terça-feira, 12 de dezembro de 2023

Quem foi José Liberato Freire de Carvalho

José Liberato Freire de Carvalho, nasceu na Quinta de Monte São, freguesia de S. Martinho do Bispo, próximo de Coimbra, em 20 de Julho de 1772, era filho do Dr. Aires António Antunes Freire, Mordomo-Mor da Universidade de Coimbra,  e de sua esposa Maria Joaquina Freire de Carvalho.

Por influência de seus pais, mas também de seu irmão D. António da Visitação Freire de Carvalho, ingressou em 1787, com 15 anos de idade, na Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, no Mosteiro de Santa Cruz, em Coimbra, onde estudou Filosofia e Teologia, contudo manteve-se atento ao que acontecia na Europa, nomeadamente aos ecos da Revolução Francesa, através do contacto com um seu irmão frade do Convento de Grijó.

Sem particular vocação para a vida monástica, pediu e obteve transferência para o Mosteiro de Refoios do Lima, um ambiente bem menos disciplinador.

Terminados os estudos teológicos em 1795, recebeu em Braga as primeiras Ordens Sacras, sendo oficiante D. Frei Caetano Brandão, e adoptando o nome religioso de D. José do Loreto.

Permaneceu no Mosteiro de Refoios do Lima, até ao ano de 1800, ano em que foi nomeado professor de Lógica na escola anexa ao Mosteiro de São Vicente de Fora, em Lisboa.

Esta nomeação foi conseguida por influência de seu irmão D. António da Visitação Freire de Carvalho, que era ali professor.

Chegado a Lisboa ganhou acesso à excelente biblioteca do Convento de São Vicente de Fora, estabeleceu contactos com a melhor da intelectualidade da época, tendo privado, entre outros, com Gomes Freire de Andrade, Bento Pereira do Carmo e Manuel Maria Barbosa du Bocage.

As suas ideias libertárias levaram-no a integrar-se nos círculos pró-liberais e maçónicos, filiando-se na Loja Fortaleza do Grande Oriente Lusitano, onde significativamente, adoptou o nome simbólico de Spartacus.

Nos anos imediatos, dedicou-se com afinco aos estudos filosóficos, lendo os autores contemporâneos e desenvolvendo as suas capacidades intelectuais. Para além da Lógica passou a ensinar Retórica e Eloquência. Este processo foi interrompido em 1804 pela doença e morte do seu irmão D. António da Visitação, vítima de uma pneumonia. Este acontecimento causou-lhe grande consternação e obrigou-o a uma estadia com familiares em Coimbra e na Figueira da Foz, onde fez uma cura de banhos de mar.

Regressado a Lisboa, assumiu as funções de Grande Orador do Grande Oriente Lusitano, que entretanto se organizara para enquadrar as Lojas maçónicas existentes.

Em 21 de Novembro de 1804 foi feito sócio da Academia Real das Ciências de Lisboa, sucedendo no lugar ao seu falecido irmão, contudo, a sua permanência em Lisboa foi curta, pois o seu relacionamento com Hipólito José da Costa, acabou por atrair as atenções da Santa Inquisição e foi obrigado a abandonar o Mosteiro de São Vicente de Fora e recolher-se no Mosteiro de Grijó, em cujo Convento permaneceu até 1808, exilado por ordem da Intendência da Polícia de Lisboa, apesar das inúmeras diligências feitas junto dos poderes políticos e mesmo junto do Príncipe Regente D. João.

Desencadeada a Guerra Peninsular com a invasão de Portugal pelas tropas francesas e tendo ocorrido a transferência da corte portuguesa para o Brasil (1808-1821), foi finalmente autorizado a regressar a Lisboa, onde encontrou o Mosteiro de São Vicente de Fora a servir de alojamento a numerosos oficiais franceses.

Conhecedor da língua francesa, teve um papel importante no relacionamento entre a Ordem e as autoridades de ocupação francesas, relacionamento este, que criou a fama de ser pró-francês, razão pela qual após a Convenção de Sintra, o obrigou a procurar refúgio junto dos seus familiares em Coimbra, onde permaneceu até 1810, alegando doença, ano em que, por ser membro da maçonaria foi incluído na lista dos presos da “Setembrizada” em que foram embarcados e desterrados para a Ilha Terceira, contudo ficou impedido de regressar a Lisboa temendo ser preso e deportado.

