quarta-feira, 31 de março de 2021

Quo Vadis Verdade

Quando iniciei as providências para discorrer sobre um “valor”, cedo me decidi pela “justiça”. É que a experiência profissional de três décadas a trabalhar na área do stresse fez-me perceber a importância da justiça na saúde da mente e do corpo, não olvidando as repercussões no que ao social diz respeito.

Com efeito, o ser humano, na sua essência bio-psico-social - seja na família, nas empresas, na sociedade, mas também na relação consigo mesmo -, é tingido pela virtude da justiça, no seu sentido lato relativo à equidade, imparcialidade e à integridade. Se ser tratado com justiça é um direito, relacionar-se com os outros de forma respeitosa e justa é um dever. 

Sobrevém que, a determinado momento da minha pesquisa e reflexão, me dei conta que a justiça não tem sentido sem “verdade”: ou será que pode haver justiça na mentira, na falsidade e na hipocrisia? Não creio, nem mesmo na mentira piedosa que muitos de nós preferem recorrer quando confrontados com situações relacionais difíceis.

Assim sendo, este escrito debruçar-se-á sobre aspetos do “valor verdade”. Digo “aspetos” porque, tratando-se de um conceito primordial da constituição do ser humano, é necessariamente abrangente, abraçando várias áreas do conhecimento, o que significa que as suas “hastes” podiam ser “pegadas” de vários vértices. 

Não tendo a pretensão de exaurir o assunto, no que seria uma jactância narcísica de abraçar o mito e a ilusão perfecionista de vislumbrar a verdade em todos os seus vértices, a minha escolha recai no lavrar terrenos em que me sinto mais confortável - e onde granjeei conhecimentos e experiência-, e que mais me cativam, a saber: os da subjetividade da mente humana, obviamente não desaproveitando a oportunidade de acostar, q.b., outros ângulos que se me afigurem importantes.

A “psicologia da verdade” pode ser vista como uma caixa preta de um avião, em que nela tudo fica registado. A mente também regista tudo, mas o sentido, a semântica dos registos, são filtrados pelas perceções decorrentes de sentimentos, afetos, emoções, pensamentos, crenças, sensações, linguagem (...). Assim, a verdade torna-se subjetiva, todavia nem por isso menos válida em relação à dita verdade objetiva.

Considerando que a busca da verdade constitui um dos problemas fundamentais da filosofia, não posso deixar de a realçar, porém, assumo conscientemente a opção por salientar a psicologia pois, como muito apropriadamente refere Donald Meltzer , um destacado psicanalista norte-americano, “toda a psicopatologia resulta de um autoengano”, por conseguinte encerrando na sua essência um dilema de verdade. 

Para além de Freud, que consolidou todo o edifício teórico-prático da psicanálise a partir da “falsificação mentirosa”, que as suas pacientes histéricas faziam das verdades reprimidas, também Wilfred Bion, um dos marcos da psicanálise, dedicou-se, a partir de 1958, no seu livro que traduzo por “Na Arrogância” , ao problema da verdade.

De acordo com este autor, que destacou os conceitos de verdade, falsidade, mentira e hipocrisia, o processo que leva à sua formação está intimamente associado à evasão do conhecimento das verdades. 

Pergunta: mas porque é que isto acontece se a criança está inatamente preparada para descobrir a verdade? Eis a resposta psicanalítica: por impedimentos principalmente emocionais, porque o ser humano está mais voltado para evadir e dominar as emoções difíceis do que propriamente para as enfrentar e, assim, promover um autêntico crescimento da personalidade. O ego, propugna a psicanálise, tem medo de conhecer as verdades porque elas estão associadas a intensos conflitos emergentes dos seus dramas e tragédias íntimas.      

Mas voltemos a Bion. Enquanto a falsificação configura um processo eminentemente inconsciente, na mentira predomina uma intenção consciente, ou pré-consciente, de produzir uma distorção da verdade. Já sobre a hipocrisia o psicanalista esclarece: “o facto de um indivíduo ter ódio à “não verdade”, não é o mesmo que ter amor à verdade”; e acrescenta, “a forma hipócrita de lidar com a verdade pode ser observada nas personalidades obsessivas, as quais, embora o façam de forma honesta, não toleram transgressões às verdades conhecidas, porém, a título de funcionarem como vestais da verdade, elas opõem-se tenazmente ao surgimento de outras faces ocultas dessa mesma verdade, ou de outras tantas intoleráveis” . 

