terça-feira, 28 de maio de 2019

A Estrela Flamejante

A Estrela Flamejante, importante símbolo para a Maçonaria, é um pentagrama, ou estrela de 5 pontas, que tem sua origem entre os sumérios, na antiga Mesopotâmia, onde três estrelas, dispostas em triângulo, representavam a trindade divina Shamash, Sin e Ichtar (Sol, Lua e Vénus). Era também o símbolo da deusa romana Vénus, e assim é associado a este planeta cuja órbita, vista da Terra, descreve aparentemente uma estrela de cinco pontas, como foi apontado por Ptolomeu nos seus estudos astronómicos.
Na Natureza, o pentagrama é o signo do quinto Elemento, o Éter, assinalado na sua ponta superior, enquanto nas demais pontas inferiores se assinalam os restantes quatro elementos naturais: Ar, Fogo, Água e Terra. O pentagrama (ou pentalfa) também é símbolo do Infinito: dentro do pentágono no centro do pentagrama é possível fazer outro pentagrama menor, e assim sucessivamente.
A estrela flamejante possui uma simbologia múltipla, sempre fundamentada no número 5, que representa o casamento unindo o masculino (o 3) e o feminino (o 2), desta forma simbolizando a união dos contrários necessária à realização espiritual. Por essa razão, na matemática com origem na Escola Pitagórica o pentagrama (símbolo dessa instituição grega) anda ligado ao número de ouro ou Phi (que tem o valor 1,618) que é composto por um pentágono regular e cinco triângulos isósceles. A razão entre o lado do triângulo e a sua base (lado do pentágono) é o número de ouro. A Estrela Flamejante, por simbolizar o poder do fogo pode também simbolizar a magia, negra ou branca, podendo invocar o bem (se tiver sua ponta para cima) ou o mal (se a ponta estiver direcionada para baixo). Era o símbolo dos alquimistas e ainda hoje é utilizada nos rituais de bruxaria e esoterismo.
Quem deu o nome de Estrela Flamejante ao pentagrama foi o teólogo e médico Enrique Cornélio Agrippa de Netesheim, nascido no final do século XV, que também se dedicava à magia, à alquimia e à filosofia cabalística e que era natural da cidade de Colónia, na Alemanha.

Na maçonaria, entretanto, a Estrela Flamejante só foi introduzida em meados do século XVIII, na França, pelo barão de Tschoudy, criador do Rito Adonhiramita. O seu aparecimento na Maçonaria, a partir de 1737, não encontrou aceitação em todos os Ritos, pois os construtores medievais conheciam a figura estelar apenas como desenho geométrico e não com interpretações ocultas que se introduziram na Maçonaria especulativa. A Estrela Flamejante corresponde ao Pentagramaton ou Tríplice Triângulo cruzado dos pitagóricos. Distingue-se do Delta ou Triângulo do Oriente, embora, entre os antigos egípcios representasse também Horus que em lugar do pai, Osíris, passou a governar as estações do ano e o movimento. Importa igualmente saber que os pitagóricos a usam para representar a sabedoria (sophia) e o conhecimento (gnose) e provavelmente por isso incluíam no interior do pentágono a letra gama, de gnosis.
A estrela flamejante tanto pode ter cinco, como seis pontas. Também conhecida como Flamante, ou rutilante, pode ser, em Maçonaria, Pentagonal ou Hexagonal. A Pentagonal, ou Pentagrama, ou pentalfa, está presente na maior parte dos ritos. A de Seis Pontas está presente no Rito de York. Enquanto que dentro do Pentagrama, é muitas vezes colocado o homem com os braços e pernas abertas, dentro da Estrela Flamejante, o “homem” material é consumido pelas chamas e já não aparece visível. A sua posição passa a ser, exclusivamente no plano espiritual, pois seu corpo foi “consumido” pelas “chamas” purificadoras.
O verdadeiro sentido da Estrela Flamejante é Homonial, isto é designa o homem espiritual, o indivíduo dotado de alma. Ou seja, o indivíduo com o espírito que lhe foi concedido pelo Grande Arquitecto do Universo . A ponta superior da Estrela é a cabeça humana, a mente. As demais pontas são os braços e as pernas. Na Maçonaria essa ideia serve para lembrar ao Maçon que o homem deve criar e trabalhar, isto é, inventar, planear, executar e realizar, com sabedoria e conhecimento. Pode ocorrer que o ser humano falhe nos seus desígnios. O Maçon também pode falhar como ser humano, mas o seu dever é imitar, dentro dos seus ínfimos poderes o Grande Arquitecto do Universo.
As cinco pontas da Estrela lembram igualmente os cinco sentidos que estabelecem a comunicação da alma com o mundo material. Tato, audição, visão, olfato e paladar, dos quais para os Maçons três servem para a comunicação fraternal, pois é pelo tato que se conhecem os toques, pela audição que se percebem as palavras, e pela visão se notam os sinais. Mas não se pode esquecer o paladar, pelo qual se conhecem as bebidas amargas e doces, bem como o sal, o pão e o vinho. Finalmente pelo olfato se percebem as fragrâncias das flores e os aromas de perfumes. A letra “G” interior, com o significado de gnose ou conhecimento, lembra a quinta essência, quanto ao transcendental e lembra ao Maçon o dever de se conhecer a si mesmo.