No entanto após a Batalha do Buçaco foi feito refém em Coimbra pelas forças do general Massená e forçado a acompanhar o exército francês até Pombal e Condeixa, conseguindo em finais de Março de 1811 fugir aos seus captores quando pernoitava em Foz de Arouce.

Pouco tempo depois foi preso e encarcerado na Prisão da Universidade de Coimbra, acusado de ter acompanhado os franceses, após ter sido libertado passou a viver com os seus familiares em Coimbra, mas pouco tempo depois volta a ser preso por ordem da Regência do Reino e colocado incomunicável no Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra até 1813, aproveitando o tempo a fazer uma tradução portuguesa dos Anais de Tácito.

Em Agosto de 1813, sem nunca ter sido julgado, foi mandado para o Mosteiro de Refoios do Lima e proibido de contactar qualquer pessoa fora da comunidade de frades que ali habitava.

Quando passava pelo Porto a caminho do Mosteiro, por sugestão e com a ajuda de José Pinto Basto, recebeu um passaporte passado em nome de um pretenso criado de um negociante inglês e com ele chegou à Corunha onde embarcou com destino a Londres.

Na Corunha havia recebido um novo passaporte passado pelo Cônsul Britânico, escolhendo então o nome de José Liberato Freire de Carvalho, nome que conservaria para o resto da vida. A adição do nome de Liberato marcou a sua alforria, que acompanhou pelo abandono dos títulos eclesiásticos, considerando-se daí em diante desobrigado dos seus votos e do nome de D. José do Loreto.

Em Londres dedicou-se ao jornalismo e em 1814 passou a ser redactor de “O Investigador Português em Inglaterra”, um periódico de grande influência entre os emigrados portugueses no Reino Unido e mesmo junto das elites portuguesas. Quando o Duque de Palmela pretendeu fazer do periódico o órgão oficial do governo português no exilio, recusou, o que levou á suspensão da comparticipação que o mantinha. Fundou então o Campeão Português, um periódico que ganhou extrema importância durante o período que antecedeu a Revolução Liberal do Porto.

Após a implantação do regime liberal em Portugal, chegou a Lisboa em 1821, sendo convidado para ingressar na carreira diplomática. Não aceitou, optando por um lugar de adido no Ministério dos Negócios Estrangeiros, cargo que manteve por pouco tempo. Entretanto reingressou no Grande Oriente Lusitano, adoptando o nome simbólico de “Camarino Dirceu” .

Fundou em Lisboa o periódico que intitulou de O Campeão Português em Lisboa, manifestando grande independência editorial. Nele deu voz ás suas criticas ás circunstâncias que haviam conduzido a independência do Brasil e ao papel que nelas tivera o Príncipe D. Pedro de Bragança, futuro D. Pedro IV.

Feito deputado para as Cortes de 1822-1823, pelo círculo de Viseu, tendo prestado juramento em 22 de Novembro de 1822. Contudo na sequência da Vilafrancada foi enviado para a sua casa da Quinta de Monte São, em São Martinho do Bispo, com residência fixa. Foi indultado em 1824, mas recusou qualquer participação na vida política até 1826. Retomou o lugar no Ministério dos Negócios Estrangeiros e foi nomeado redactor da Gazeta de Lisboa, órgão oficial do governo português.

Com a subida ao poder do Rei D. Miguel, foi obrigado a passar á clandestinidade , mantendo-se assim até 1828, ano em que conseguiu regressar ao exilio em Londres, dedicando-se ao jornalismo e assumindo um papel determinante na mobilização dos emigrados liberais em Inglaterra no período inicial da Guerra Civil (1828-1834. Passou depois na companhia de Saldanha, a Paris, tendo integrado as forças liberais que vieram a reforçar os liberais sitiados no Porto, onde chegou em princípios de 1833.

Terminada a Guerra Civil, regressou a Lisboa, onde foi nomeado 2º. Grão-Mestre Interino do Oriente de Saldanha, ou Grande Oriente Lusitano da Maçonaria do Sul, de aliança “Saldanhista”, cargo que exerceu nos anos de 1834-1835. Em 1835 passou a ser membro da Sociedade Patriótica Lisbonense. Simultaneamente foi eleito deputado ás Cortes pelo círculo da Madeira para a legislatura que começou em 15 de Agosto de 1934 e terminou a 4 de Junho de 1836. Nesta legislatura destacou-se na discussão da lei de liberdade de imprensa, recusando a interferência dos poderes públicos no jornalismo e foi encarregado de redigir o Auto de Exclusão de D. Miguel.