Nas palavras do saudoso Carlos Amaral Dias - para quem, como psicanalista, mestre e amigo, tenho uma enorme dívida de gratidão-, estamos na presença de uma defesa psicológica inconsciente para não se ser “apanhado com as calças na mão”. Um exemplo delicioso disto mesmo foi muito bem popularizado por Herman José, na célebre figura do Diácono Remédios, que no seu discurso rançoso moralístico de índole religiosa, “não havia necessidade”, faz assomar, por trás de uma protocolar secretária, duas sedutoras, sexies e experientes donzelas, simulando o fellatio. Eis a verdade da mentira do colorido obsessivo, não necessariamente patológico, aliás muito bem conhecido e descrito pela psicanálise.

No que diz respeito à origem e conceção, três vocábulos se distinguem, cada um deles com uma aceção diferente de verdade: a palavra latina veritas, a hebraica emunah e a grega aletheia. 

Veritas refere-se à precisão do discurso, relacionando-se ao rigor exatidão de uma descrição ou relato, no qual se diz - com detalhes, pormenores e fidelidade -, o ocorrido. Emunah significa confiança; a verdade é uma crença com raiz na esperança e na confiança, por conseguinte relacionadas com o futuro, com o que será e com o que advirá. Por último, aletheia tem a ver com o não oculto, não escondido, não dissimulado, por conseguinte aquilo que se manifesta aos “olhos do corpo e do espírito”. 

Dito de outra forma:
- No predomínio do latim veritas considera-se que a verdade depende do rigor e da precisão da linguagem; 
- Quando prevalece o hebraico enumah, a verdade depende de um acordo ou de um pacto de confiança - histórico, político... -, que deve ser respeitado por todos: o que se combinou vai mesmo acontecer;  
- Na influência do grego aletheia considera-se que a verdade está na evidência, isto é, na visão intelectual e racional da realidade, tal como é em si mesma, alcançada pelas operações da nossa razão ou do nosso intelecto. 

De acordo com Paulo Guiraldelli (2001, p.2) , “quando dizemos aletheia estamos nos referindo ao não-oculto ou ao que não está dissimulado. Aletheia é o oposto de pseudo ( ), que é justamente o escondido, o que está encoberto. Não importa aqui se é o "olho do corpo" ou o "olho do espírito" que está olhando. O que importa aqui é que ambos, quando estão vendo o verdadeiro, estão diante de algo manifesto próprio das coisas. A verdade está nas coisas. Falar verdade é dizer o que está na realidade manifestada e não na realidade que não se manifesta, oculta, a que engana”.

Ainda sobre a etimologia da palavra aletheia, o psicanalista brasileiro António Rezende  faz umas considerações interessantes. Para ele esta palavra forma-se a partir dos étimos “a” (sem) + letheia (esquecer). À letra, aletheia poderá significar não esquecimento, não negação: neste sentido “ser verdadeiro é não esquecer as coisas que merecem ser pensadas, vivenciando-as na prática” (p. 157). De outro ponto de vista, refere o autor, verdade também aparece como “desvelamento”, “desnudamento” e “desmascaramento” (ibidem, 174) da máscara (do grego persona, e daqui a palavra personalidade) ou dos papéis mascarados, disfarçados e trasvestidos que representamos, e que nos identifica, socialmente, para não falar da dissimulação que contruímos para esconder, de nós mesmos, as verdades não admissíveis.

Trilhando este caminho, urge perguntar: “quem sou eu”?; “qual é a verdade de mim mesmo”?; “eu sou o que mostro”?; “a imagem que vejo ao espelho sou eu mesmo”?; “o comportamento e as atitudes que tenho em sociedade são autênticos e genuínos, ou fazem parte da mentira que adotei para me proteger dos meus sentimentos de insuficiência”?; “quando me olho ao espelho e questiono, há alguém mais belo, puro e sábio do que eu, estou a falar de mim ou de uma mentira que criei de mim?”. Para se ser justo e verdadeiro, primeiro para connosco mesmos, depois para com os outros, é indispensável que nos conheçamos, pelo que não surpreende a sábia verdade socrática “conhece-te a ti mesmo”, aliás o mesmo que proferiu o célebre paradoxo “só sei que nada sei ou sei uma coisa: que eu nada sei”.

Num livro delicioso, que aconselho a todos vós, Brené Brown , uma assistente social americana e investigadora, surpreende-nos com a frase “mostre-se como é de verdade. Essa é a única forma de viver a vida”, ou de consumir a vida, como diria Irvin Yalom no seu livro “Quando Nietzche Chorou” . 

Mas o que significa viver a vida, e não “ser vivido por ela” ; o que quer dizer viver com ousadia?; o que exprime escolher a vida e não ser escolhido por ela?