Os diversos Ritos Maçónicos não são unânimes quanto à colocação da Estrela Flamejante no recinto do Templo. Uns colocam-na no oriente na frente do trono, outros configuram-na no interior do Delta, o que parece mais sugestivo, principalmente quando o Obreiro na elevação de Grau é chamado a contemplar o Triângulo Radiante. Outros, entendendo que ela é de brilho intermediário, isto é, de luminosidade simbolicamente situada entre a luz ativa do sol e a luz próxima ou reflexa da lua, colocam-na no meio do teto do Templo, ou pelo menos no meio-dia. Outros consideram-na uma Estrela do Ocidente.

Em resumo. A Estrela Flamejante que ilumina a Loja representa o Sol que clareia o mundo físico, a ciência que resplandece sobre o mundo intelectual e a Filosofia Maçónica que ilumina o mundo moral. Para o Maçon, constitui o emblema do génio que eleva a alma para a realização das supremas tarefas, e também simboliza a “Estrada Luminosa” da Maçonaria, a luz que ilumina os obreiros, o símbolo dos livres pensadores, a eterna vigilância e a proteção objetiva do Grande Arquitecto do Universo.

Autor: António Egas Moniz

terça-feira, 21 de maio de 2019

Morrer e matar em nome da Religião

No alvorecer do terceiro milénio e quando imaginávamos longe os conflitos religiosos derivados do fanatismo e fundamentalismo, é-nos dada a conhecer uma onda de violência desumana, onde é derramado sangue inocente todos os dias, onde os direitos fundamentais do Homem não têm qualquer valor, onde é simplesmente ignorada a "vida humana", e a dignidade do “ser” é espezinhada como pó numa qualquer rua, numa qualquer casa.
A religião enquadra-se num conjunto de valores culturais e de crenças, onde estão incluídas narrativas, tradições e símbolos sagrados, que se destinam a dar sentido à vida e assim explicar a sua origem e a do universo. Regida por um conjunto de valores morais e éticos “leis religiosas” tendo as suas próprias ideias ou dogmas sobre a natureza humana e de Deus, assumindo diferentes formas nas mais variadas culturas, algumas afirmam-se como unicamente válidas e obrigatórias, sendo que em muitos lugares estão associadas aos governos impondo as suas leis na saúde, na educação e no seio familiar, deixando assim de ser um fenómeno individual passando para o colectivo e social.
Não vou aqui falar sobre questões de fé, da crença em Deus ou em algo superior a todos nós homens e mulheres, pois para mim a questão religiosa nada tem haver da relação do homem com Deus, com o Deus em que acredita ou da nossa relação com o divino. Pois o homem como ser espiritual que é por natureza, não conseguirá jamais se satisfazer com as limitações que são impostas pelo que é físico e temporal. Podemos com a nossa razão medir, calcular e avaliar, mas a fé não está subordinada à razão, antes ela é em si mesma irracional.

