quarta-feira, 29 de maio de 2024

O Paradoxo da Tolerância em Democracia: que limites

Como nota introdutória, quero referir que considero o tema em análise deveras frutífero, e até complexo, o que talvez explique a razão pela qual tenha sido muito explorado aqui nas nossas sessões. E, por conseguinte, cabiam certamente em cada um dos segmentos desta pequena reflexão várias pranchas autónomas. Porém, para que tudo caiba numa só, passarei, dentro do possível, a sumariar.

Ora vejamos: O conceito de Democracia teve a sua origem na palavra grega demokratia, composta por demo - “povo” - e kratos - que se traduz como “poder” ou “governo”. Neste complexo sistema político, o povo fica adstrito à participação política que no fundo é o que motiva e justifica o próprio poder político. Democracia, assim, representa e pretende alcançar uma “unidade plural” - o que por si só, é claramente paradoxal. Representa uma unidade, comum e uniforme, que resulta da pluralidade de consciências e opiniões. São a diferença e a individualidade a produzir a semelhança e o comum. 

O conceito de Democracia, como sistema político, surgiu por volta do Séc. V a.C., na cidade de Atenas. Representava uma alternativa à tirania, conceito definido por Platão e Sócrates como sendo a marca da ilegalidade, ou seja, a violação das leis e regras instituídas que conduziam à quebra de legitimidade para governar.

Não obstante, Platão, na sua obra República, é muito crítico do modelo de democracia ateniense da época, por não ser um regime democrático na sua plenitude de direitos e deveres, uma vez que não era plena, pois era vedado às mulheres, aos metecos (os estrangeiros) e ainda aos escravos o direito a eleger e a ser eleito. Platão também já antevia a democracia como permeável à corrupção, tal como a vemos na democracia moderna.

Platão considerava este modelo “o governo do povo”, mas usava a palavra “povo” em sentido pejorativo, pois para ele o povo era facilmente influenciado por características irrelevantes, como a aparência dos candidatos, e preconizava que só os filósofos, por terem uma compreensão mais profunda da realidade do que as pessoas comuns, estavam preparados para governar.

Platão dizia que a democracia era uma forma corrupta de governo. O idealismo platónico era muito acentuado no tocante ao modelo político de democracia que defendia e que se baseava na ideia de que só os filósofos, porque falam a verdade e amam a sabedoria, estavam preparados para governar.

A ideologia platónica convoca o perigo da democracia ateniense pelo facto de esta admitir opiniões e paixões desprovidas de saber filosófico e de relativizar a verdade e vencer pelo argumento e pelas paixões, tal como os que se limitam a dar opiniões. A estes Platão chamava Sufistas, e aos que querem convencer pelo argumento e que não se preocupam com a verdade ou com o saber e aos que opinam para convencer as outras pessoas e que amam apenas a opinião, não possuindo o conhecimento e o saber dos filósofos, para Platão são os Filodóxos.

Não obstante os mais de dois mil anos que que nos separam, e as idiossincrasias respeitantes à capacidade de eleger e ser eleito muito restrita, Platão tinha uma visão muito crítica e muito próxima do modelo de democracia moderna, pois já antevia os perigos da corrupção e da disseminação através de fake news, tal como hoje somos confrontados no nosso quotidiano.

Aqui chegados urge perguntar. Apesar dos vícios apontados por Platão relativamente ao modelo de democracia ateniense e que estão patentes cada vez mais na nossa Democracia Moderna, haverá um outro melhor e que mais afirme direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.? Infelizmente, não existe outro melhor, como Churchill muito bem sintetizou numa só frase. Ora toda a filosofia pós-platónica liga a democracia, no desenvolvimento do seu conceito, à tolerância.

Convém, no entanto, que comecemos por definir o termo “tolerância”, que deriva do latim tolerate, que significa “suportar” ou “aceitar”, e cuja evolução recriou um conceito diverso, complexo e, por vezes, contraditório.

Tolerância é o ato de agir com condescendência e aceitação perante algo que não se quer, algo que não se compreende ou algo que não se pode impedir, mas que, ainda assim, estamos dispostos a aceitar.