Na resposta a esta questão Brown cita Theodore Roosevelt, que num discurso sobre Cidadania na República, em 1910, disse: “Não é o crítico que conta; nem aquele que aponta para o homem forte que tropeça ou diz que os que realizaram algo o podiam ter feito melhor. O crédito pertence ao homem que está de facto na arena, com o rosto desfigurado pela poeira, suor e sangue; que se esforça com valentia; que erra, que falha vezes sem conta, pois não há esforço sem erros e falhas (p. 9)”. 

Cravam-nos - bem fundo -, na nossa mente, “pregos” supostamente indolores , que na arena da vida temos que ser, ou mostrar, que somos bons, perfeitos, bem-sucedidos, espertos, seguros, extraordinários (...), o que nos faz tropeçar na ratoeira de desejarmos secretamente ser super-homens, almejar sermos fortalezas inexpugnáveis e invencíveis. 
Será que estou a exagerar e a dramatizar? 

Evidentemente que estou a ser enfático! Obviamente que nunca assumiremos isto porque está em causa um sentimento no âmago de nós mesmos que passamos em surdina àqueles que amamos, como os nossos filhos. Ser vulnerável, nem pensar, mostrar vulnerabilidade, nunca jamais em tempo algum, porque a vulnerabilidade (definida comummente como a suscetibilidade de ser ferido; ser sujeito a ataque ou dano) é fraqueza, é colocarmo-nos a nu, é prestarmo-nos à humilhação, à vergonha pública, e dos fracos não reza a história, diz-se. 

Mas estar vivo não é ser vulnerável? Qual é a verdade e essência da natureza humana? Quando susteremos de nos mentir a nós mesmos? E não será isso uma verdadeira traição a nós mesmos, uma “traição do eu”, como diria Arno Gruen no seu livro com o mesmo nome? 

A pandemia deixou a nu a nossa vulnerabilidade. É uma verdadeira ferida no narcisismo humano. Se considerarmos os três verdadeiros golpes aludidos por Freud, seria a quarta: 1ª) a descoberta de que a Terra gira em torno do Sol, e não o contrário (Copérnico e a Galileu); 2ª a evolução biológica das espécies que retirou o carácter divino ao homem (Darwin); 3º a descoberta dos processos mentais inconscientes pela psicanálise, pelo que todo o comportamento não é por acaso (Freud).

Numa era digital, moldada pela internet - grande feito da inteligência humana, mas também o esgoto da humanidade -, e pelas redes sociais – verdadeiro big brother à escala planetária – o espetáculo, o ruído mediático da informação e contra informação, da notícia ténue, passageira, reativa e de consumo rápido, transformaram o mundo atual numa vacuidade promíscua, num vazio em que a verdade é um conceito destinado a desaparecer do léxico dos melhores dicionários, em que falar a verdade sobre a vida real dificilmente sobrevive à necessidade de consumir emoções rápidas, verdadeiro fast-food servido em pratos coloridos a sangue – sim o que interessa é fazer sangue, quanto mais melhor. E o que dizer das mensagens com que todos os dias somos bombardeados, verdadeiro terrorismo verbal que não só nos atordoa os ouvidos como entorpece e anestesia a mente, principalmente num momento em que a serenidade, lucidez e a verdade seriam mitigadoras do sofrimento humano?. Por último, o que dizer do processo intestino, autêntica diarreia mental verborreica, cuja repetição das mesmas coisas, e das mesmas palavras, até à exaustão, nos criam sensações de vómito, náusea e enjoo e sentimentos de ansiedade, depressão e desmoralização?

Não é só nos Estados Unidos da América que se vive a era da pós-verdade, como o refere Fareed Zacaria no programa GPS, emitido na RTP3 no passado dia 23 de janeiro. Também em Portugal, estou-me a referir à verdade sobre a realidade da pandemia nos hospitais que teima em não aparecer, grassa a pós-verdade. E não pensem que não há perigo para a democracia porque, como o refere Tim Snyder - professor de história em Yale, especialista em Holocasto e autoritarismo, autor do livro publicado recentemente On Tiranny -, a pós-verdade é o pré-fascismo. 

Mas o que é a pós-verdade? 
Trata-se de um “neologismo que descreve a situação na qual, na hora de criar e modelar a opinião pública, os factos objetivos têm menos influência que os apelos às emoções e às crenças pessoais” . Na pós-verdade aceitamos que só há uma opinião e não há verdade, é uma cultura que deixou desaparecer as fontes dos factos. Aqui, os critérios da evidência, ausência da contradição e da prova, verdadeiros critérios de verdade que permitem distinguir um juízo verdadeiro de um falso, não têm cabimento. 