Ao longo dos séculos verificamos que a religião foi na maioria usada como pretexto ideológico e politico para alcançar objectivos ligados ao poder, ao dinheiro, subjugando povos numa repugnante violência, e hoje ainda assistimos a formas brutais de negação da liberdade religiosa, e de imposição de “poder religioso instituído” mediante tortura psicológica, física, martírio e morte. Assistimos à subjugação de povos, onde a opressão, o obscurantismo imposto pelos dogmas e verdades absolutas veda qualquer caminho na busca da verdade, de pensar por si mesmo, não deixando assim ver a Luz da Razão, sendo que a Razão é a via que nos mostra os limites da nossa irracionalidade.
A maçonaria tem na sua essência, a união consciente de homens e mulheres livres, iguais, de bons costumes, ligados ao deveres da fraternidade trabalhando no objectivo de esclarecer os Homens para o progresso pacifico da humanidade, onde aprendemos a combater a ignorância e o fanatismo causa de toda a perversão. Temos a exemplo, nada longe no tempo, na Europa do Séc. XVIII, época em que se vivia profundos e dramáticos conflitos religiosos, nessa época conturbada a Maçonaria Especulativa nasce e cria raízes, abrindo um espaço de tolerância religiosa e politica entre si e em relação aos outros, onde a questão religiosa é ultrapassada pela designação do Grande Arquitecto do Universo, sem definição objectiva, para que cada um reveja nele ou a partir dele o fundamento das suas convicções religiosas e o possa aceitar como seu.

O nosso caminho é feito por uma estrada estreita, pois temos em nossas consciências e em nossas mãos a responsabilidade de através das nossas atitudes, sermos o exemplo na prática da justiça e de amor ao próximo, rejeitando todo o dogma que leva à destruição do homem. Trabalho esse que é feito com a incessante busca do Conhecimento, e, quem tem o Conhecimento tem a Responsabilidade de estender o que começa aqui, neste Espaço, ao nosso seio familiar, ao nosso trabalho, ao núcleo onde vivemos com os nossos amigos, vizinhos, comunidade, pátria, mundo, lugares onde devemos promover a Justiça, a Tolerância na aceitação das diferenças individuais sejam elas de ordem cultural, étnica ou religiosa, com base no respeito que a todos é devido, não abrindo espaço a comportamentos que invertam os princípios éticos e morais. Para mim, estar aqui convosco tem sido a minha melhor oportunidade de abrir a porta ao que é realmente válido, trabalhando em mim os símbolos que me são dados a ver e a sentir, os valores humanos, o direito à vida, ao “ser” individual, o direito à igualdade de oportunidade de trabalhar no sentido de me tornar uma pessoa esclarecida e isto faz-me pensar como o mundo seria diferente se colocasse-mos em prática uma coisa tão simples como: “amar o outro como a si mesmo”. Esta frase dispensa qualquer discurso, ela tem em si mesma tudo. Nela, nada se dilui ou perde. Antes nela tudo se encontra e tudo “Ilumina”.
Continuemos a trabalhar com Força, Beleza e Sabedoria, sob o Nível e o Esquadro, aqui e em nós, certa de que, dos pequenos passos que damos no caminho da Virtude surgem grandes acontecimentos, participemos com Alegria e útilmente na obra da Construção Universal, para que possamos dizer sempre e sem medo: Somos Livres e de Bons Costumes! Gostava de terminar com um poema de Rudyard Kipling onde é retratado o espírito tolerante inerente à maçonaria.

