008, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou uma resolução pedindo desculpas pela escravidão e por leis discriminatórias posteriores. Em 18 de junho de 2009, o Senado dos Estados Unidos emitiu um comunicado pedindo desculpas condenando as "fundamentais injustiças, crueldades, brutalidades e desumanidades da escravidão".

Aparentemente tudo está bem, todos os países fazem mea culpa, pedem desculpas, lamentam o passado. Mas continuam hoje a existir homens mulheres e crianças a viver em condições de autêntica escravatura nos dias de hoje, e toda a gente olha para o lado, até nós, se calhar.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz, nos seus primeiros artigos:

Artigo 1.º: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Artigo 4.º: Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.

Artigo 5.º: Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Quanta hipocrisia! Possamos nós, enquanto Maçons livres nunca pactuar com situações destas e defender sempre os valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade que defendemos.


Autor: António Egas Moniz

segunda-feira, 15 de março de 2021

Viktor Frankl – O sentido da Vida

Depois de num dos momentos marcantes na minha vida, ter sido aceite e iniciado na Augusta, Benemérita e Respeitável Loja Estrela D’Alva, fui confrontado com a necessidade de escolher um nome simbólico. Na altura quando me pediram esta tarefa, tal era a agitação mental em que me encontrava, achei seria fácil esta escolha. Mas não, não foi tão simples como pensava. Tinha de ser alguém especial, alguém com quem me identificasse tanto nos valores transmitidos como com a obra realizada.

Um dia conversando com um colega meu do trabalho, que se sentia desiludido com a sua vida profissional, entre outras coisas, dei por mim a dizer-lhe uma frase que muitas vezes digo já há algum tempo - “a vida não tem sentido …tu és quem deve dar sentido a vida”. Foi um momento especial pois sem querer, pensei para o meu interior que sempre tive alguém com quem me identificava, alguém que se prezava pelos valores transmitidos.

Vou-vos contar a história de um homem, criador de uma ideia ou forma de ajuda baseada na busca pelo sentido da vida, alguém que se dedicou a ajudar gente que já não tinha nada a perder a não ser a vida por não encontrarem uma luz no seu caminho.

Viktor Frankl nasceu na Áustria, em 1905. Os seus interesses por questões existenciais remontam ao início da sua vida de estudante. Aos 16 anos, expôs suas ideias sobre o sentido da vida, em palestra para o partido socialista da sua cidade.

O brilho nos olhos do jovem Frankl rapidamente impressionou estudiosos e o colocou em correspondência frequente com ninguém menos que Sigmund Freud. Por influência deste, Frankl publicou o seu primeiro artigo aos 19 anos, um grande feito para quem ainda cursava a faculdade de medicina.

Dois anos passaram e ele já denominava as ideias de logoterapia – usando o significado grego para “logos” = sentido. Era o início da terapia do sentido da vida.

Aos 23 anos, Frankl organizou e ofereceu um programa especial, e gratuito, para aconselhamento de alunos do ensino médio. Com o apoio de psicólogos, ele formou uma equipa que agia justamente no momento de grande fragilidade de qualquer aluno: a época da entrega dos boletins. O programa foi um êxito. Em 1931 nenhum estudante vienense cometeu suicídio. O sucesso despertou a atenção de autoridades europeias, que passaram a convidar Frankl para dar palestras em diversos países.

No último ano da faculdade de medicina, Frankl já delineava o que seria o alicerce da sua contribuição para a psicoterapia. Segundo o jovem Viktor, os três valores, ou formas, que viabilizam o ser humano encontrar o sentido da vida eram:

·      Criar um trabalho ou fazer uma ação;

·      Experimentar algo ou encontrar alguém (não só trabalho, mas também no amor);

·      A capacidade de encontrar sentido até mesmo no sofrimento.

Entre 1933 e 1937, Viktor, completou as suas especialidades em Neurologia e Psiquiatria, tornando-se responsável por uma ala tenebrosa do hospital psiquiátrico, chamado “pavilhão do suicídio”. Lá, atendeu mais de 3 mil mulheres com tendências suicidas.

Aos 36 anos, casou-se com o amor da sua vida Tilly Grosser, enfermeira do hospital onde ele trabalhava. Ah, esqueci-me de mencionar que naquele momento, o mundo, e particularmente a Europa, sofria com a Segunda Guerra Mundial. Outra informação significativa na vida do jovem casal: eram judeus.