A falta de tolerância leva às guerras. No entanto, e ao mesmo tempo, não devemos - nem podemos – tolerar as guerras. A falta de tolerância leva à discórdia, e ainda assim, é da discussão civilizada que nasce o consenso e o entendimento. Devemos defender tolerância a mais ou tolerância a menos? No fim, de que vale realmente a tolerância, se esta constitui um paradoxo em que parece ser a semente do entendimento e simultaneamente do próprio conflito?

Os limites da tolerância parecem estar encerrados na própria tolerância. No fundo, é como se alguém nos pedisse para aceitarmos de forma cega e superficial a sua opinião e ainda assim, sabendo que não o devemos fazer, aceitássemos fazê-lo. É uma imposição intelectual ingrata e desconfortável, porque sabemos quem somos, ou, pelo menos, o que queremos, e, no entanto, existe aquele momento em que temos de abrir mão das nossas crenças e ideias, para tolerar umas novas, por vezes completamente alheias e opostas às antigas. Não se trata de integrar, mas, uma vez mais, tolerar. E isto, veja-se, por nossa própria escolha livre.

Não estamos a discutir compaixão, nem tampouco entendimento ou reconsideração. Estamos a falar de aceitar pelo mero facto de aceitar. Por exemplo: sabemos que a Liberdade - tema que nos é tão caro - é um valor que deve ser respeitado ao mais alto e íntimo nível, mas ainda assim sabemos que não é um valor absoluto, e temos consciência dos limites em que a mesma se contém: “a minha liberdade termina onde a liberdade do outro começa”. Ora a tolerância também não pode ir muito mais além. Não é aceitável algo como: “eu tolero o que tomas como absoluto, apesar de não concordar, aceitar ou acreditar nisso”. Aqui, a Tolerância e o acto de tolerar começa a parecer extremista, forçado e desnecessário.

Tolerância começa a parecer uma imposição idealista sem uma vontade de verdadeiro conhecimento e compreensão. Tal conceito - ou ideal - não pode manchar os nossos objetivos e visões individuais e para a própria humanidade. Sabemos, todos nós, onde estamos e para onde queremos e ambicionamos ir. A tolerância tem de ser contida - talvez corrigida – e quando ultrapassar aqueles limites tem de ser rejeitada pura e simplesmente. A tolerância é assim um pilar fundamental da capacidade de uma sociedade global para coexistir harmoniosamente, respeitando as diversas crenças e promovendo a compreensão mútua: esta afirmação provém da Declaração de Princípios sobre a tolerância aprovada pela UNESCO EM 1995, e é a forma correcta de definir o correcto dever de tolerância.

Portanto a tolerância é como a liberdade, que não é um valor absoluto, mas relativo, isto é, com limites (eu não posso tolerar aquilo que viola os meus valores mais perenes), e é útil no sentido em que eu, aceitando a priori um ponto de vista alheio, posso daí partir para a sua refutação.

Isto tem toda a aplicação no trabalho maçónico. Não adianta contrariar logo o meu “irmão” porque me expôs uma conclusão para mim inaceitável. Tenho, com toda a tolerância, de ouvir o caminho que o levou a essa conclusão, para refutar o preciso ponto onde divergimos.

Tal método é essencial para o trabalho em Loja, e este conceito de tolerância é seguramente aquele a que se referem todos os catecismos maçónicos, quando – frequentemente – usam o termo. A discussão em Loja é profícua até ao ponto onde os Irmãos concordam… em discordar. Entendo que em Loja não é admissível o caminho: “- Não discuto contigo porque não estás de acordo com o que eu digo ou penso, logo não és igual a mim.” A diversidade e a complementaridade são a riqueza de uma Loja maçónica, que não pode ser escamoteada.

E isto é tanto a riqueza de nós, maçons, quanto é certo que, se este fosse o caminho do fórum político-social profano, o método de trabalho de quem quer alcançar o poder (económico, político, social), o conceito de democracia andava mais próximo, e não estava sujeito às críticas, de Platão. Mas nesse caso - lá está - estávamos no mundo ideal que ele preconizava: só os que falam a verdade e amam a sabedoria devem governar.

Não vos trouxe estas reflexões para resolver o paradoxo, porque não sei fazê-lo. Trata-se, apenas, de o apresentar enquanto o nó górdio das sociedades dos nossos dias, para suscitar uma reflexão.

Autor: Bocage

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