À Minha Loja Mãe de Lahore
E havia Hundle, o chefe da estação;
Baseley, o das estradas e dos trabalhadores;
Black, o sargento da turma de conservação,
Que foi nosso Venerável por duas vezes.
E ainda o velho Frank Eduljee,
Proprietário da casa As Miudezas da Europa.

E então, ao chegar, dizíamos:
Sargento, Senhor, Salut, Salam...
todos eram "Meus Irmãos",
E não se fazia mal a ninguém,
Nós nos encontrávamos sobre o nível,
E nos despedíamos sob o esquadro.
Eu era o Segundo Experto dessa Loja.
Lá em baixo....
Havia ainda Bola Nath, o contador;
Saul, judeu de Aden;
Din Mohamed, da seção de cadastro;
O senhor Babu Chuckerbutty,
Amir Singh, o sique,
E Castro, o da oficina de reparos,
Um verdadeiro católico romano.

A decoração do nosso templo não era rica,
Ele era até um pouco velho e simples,
Mas nós conhecíamos os Deveres Antigos,
E os tínhamos de cor.
Quando eu me lembro deste tempo,
Percebo a inexistência dos chamados infiéis,
Salvo alguns de nós próprios.

Uma vez por mês, após os trabalhos
Reuníamo-nos para conversar e fumar
Pois não fazíamos ágapes,
Para não constranger os Irmãos de outras crenças.
E de coração aberto falávamos de religião,
Entre outras coisas, cada um referindo-se à sua.

Um após outro, os irmãos pediam a palavra,
E ninguém brigava até que a aurora nos separasse,
Ou quando os pássaros acordavam cantando.
E voltávamos para casa, a pé ou a cavalo,
Com Maomé, Deus, e Shiva,
Brincando estranhamente em nossos pensamentos.

Viajando a serviço,
Eu levava saudações fraternais
Às Lojas ao Oriente e ao Ocidente de Lahore,
Conforme fosse a Kohart ou a Singapura.
Mas sempre voltava para rever meus irmãos.
Os da minha Loja Mãe.
Lá de baixo...

Como gostaria de rever aqueles velhos irmãos,
Negros e morenos,
E sentir o perfume dos seus cigarros nativos,
Após a circulação do tronco,
E do malhete ter marcado o fim dos trabalhos,
Ah! Como eu desejaria voltar a ser um perfeito maçom,
Novamente, naquela Loja antiga.

Diria então Sargento, Senhor, Salut, Salam...
Pois seriam todos meus irmãos,
E ali não se faria mal a ninguém
E nos encontraríamos sobre o nível,
E nos despediríamos sob o esquadro,
Eu seria o Segundo Experto da minha Loja,
Ficaria lá em baixo.