Do destino de seu povo naquele momento, Viktor decidiu não fugir. Junto com a sua esposa e toda a família, foi mandado para um gueto e posteriormente para três campos de concentração. Não preciso mencionar o que se passou ou se viveu nesses locais. Como se não bastasse um aborto provocado pelos nazis antes da separação do casal, Frankl perdeu quase todos os seus: a esposa, os pais, o irmão – todos mortos. Ele só não perdeu sua irmã e a sua teoria… a logoterapia.

Foi a esperança de reencontrar a sua esposa e publicar as suas ideias sobre a terapia do sentido da vida que mantiveram Viktor vivo ao longo dos três anos de sofrimento humano indescritível. Tamanha era a alimentadora vontade de passar os seus conhecimentos a diante, que perigosamente escondia rabiscos em papel das suas ideias dentro das cuecas.

Um psiquiatra no campo de concentração. Um psiquiatra que pode conhecer o essencial, o homem despido, o homem com medo, o homem mórbido e, o que impressiona e comprovou sua teoria, o homem com sentido na vida.

Como explicar que, apesar de tudo, muitos judeus sobreviveram? Como? Frankl usou muito a frase de Nietzsche, Nietzsche, “Quem tem por que viver pode suportar quase qualquer como”.

Em 1944, aos 39 anos, Frankl foi libertado. Porém, o desejo de reencontrar sua esposa foi logo descoberto como não mais possível.

Mas aquele desejo, de passar as suas ideias para as próximas gerações, contribuir para a ciência, revelar o tesouro que representava toda sua vida de dedicação, que se fundia nele mesmo, foi a razão que o manteve vivo…

Frankl realizou no ano seguinte, o sonho que o manteve vivo, com a publicação do livro: “Dizendo sim para a vida apesar de tudo: experiências de um psicólogo no campo de concentração.”

Viktor encontrou novos sentidos na sua vida, novos motivos para seguir vivo. Continuou com o brilhantismo a sua carreira. Assumiu a direção da Policlínica Neurológica de Viena, cargo que desempenhou por 25 anos. Deu palestras em 209 universidades, em todos os cinco continentes. Recebeu 29 títulos de Doutor Honoris Causa.

Por admirar este homem pelo seu altruísmo, o seu comportamento íntegro pelo qual ajudava companheiros que se encontravam em perigo à custa da sua segurança. A sua dedicação a trabalhar uma ideia que iria salvar tantas almas em desespero.

Por me identificar muito com seu sentido da vida para a Humanidade, que fosse melhor, mais fraterna, mais saudável, pelos seu Ideais que lutou até ao fim dos seus dias, mesmo quando privado da sua liberdade.

Por estas razões e por outras que não cabem neste pequeno, mas emotivo texto, e pensando nos valores e princípios da Maçonaria – Liberdade, Igualdade e Fraternidade, decidi adotar como nome simbólico Viktor Frankl, esperando quanto em mim caiba honrar este nome.

Por fim, cito a frase que resume a sua linha de pensamento: “Nós podemos descobrir o significado da vida de três diferentes maneiras: fazendo alguma coisa, experimentando um valor ou o amor, e sofrendo”.


Autor: Viktor Frank

terça-feira, 9 de março de 2021

A Régua de Vinte e Quatro Polegadas

Pesquizando em qualquer dicionário verificamos que Régua é um instrumento utilizado em geometria, próprio para traçar segmentos de reta e medir distâncias pequenas. Também é incorporada no desenho técnico e na Engenharia. É composta por uma lâmina de madeira, plástico, metal ou outro material e pode conter uma escala, geralmente centimétrica e milimétrica em Portugal.

Polegada (inch em inglês) é uma unidade de comprimento usada no sistema imperial de medidas. Uma polegada é igual a 2,54 centímetros ou 25,4 milímetros. A polegada é amplamente utilizada pelas nações anglófonas. Contudo, no Sistema Internacional de Unidades (SI), a utilização da polegada não é recomendada, sendo utilizado o metro (que advém da ideia de um sistema de medidas unificado foi implementada pela primeira vez na França, na época da Revolução Francesa, em Portugal tínhamos também diversas medidas como a Braça, a Toesa, o Passo, a Vara, o Côvado, o Pé entre outros).