E o que sucede neste tipo de cultura? 
Quando as pessoas não acreditam na verdade, e não há factos, diz Timothy Snyder, caímos na crença, cria-se um vazio que é preenchido pelo espetáculo e pelo mito. Quando não há verdade os políticos carismáticos preenchem esse vazio., remata o historiador.

Um mestre, sem mestrado, mas com muita arte e engenho neste tipo de fazer política foi, e ainda é, Donald Trump. De acordo com uma investigação do Whashigton Post, o ex-presidente dos EUA fez 30.529 declarações falsas ou enganosas durante os quatro anos que esteve na Casa Oval; contudo, diz Fareed Zacaria, o mais grave não é o ataque ao Capitólio mas, outrossim, a mentira indecorosa e indigna criada que, 75% dos republicanos, cerca 40% dos americanos, acreditam ser verdade, a saber: que Donald Trump perdeu as eleições porque foi escandalosamente roubado, não obstante as evidências em contrário. A grande dúvida atual nos EUA, acrescenta o jornalista, é como é que o país inteiro, não só a Casa Branca, volta à sinceridade, ou à verdade de um Estado de Direito e a todos os pilares de uma democracia saudável.

E o que acontece mais próximo de nós? 

Sem qualquer intenção de cariz político ou ideológico da minha parte, vejamos dois exemplos:

- Luís Marques Mendes, no espaço de opinião semanal na SIC, relativamente ao estado da pandemia em Portugal  dizia que “é preciso serenidade e verdade da parte dos governantes, porque o exemplo vem de cima”;

- Patrícia Pacheco, diretora de infeciologia do Hospital Amadora-Sintra, em entrevista ao Observador , sem rodeios e papas na língua, com um discurso duro de quem viu o hospital onde trabalha ser “virado do avesso” para se transformar numa “amálgama de gente dedicada à Covid 19”, disse que aquilo que mais se sente nos corredores do Amadora-Sintra é a “frustração e indignação”, e acusa o Governo de ter deitado tudo a perder ao “mentir” aos cidadãos e fazer uma gestão “errática” da pandemia. E acrescentou: “A falta de honestidade e de transparência perturba-me, acho que é o pior que um líder pode ter e é o pior que esta liderança do Ministério da Saúde tem: não ser transparente, desvalorizar sistematicamente os problemas que existem, em vez de os encarar, em vez de dizer de uma forma muito clara que nós temos limites e que não os devíamos ter ultrapassado”.

“A verdade é aquilo que resiste ao teste da experiência”, disse Einstein; “três coisas não podem ser escondidas por muito tempo: o sol, a lua e a verdade, afirmou Buda; “Sem a busca da verdade, a sociedade depressa decai”  , “alcançar a verdade é desdobrar a vida, é dar-lhe a mais ampla possibilidade de expressão. Para mim, a única meta, o único mundo que é eterno, (…) absoluto, é o mundo da verdade” , proferiu Krishnamurti; “(...) e a verdade vos libertará” (João 8,31-32).

 Permitam-me agora a audácia de questionar: aonde estão os homens e as Instituições de bem, como a Maçonaria, que poderiam, e deveriam, assomar à janela numa atitude de coragem, falando e defendendo a verdade, fazendo a verdadeira diferença neste marasmo caótico de vacuidade existencial? 

Considerando que o escrito já vai longo, e porque, como diz o ditado, “Falar muito e bem é talento de quem sabe; pouco e bem, é de carácter ajuizado; muito e mal, é vício do enfatuado; pouco e mal é condão do tolo”, permitam-me concluir apresentando a minha verdade, exprimindo algo que me engasga e tolda já há algum tempo. 

Segundo o Ritual do Grau do Aprendiz Maçom, “a maçonaria é uma sociedade de homens esclarecidos, unidos para trabalhar em comum para o aperfeiçoamento intelectual e moral da humanidade” (p. 93). O que está a maçonaria portuguesa, em geral, a nossa Loja e os irmãos, em particular, a fazer em prole da verdade que aludo neste trabalho?; Estamos a ser verdadeiros connosco mesmos, com o outro, nosso semelhante, e com os princípios que, todos nós, um dia, jurámos defender e prosseguir? 

Não consigo profetizar o meu futuro na Maçonaria. Os tempos não estão fáceis, grassando em mim desmotivação e descontentamento com o que entendo ser uma certa inércia e passividade geral. 

O que é que eu gostaria de ver? 

Mais verdade nas relações e na luta pelos princípios que são os nossos. 

Utopia? Ilusão? Talvez, mas não deixa de ser esta é a minha verdade, o meu desejo. Caso contrário vejo-me compelido a colocar uma máscara, fazer de conta, e isso é traição a mim mesmo. 


Autor: Jiddu Krishnamurti

 

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