Autor: Autor: Asherah

terça-feira, 14 de maio de 2019

A Simbologia das Velas em Loja

Desde os tempos mais remotos, a vela é um elemento associado à materialização dos desejos de quem faz uma prece. Sobre ela, através dos vários processos ritualísticos, é depositada a intenção e o desejo de realização de um objecto específico.
O uso de velas em Lojas Maçónicas é um costume muito antigo. Durante o século XVIII os Maçons ingleses acendiam velas liturgicamente, sobre altos candelabros. A verticalidade da chama da vela, símbolo da vida ascendente, simboliza a Luz da alma na sua força ascensional, a pureza da chama espiritual que sobe para o céu e a perenidade da vida pessoal que chega ao seu zénite.
A vela apresenta um simbolismo ternário, que para os escritores religiosos representa a Santíssima Trindade: Pai, a cera, o corpo da vela, Filho, o pavio, e Espírito Santo, a chama. Mas ela representa também o ternário Corpo, Alma e Espírito e é a imagem da sublimação espiritual.
A vela é também utilizada em cerimónias de iniciação. Todo o iniciado recebe a Luz. Este tipo de iniciação está muito bem simbolizado no Novo Testamento quando os apóstolos receberam a Luz do Espírito Santo sob a forma de línguas de fogo descendo dos céus, ou quando um neófito é baptizado. Portanto, o Iniciado recebe uma Luz vinda do alto, do poder de Deus, vinda do fogo infinito, da imortalidade simbolizada no acto iniciatório pela chama da vela.
A chama simboliza a sabedoria dos iluminados. Os três altares dos Poderes que governam as Lojas Maçónicas têm nas velas o símbolo da sua sabedoria, da sua iluminação, como era um símbolo de iluminação a chama que veio dos céus trazer o Espírito Santo, a iluminação, para os Apóstolos.
As velas são ainda, com suas chamas, o símbolo da transformação a que se deve submeter permanentemente o maçon na sua busca incansável pelo aperfeiçoamento pessoal. O fogo não é uma matéria como o criam os antigos sábios, ele é um processo de transformação como a Maçonaria também é um processo, uma luta contra a incompreensão, o preconceito e a injustiça, a imoralidade.

As luzes nas Lojas são objectos ritualísticos e de simbologia muito profunda. Na Maçonaria as velas não são meramente decorativas ou instrumentos de iluminação. Elas participam de um simbolismo muito profundo quando da invocação do Grande Arquitecto do Universo no início das sessões.
O acendimento das velas obedece a alguns princípios que seguem as antigas tradições. O fogo sagrado deverá vir sempre do Oriente, pois toda sabedoria vem do Oriente. As velas não podem ser acesas através de isqueiros, fósforos, ou qualquer outro meio que produza fumo ou cheiro. Da mesma forma não podem ser apagadas com o “hálito”, que é considerado impuro, ou com a mão. A Maçonaria foi buscar esta tradição à Pérsia, onde o culto do fogo era tão sagrado que jamais empregavam o “hálito”, ou sopro para apagar uma chama. Nada existia de tão precioso nem tão sagrado entre os persas como o fogo, que eles guardavam com muito cuidado, porque nada existia que representasse tão bem a divindade como o fogo, motivo porque eles nunca apagavam uma vela com o sopro, nem o fogo com água, procurando antes abafá-lo com terra.
A cerimónia do acendimento das velas dos três pilares colocadas a Sueste, Noroeste e Sudoeste, recorda três atributos do Grande Arquitecto do Universo - Sabedoria, Força e Beleza, recordados durante a preparação da abertura da Loja para o início dos trabalhos de construção do Templo e ritualizados através das falas "Que a Sabedoria presida à construção do nosso edifício, Que a Força o complete e que a Beleza o decore".

Autor: António Egas Moniz

terça-feira, 7 de maio de 2019

Adelaide Cabete – mulher, portuguesa e progressista

“Àqueles timoratos que perguntam onde irá o feminismo parar, responder-lhes-remos: o feminismo terminará onde acabam todas as ideias de progresso e toda a esperança generosa; terminará onde acabam todas as aspirações justas”. A. Cabete, 1924.
Adelaide Cabete é uma das figuras femininas mais importantes da história portuguesa do início do século XX.