A polegada tem sua origem na idade antiga onde romanos mediam o comprimento com o próprio polegar. É a largura de um polegar humano regular, medido na base da unha, a qual, num ser humano adulto, é de aproximadamente 2,5 cm. No Grande Oriente Lusitano a Régua não nos aparece destacada no Ritual de Aprendiz, remete-nos assim para uma análise posterior a este Grau. Jules Boucher em a Simbólica Maçónica refere inclusivamente que é utilizada em 3 das viagens efectuadas pelo Aprendiz na sua elevação (no Grande Oriente Lusitano apenas é utilizado na 3ª Viagem, conjuntamente com a Alavanca) em que apenas nos é referido que é uma ferramenta do Companheiro sendo definida como “emblema do Juízo Recto”, um instrumento necessário para verificar que as pedras estão bem colocada na construção, colocação essa efectuada pela alavanca.

António Arnaut define Régua no seu livro Introdução à Maçonaria como “Símbolo da rectidão, do método, da lei; e ainda do aperfeiçoamento em toda a construção”.

Após ter sido introduzido, obviamente, que faz parte do nosso trabalho de polimento pesquisar mais sobre os temas, apreender e contruir as nossas ideias acrescentando valor ao nosso Eu e assim conseguir algum aperfeiçoamento. Parti do pressuposto anterior e pesquizando as ferramentas de Companheiro, verifico que é uma ferramenta utilizada pelos Aprendizes em algumas Obediências.

No Ritual de Aprendiz da Grande Loja de França ao definirem as ferramentas do Aprendiz temos que “a régua de vinte e quatro divisões simboliza o Primeiro degrau da jornada do Maçom onde todas as horas devem ser utilmente empregadas; o MAÇO simboliza a vontade de aperfeiçoamento que deve nos animar; enfim, o CINZEL, que vem acabar a Obra, remodelando a Pedra sempre conforme seu emprego, simboliza o método maçônico, graças ao qual nos tornamos membros úteis e conscientes da Sociedade.”

Em diversas Pranchas que fui lendo na minha pesquisa, a Régua e apresentada como o primeiro dos instrumentos apresentados ao Aprendiz no Rito Escocês “é chamada Régua de 24 Polegadas. Trata-se de um instrumento activo, que nos impõe a ideia da medida. Com ela podemos traçar as rectas e os ângulos e, portanto, delinear os nossos trabalhos.”

Jules Boucher defende que a Régua é o atributo principal do Companheiro já que esta simboliza o aperfeiçoamento, permite que a arte seja perfeita, a ciência coerente e lúcida, a lógica ordenada, a legislação justa, a música harmoniosa, e a filosofia coerente.

Remete-nos ainda para Gédalge que faz a seguinte definição de régua: Símbolo da Rectidão, do método da Lei. O deus egípcio Phatah empunha uma régua com a qual mede a cheia do Nilo. O próprio Phtah é representado pelo Nilômetro e a Régua aparece na mão de um dos dois assistentes de Viswakarma (altar das grutas de Ellora, Índia). Na Maçonaria, a Régua é bordada no avental do Experto, junto do olho divino e a espada.

O Aprendiz carrega-a ao ombro esquerdo quando se apresenta na Loja dos Companheiros. Unida ao Compasso, ela permite que se tracem todas as figuras da geometria; além do mais, podemos considerá-la como um símbolo do infinito (a reta sem começo nem fim); por último, ela é sobretudo um símbolo da Moralidade e do Dever de que o Franco-Maçom jamais se deve afastar”.

Refere igualmente no seu livro que o aprendiz deverá carregar a régua lisa no ombro esquerdo (o seu lado passivo) ao se apresentar para a elevação e ao ser elevado recebe uma régua de vinte e quatro polegadas graduada sobre o seu obro direito (lado activo). Pelas diversas pranchas que consultei esta é uma prática corrente junto dos nossos Irmãos no Brasil.

A Régua está presente como podem verificar nos paramentos da nossa Loja igualmente, no irmão Experto, bordada (e não no avental como descrito por Gédalge) e como joia do Mestre de Cerimónias, já que como podemos verificar no nosso Regulamento Geral em vigor o segundo é quem dirige o cerimonial das sessões (artº 88º) e o primeiro auxilia-o (artº87º), sendo extremamente importante que as horas de trabalho maçónicas sejam bem geridas entre trabalho, repouso e recreação, ou seja, as horas não devem ser mal empregadas em actividades com pouco contributo para a nossa Ordem.