Nasceu em Elvas, a 25 de Janeiro de 1867. Oriunda de uma família muito modesta, desde cedo foi obrigada a trabalhar na apanha da ameixa e em casas de famílias ricas, o que a impediu de frequentar a escola primária. Certa madrugada, no campo onde trabalhava, acordou assustada por uns gemidos abafados. Tendo consciência de que algo estranho acontecia, foi, pé ante pé, espreitar. Viu então uma sua companheira que acabada de parir, sufocava com uma almofada a criança que lhe nascera. Adelaide recuou cheia de terror. Guardou na sua alma a dor e o pasmo do que presenciara. Adelaide era analfabeta. No entanto, era extraordinariamente inteligente e sensível. Percebeu que só a desgraça e o desespero podiam arrastar alguém ao crime hediondo que testemunhara. Mas, já nessa idade, apesar destes condicionalismos, era um ser livre. Não perdeu de vista o essencial e aprendeu, praticamente sozinha, a ler e a escrever.
Em 1885, aos 18 anos, casou-se com Manuel Ramos Fernandes Cabete, sargento da Polícia Municipal, com qualidades invulgares para aquela época, que a ajudava nas tarefas domésticas e que a incentivou nos estudos e na militância republicana e feminista. Com ele aprendeu a olhar politicamente o mundo e a condição feminina. Por detrás desta grande mulher houve, sem dúvida, um homem grande que, ao contrário do que era, e às vezes ainda é habitual, não a ofuscou, mas apagou-se para que brilhasse.  Aos 22 anos (1889) concluiu a instrução primária, na altura em que a percentagem de analfabetismo era de 75%. Segue-se o liceu, auxiliada pelo marido que lhe explicava as matérias e, incentivada por este, para que não parasse Adelaide corresponde com agrado, e entra para a Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa com 29 anos. Sempre muito aplicada e trabalhadora incansável, Adelaide enquanto lavava, de rastos, o lajedo da sua grande cozinha, colocava o livro de Anatomia encostado ao balde e assim ia revendo as matérias. Acaba a Licenciatura em medicina no ano de 1900, na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, aos 33 anos de idade, com a tese “A Protecção às Mulheres Grávidas Pobres como meio de promover o Desenvolvimento físico das novas gerações”. Foi a terceira mulher a formar-se em medicina em Portugal.

No início da tese, faz um pequeno historial sobre a mortalidade infantil nalguns países da Europa e as alterações legislativas de apoio à mulher grávida verificadas nestes países. Faz uma avaliação dos efeitos destas alterações sobre a diminuição da mortalidade infantil, até então bastante elevada nalguns países, como Suíça, França e Bélgica entre outros. Os investigadores da época apontavam como medidas protectoras da mulher e da criança a importância do repouso no último mês de gravidez que conduzia a um aumento do peso dos recém-nascidos à nascença. Depois de várias considerações acerca destes estudos feitos em Portugal e no estrangeiro, Adelaide apela aos poderes do Estado os seguintes direitos:

1.º A promulgação de uma lei, em que se estatua para as mulheres grávidas empregadas em fábricas ou outros lugares de dependência particular, ou do Estado, o repouso de um mês antes do parto.

2.º A criação de maternidades, a começar pela capital, onde a instalação de uma em condições adequadas está sendo há muito tempo reclamada.

3.º
A criação de sanatórios de gravidez, creches e asilos para a infância, fomentação de mutualidades maternas ou outras denominações tendentes a auxiliar as mulheres pobres na sua gravidez e ministrando-lhes socorros nos domicílios.

4.º
Arbitramento às mulheres das fábricas ou outros lugares de dependência particular ou do Estado, de um abono ou subsídio pecuniário durante um mês antes dos seus partos, saído de um fundo que poderá ser constituído parte por um quantum tirado dos proventos da fábrica, parte pelo Estado e parte de uma quotização mensal imposta ao pessoal da fábrica de ambos os sexos.

5.º
Encarecer às autoridades municipais e administrativas a conveniência de promover conferências públicas nas suas áreas sobre este assunto.

6.º Finalmente exigir o rigoroso cumprimento do disposto na lei já como um dever da humanidade, já como medida puramente de interesse nacional e finalmente como satisfação ao decoro do poder.”