Voltando ao Aprendiz e a sua utilização da régua lisa conseguimos extrapolar a sua utilização. O Aprendiz utilizaria operativamente o Maço e o Cinzel. Colocaria o segundo sobre a Pedra Bruta utilizando a sua mão esquerda, o seu lado passivo (sem desprimor para os canhotos) Simbolizando a força e a tenacidade, o discernimento e os conhecimentos adquiridos, sendo o símbolo do trabalho inteligente. Depois utilizaria o Maço com a sua mão direita (lado activo) simbolizando o martelo, emblema da vontade, do trabalho e da força. Pois bem, se o Maço e o Cinzel são ferramentas imprescindíveis para talhar a Pedra Bruta e um não funciona sem o outro, a junção da régua, mesmo lisa, para planear com os seus segmentos de recta onde aplicar o golpe correria um risco maior de em vez de estar a trabalhar a pedra delapidando-a e tornando-a aos poucos numa superfície mais polida, estar a partir a mesma, muitas vezes destruindo-a.

Se pensarmos na nossa infância profana, nas etapas correspondentes á primeira e segunda viagem que efetuamos na iniciação e na utilização da régua percebemos que antes de conseguirmos perceber que a régua faz apenas segmentos de recta, e não a recta em si, começamos a utiliza-la para inúmeras funções que muitas vezes não conseguiríamos fazer apenas com uma folha e um lápis. Também aqui o caminho se faz caminhando.

Rizzardo da Camino no seu Breviário Maçónico indica que a Maçonaria adopta esse instrumento de construção pois simboliza o dia com as suas 24 horas. O Maçom deve programar a sua vida dentro de determinada medida para que dessa programação resulte um equilíbrio entre as horas de trabalho, lazer e descanso. Esta última definição remeteu-me para a realidade profana actual onde temos por referência (tão poucas vezes aplicada) de oito horas de trabalho diárias.

No advento da revolução industrial, perto do final do século XVIII, quando as empresas começaram a maximizar a produção e ao laborarem em continuo as pessoas trabalhavam de 10 a 16 horas diariamente. Nesta altura Robert Owen efectuou uma campanha em que defendia que as pessoas não deviam trabalhar mais de 8 horas diárias. O seu slogan era “Oito horas de trabalho, oito horas de lazer, oito horas de descanso.” Esta campanha ganha força quando Henry Ford implementou os dias de trabalho com carga horária de 8 horas e mudou os padrões de toda a indústria. Ford aumenta igualmente os salários e consegue aumentos elevados de produtividade, das margens e lucros da empresa tendo as restantes indústrias seguido por esse motivo o exemplo. 

Não tenho qualquer referência que identifique Robert Owen como Maçon, no entanto não podia deixar de deixar uma pequena nota biográfica pois não existirão muitos filhos da viúva que tenham lutado tanto por todos e como no Nosso Irmão Raul Rego escreveu antes de partir para o Oriente Eterno “a base do progresso social e material está nos valores humanos e no respeito da inteligência dos direitos do Homem”.

Trata-se de um Industrial e reformador social galês nascido em 1771 e falecido em 1858. Na sua fábrica de New Lanark, na Escócia, e mais tarde numa colónia em Indiana, pôs em prática uma série de ideias inovadoras: proporcionou aos operários melhores condições de habitação e trabalho, bens de consumo a preços mais baixos e educação para os filhos. A primeira medida que adotou, ainda na fábrica na Escócia, foi a redução do horário de trabalho e proibiu o trabalho de crianças com menos de 10 anos.

Estas ideias não foram bem aceites tendo Robert Owen partido para os Estados Unidos onde desenvolveu a campanha das oito horas. Mais tarde Owen regressou à Grã-Bretanha e foi eleito pelos trabalhadores para liderar o movimento cooperativista. Escreveu diversas obras onde procurou sempre uma sociedade mais justa através da eliminação das diferenças económicas, da propriedade comunitária e do trabalho coletivo.

Para terminar gostaria de deixar uma reflexão sobre a situação actual, da Geração “Rasca” como nos apelidaram outrora, uma verdadeira geração “à Rasca”.

É inegável o avanço social na nossa Pátria com a Liberdade de 1974, existiram grandes avanços sociais que permitiram criar a geração mais preparada intelectualmente que Portugal já teve (para que fique claro falo a nível médio).

Por diversos motivos e até alguma falta de preparação cultural para a Liberdade ainda hoje essa geração não foi aproveitada. Globalmente falamos de quadros médios técnicos que quase sempre mais preparados que as suas hierarquias acabam ou por se resignar à falta de mobilidade profissional não dando um contributo de médio longo prazo à Sociedade ou ganhando novas competências, ou emigrar.