Viria a ser obstetra, ginecologista, lutadora pelos direitos das mulheres, pela República, pelos direitos das crianças e dos animais. A sua militância também se centrou na causa anti-alcoólica. No instituto de Odivelas foi médica e professora, regendo a disciplina de Higiene e Puericultura. Esta inovação foi controversa, pois os pais das alunas censuraram a ideia, dirigindo uma carta ao diretor em que manifestavam o seu receio por estes ensinamentos poderem despertar nas suas filhas o desejo de serem mães!
No entanto, refere Adelaide Cabete que “algum tempo depois as coisas mudaram e agora os pais das alunas ao visitarem o colégio, aquando do internamento das filhas, ficam radiantes ao verem o bebé que elas ali vestem e tratam”. Este ensino foi uma inovação em Portugal pois segundo Adelaide Cabete “no estrangeiro não há ensino de puericultura na escola”. Adelaide pretende que o ensino da puericultura na escola conduza a uma diminuição da mortalidade infantil, referindo: “Não basta ser mãe, é preciso sabê-lo ser”, “Quanto menor é a ignorância das mães menor é a mortalidade infantil”, “A mortalidade infantil diminui com o estudo da puericultura”; “O estudo da puericultura deve principiar a fazer-se na escola infantil”.
Boa oradora, participou em Congressos e Conferências. Escreveu dezenas de artigos, de temática diversa, essencialmente de carácter médico-sanitário e cariz feminista onde manifestou as suas preocupações sociais, apresentando soluções e medidas profiláticas de doenças e epidemias, publicando sobre o assunto as obras Papel que o Estudo da Puericultura, da Higiene Feminina, etc. Deve Desempenhar no Ensino Doméstico (1913), Protecção à Mulher Grávida (1924) e A Luta Anti-Alcoólica nas Escolas (1924).
Também escrevia artigos onde demonstrava as suas reivindicações de carácter feminista, esse campo fundou e dirigiu a revista Alma Feminina (entre 1920 e 1929), e colaborou com numerosas publicações periódicas como: Educação; Educação Social; O Globo; A Mulher e a Criança; Pensamento; O Rebate.

Como Republicana e Feminista, desenvolveu intensa actividade militante a favor do estabelecimento daquele regime político e pela dignificação do estatuto da mulher. Em 1910, com Beatriz Ângelo, coseu e bordou a bandeira nacional hasteada na implantação da República, na Rotunda, em Lisboa. Em 1912 reivindicou o voto para as mulheres. A sua vida associativa passou pelo Grupo português de Estudos Feministas (1907) e pela Liga Republicana das Mulheres Portuguesas (1908). Humanista, aplaudiu o encerramento das tabernas e manifestou-se contra a violência nas touradas, o uso de brinquedos bélicos e outros assuntos que se revelariam temas vanguardistas para a época, temas esses que ainda mantêm a sua actualidade.
Em 1914, fundou o Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, secção portuguesa do International Council of Women e mais tarde também da “Aliança Internacional para o Sufrágio Feminino”, sem o apoio dos partidos republicanos, tomando parte no Congresso Internacional de Roma, em 1923, no qual obteve grandes êxitos nos temas apresentados, abordando a condição social da mulher portuguesa e tendo feito um apelo de auxílio internacional para que a emancipação da mulher passasse a ser um realidade em Portugal. Em 1925 está presente no Congresso Feminista de Washington, pela segunda vez em representação do Gov
erno Português, chamando a atenção do mundo inteiro da necessidade de renovar as legislações caducas e cheias de preconceitos respeitantes à mulher.
Adelaide promove em 1924 o 1.º Congresso Feminista como forma de comemorar o décimo aniversário do CNMP e quatro anos mais tarde o 2.º, com enorme sucesso pelas teses apresentadas. Todavia, a propósito do 2.º Congresso, a imprensa reaccionária faz referência à “terrível” inovação de as mulheres portuguesas virem a público apresentar as suas razões.

Em 1929 vai com o sobrinho Arnaldo Brasão para Luanda, desiludida com a nova situação política do país que levará à implantação do Estado Novo. Aí, dedicou-se sobretudo à medicina e envolve-se em polémicas pela defesa dos indígenas. Em 1933 foi a primeira e única mulher a votar a Constituição Portuguesa, que instala o Estado Novo ao qual se opunha fortemente. Regressa em 1934, já doente e debilitada.

Além dos seus fortes ideais Feministas e Republicanos, Adelaide Cabete abraça os ideais Maçónicos, sendo iniciada em 1 de Março de 1907, em Lisboa na Loja Feminina Humanidade (n.º 276) do Rito Escocês Antigo e Aceito, e depois do Rito Francês, com o nome simbólico de Louise Michel, na qual se conservou enquanto aquela oficina laborou sob os auspícios do Grande Oriente Lusitano Unido, até 1914, tendo atingido o grau 18.º em 10 de Julho de 1911. Entre 1920 e 1923, pertence à Loja Humanidade que funciona com independência em rito francês, mas devido às polémicas no interior da maçonaria, vivencia sucessivos afastamentos e recomeços. Apesar de várias manifestações de solidariedade por algumas Lojas masculinas, em 1923, o Grande Oriente Lusitano Unido retira a igualdade de tratamento, exigindo que a Loja Humanidade ficasse como Loja de Adoção, isto é, sem os plenos direitos que antes detinha em igualdade com as Lojas masculinas. Depois desse acto de despromoção, esta então Venerável Mestre da Loja Humanidade (exclusivamente feminina), retirou a Loja da Obediência e pede ao Supremo Conselho Universal Misto do “Le Droit Humain” e à Ordem Maçónica Mista Internacional – “Le Droit Humain” a filiação desta Loja o que vem a suceder ainda nesse ano de 1923, fundando a Jurisdição Portuguesa da Ordem Maçónica Mista Internacional “Le Droit Humain” – O Direito Humano.
Após esta ruptura, Adelaide Cabete em conjunto com outros Irmãos e Irmãs, e lutando sempre com dificuldades de local de reunião, mas perseguindo tenazmente o objectivo de criar uma Federação autónoma em Portugal, criou pelo menos mais três Lojas a saber: a Loja Humanidade a Oriente de Lisboa; a Loja Fiat Lux a Oriente de Lisboa e a Loja Trindade Leitão a Oriente de Alcobaça, bem como pelo menos dois triângulos maçónicos, o Triangulo “Solidariedade” a Oriente de Beja e “Amaia” a Oriente de Portalegre, e duas Lojas de Altos Graus do Rito Escocês Antigo e Aceite, um Capítulo “Humanidade” e o Areópago “Teixeira Simões” ambos a Oriente de Lisboa, dando assim origem à Jurisdição Portuguesa de que foi Presidente até 1935 e por inerência Venerável Mestre do Areópago “Teixeira Simões”, chegando ao 20.º Grau. Não conseguiu, porém, as 7 Lojas nem os 150 membros para fundar uma Federação.

A actividade da maçonaria mista na sociedade foi grande, sendo de sublinhar as Ligas de Bondade, criadas em 1923, o 1.º Congresso Feminista e de Educação em 1924, já referido e o 1.º Congresso Abolicionista em 1926, resultante de meses de trabalho na Loja Humanidade. Neste último, Adelaide apresentou a tese sobre a Polícia Feminina, onde defendia a criação de secções de agentes femininos nos serviços policiais, como meio de protecção à criança, aos jovens e à mulher, no combate à prostituição, devendo ter uma função essencialmente educativa. Morre em Lisboa, a 14 de Setembro de 1935, com 68 anos.

Mulher dinâmica, de forte personalidade e grande frontalidade, o seu dinamismo não a deixou repousar sobre os louros conquistados. A sua acção não se limitou a teorias, traduziu-se em realidades práticas. Carinhosa e bondosa, de estilo simples, objectiva, de linguagem clara, mostrou que nem o berço nem o sexo limitam o ser.
Adelaide Cabete foi durante muitos anos a imagem progressista da mulher portuguesa no mundo.

In Grande Loja Feminina de Portugal -  G L F P