Não conseguimos modernizar a nossa indústria que foi com raras excepções uma industria de baixa tecnologia e onde actualmente os empregos são cada vez mais precários obrigado as pessoas a sujeitarem-se a um tipo de escravatura moderna, sem horários reais, com vencimentos baixos e com alguns a defender o fim do Estado Social mesmo que muitas vezes de forma encapotada (se estiverem atentos até alguns defensores da Igualdade).

Sinto a nossa Pátria cada vez mais dependente de centros de decisão estrangeiros em que não somos Cidadãos, mas sim números, onde não somos Trabalhadores, mas sim Colaboradores. Preocupa-me, pois, numa Pátria em que não conseguimos instituir o uso da Régua das 24 Polegadas não somos Livres.

Termino com a partilha de uma estrofe que li escrita por Vanessa Guimarães, uma investigadora Brasileira, aluna de Filosofia que efectuou diversas estrofes todas relacionadas com Maçonaria para apresentar numa feira de Ciências promovida pela Universidade do Contestado no Brasil.

“A régua exige do maçom

uma enorme precisão!

Principalmente na questão,

de sua plena execução!”



Autor: Armindo Matias

quinta-feira, 4 de março de 2021

O Avental Maçónico

Ao longo da história, há vários registos que nos asseguram que o Avental sempre esteve intimamente associado a um certo misticismo.
Conforme referido por Fred Crowe, citando Oliver, o avental foi e é usado como símbolo de pureza e purificação em múltiplas ocasiões. Na iniciação nos antigos mistérios de Mitras, na iniciação dos Essénios, em certas iniciações Japonesas, no adorno de divindades Gregas e Egípcias, por druidas, por antigos sacerdotes, por candidatos ao baptismo, entre outros. Ainda hoje em dia, o avental é usado por alguns dignitários eclesiásticos. Adicionalmente ao cunho místico acima referido, é inegável que o Avental foi também sempre utilizado com propósitos mais pragmáticos: o da protecção da roupa e do corpo. Foi e ainda é utilizado por várias profissões e nos mais variados materiais: pano, pele, borracha, chumbo, entre outros.

Ora, também na maçonaria operativa, o Avental apresentava-se como um artigo indispensável no equipamento de um trabalhador, cumprindo a finalidade já referida de protecção da roupa e do corpo. William Harry Rylands refere um contrato, datado de 2 de Fevereiro de 1685, no qual um mestre obrigava-se a fornecer ao seu aprendiz “...suficiente, saudável e competente alimento, bebida, alojamento e aventais.”

Tendo em conta as especificidades do trabalho dos pedreiros livres operativos, tudo nos leva a crer que para que a referida protecção fosse eficaz, estes aventais deveriam ser de grandes dimensões, cobrindo grande parte do corpo, e feitos de um material resistente, o menos dispendioso possível. À época, o material que melhor se adequaria a estes requisitos seria a pele.

Reportemo-nos à génese da Maçonaria especulativa e à tese mais comummente partilhada de que esta nasce da transformação das Lojas operativas em especulativas. Ora, com a extinção do movimento gótico e com o declínio das grandes construções, as Lojas contavam com cada vez menos pedreiros livres e começavam a ser compostas por cada vez mais profissionais de outras áreas, estudiosos, cientistas, etc., que partilhavam dos mesmos valores e forma de estar dos pedreiros livres.

Não é objectivo desta prancha aprofundar a origem da Maçonaria especulativa, mas o atrás referido apoia a tese de que com esta nova composição, cada vez mais heterogénea, as Lojas operativas ter-se-iam progressivamente transformado em Lojas especulativas, mantendo muitos dos costumes e das ferramentas dos pedreiros, se bem que com um diferente propósito. Particularmente, no que diz respeito ao Avental, a sua adopção pelas Lojas especulativas passa em primeiro lugar pelo seu valor simbólico e em segundo lugar pelo da distinção do grau do Maçom.

Oliveira Marques, no seu Dicionário de Maçonaria Portuguesa, esclarece que o Avental é o “Elemento principal e essencial das insígnias maçónicas, símbolo do trabalho, tanto físico como intelectual e moral.” Simbolicamente, o Avental representa o trabalho constante ao qual o Maçom se encontra eternamente vinculado. Ao contrário dos maçons operativos, que tinham como missão o corte e desbaste da pedra material para a construção de edifícios, os Maçons especulativos têm por missão a aprendizagem e constante aperfeiçoamento da arte da transformação da pedra bruta em pedra cúbica, que pelas suas características geométricas únicas garantirá o tão almejado templo interior de estrutura sólida e robusta.

Este trabalho de transformação, entendido como o eterno caminho do aperfeiçoamento de cada um de nós, combatendo os vícios e glorificando o direito e a virtude, em prol da sociedade, produzirá naturalmente fragmentos na pedra que, sem experiência e sem a devida protecção poderão facilmente ferir-nos.

Numa Loja simbólica, à medida que o recém iniciado Maçom vai adquirindo experiência no seu trabalho maçónico, desde que começa como Aprendiz, passa por Companheiro e termina como Mestre, é expectável que a pedra vá assumindo uma forma mais regular e que o seu trabalho vá produzindo cada vez menos fragmentos. O Avental vai simbolicamente acompanhando este trajecto.

O Aprendiz usa o Avental com a abeta levantada, exactamente porque ainda não é experiente na Maçonaria e é natural que cometa mais erros, produza mais fragmentos, durante o trabalho da pedra bruta do seu carácter. A sua necessidade de protecção é por isso maior. Quando a pedra já não apresentar arestas vivas, a necessidade de protecção será menor e a abeta poderá ser baixada, passando a Companheiro Durante a cerimónia de iniciação maçónica, no momento da investidura, o Venerável Mestre entrega ao Irmão Mestre de Cerimónias um Avental branco, para que o ponha no neófito enquanto esclarece que este é a sua principal insígnia, pois, conforme já referido, é o emblema do trabalho. O Venerável Mestre prossegue, dizendo: “Recomendo-vos que a useis e considereis como tal, e asseguro-vos que, se nunca a desonrardes, ela jamais vos desonrará.”

O Venerável Mestre continua, esclarecendo que “Sem ela não podeis comparecer às nossas sessões, mas também não a deveis pôr para visitar uma loja em que haja um irmão com quem estejais em desacordo ou contra quem mantenhais alguma animosidade, sem que previamente se restabeleçam as vossas relações de fraterna e cordial amizade Durante a cerimónia de iniciação maçónica, no momento da investidura, o Venerável Mestre entrega ao Irmão Mestre de Cerimónias um Avental branco, para que o ponha no neófito enquanto esclarece que este é a sua principal insígnia, pois, conforme já referido, é o emblema do trabalho. O Venerável Mestre prossegue, dizendo: “Recomendo-vos que a useis e considereis como tal, e asseguro-vos que, se nunca a desonrardes, ela jamais vos desonrará.”

O Venerável Mestre continua, esclarecendo que “Sem ela não podeis comparecer às nossas sessões, mas também não a deveis pôr para visitar uma loja em que haja um irmão com quem estejais em desacordo ou contra quem mantenhais alguma animosidade, sem que previamente se restabeleçam as vossas relações de fraterna e cordial amizade Suportando-me novamente nos escritos de William Harry Rylands7, é nos dito que o mais conhecido primitivo representante dos aventais dos Maçons especulativos é aquele que se encontra no frontispício do Livro da Constituição, publicado em 1723, no qual um Irmão é representado entregando na Loja um certo número de Aventais e de Luvas, parecendo os primeiros terem tamanho considerável e cordões compridos.
Com o passar dos tempos, o Avental foi sendo alvo de várias adaptações livres, ao ponto de ter havido a necessidade da produção de normas e regulamentos que tentassem evitar os exageros e a descaracterização deste tão importante símbolo. Actualmente, a maioria dos Aventais Maçónicos é rectangular, com uma abeta triangular.

O Aprendiz, usa um Avental branco, com a abeta levantada, pelos motivos já atrás expostos. À sua cor, branca, pode ser também atribuída o significado da inocência, já que foi purificado pela sua iniciação e tem muito pouco conhecimento da Maçonaria.

O Companheiro, usa exactamente o mesmo Avental que o Aprendiz, mas com a abeta para baixo. Já tem mais conhecimentos que lhe permitem o trabalho da pedra com a produção de menos fragmentos. Tem uma menor necessidade de protecção.

Por último, o Mestre, tem um Avental branco, orlado de encarnado ou azul, consoante a Potência da loja simbólica ou o Rito praticado, e com as letras M e B bordadas no interior do rectângulo.

Autor: Abílio Mendes