Até á Revolução de Setembro de 1836, foi arquivista da Câmara dos Pares do Reino, sendo nomeado por Passos Manuel, presidente da Comissão Administrativa da Imprensa Nacional, cargo que exerceu até 1838. Após a revolução, foi eleito deputado ás Cortes Constituintes (1837-1838) pelo círculo de Lisboa, tendo participado activamente na discussão da Constituição Portuguesa de 1838, votando com a fracção mais radical.

Apesar de ter sido eleito deputado pelo círculo de Lisboa para a legislatura de 1838-1840, a partir de 1838 retirou-se progressivamente da vida pública, dedicando-se ás letras e á Academia Real das Ciências de Lisboa, de que foi um dos mais assíduos académicos. Ainda Assim, subscreveu com outros deputados setembristas, uma proposta de lei visando alterar a lei eleitoral vigente.

Destacando-se pela sua independência e desapego aos bens materiais, rejeitou todas as prebendas e vantagens  que lhe foram oferecidas tendo morrido pobre em Lisboa aos 82 anos de idade,  no dia 31 de Março de 1855.

Deixou uma vasta obra histórica, política e autobiográfica, sendo considerado como um dos principais ideólogos do primeiro liberalismo português, particularmente pela sua influência sobre a imprensa durante a fase da emigração liberal para Inglaterra e França.

Autor: Fernando Valle

domingo, 26 de novembro de 2023

A Alavanca

Um Símbolo consiste na representação visível de uma ideia ou de uma força nele ocultado. É fundamental procurar em cada símbolo o seu significado maçônico, aquele sentido que nos pode levar ao aperfeiçoamento moral e ético e que nos ajude a ter consciência das imperfeições da Pedra Bruta que somos para que as possamos corrigir.

Foi no decurso da cerimónia de aumento de salário que tomei consciência de que muito pouco ou quase nada sabia sobre a Alavanca, importante símbolo da Maçonaria. Senti então vontade, ou melhor, necessidade de conhecer exaustivamente o significado e tudo o mais que a ele se refere. É, pois, este o resultado do meu trabalho de pesquisa na procura do conhecimento do muito que diz respeito a este símbolo.

Na cerimónia de iniciação, o neófito, renascendo espiritualmente, começa um longo percurso da sua nova vida com a aprendizagem gradual dos segredos maçónicos, saindo da escuridão em que se encontrava passando para a “luz” do conhecimento que até então lhe era vedado.
Nesta celebração o candidato é submetido a três viagens, iniciando um processo de transformação pessoal pelo esforço contínuo de reflexão visando o aperfeiçoamento do conhecimento e da sua mente pela evolução intelectual, moral e espiritual.
O iniciado é sim, o que vive verdadeiramente a iniciação e não apenas o que ritualmente por ela passou.

Agora Aprendiz Maçon, tem como tarefa árdua o estudo e a assimilação do conhecimento referente a todos os símbolos que encontra dentro do Templo. 
O Aprendiz no seu processo de crescimento interior, filosoficamente começa simplesmente por aprender a desbastar a sua Pedra Bruta sendo simultaneamente a matéria-prima, a obra e o seu autor. Funciona assim a psicologia do desenvolvimento maçônico. Simbolicamente, começa por libertar-se de paixões, erros e vícios, passando de Aprendiz a Companheiro, deixando o três para assimilar o cinco.
 Alcançado esse objetivo é proposto para elevação ao grau de Companheiro, o segundo dos três Graus Simbólicos do Rito Escocês Antigo e Aceito. 

Já não sendo Aprendiz e sem ainda ter alcançado a posição de Mestre, como Companheiro assumirá então o importante estatuto de laço de união entre aqueles dois graus.
No ritual de aumento de salário, o recipiendário é acompanhado pelo Irmão Experto em cinco viagens equivalentes aos cinco anos de preparação que os discípulos de Pitágoras (mestre nas antigas iniciações) teriam de ter para que se tornassem capazes de ensinar e serem dignos de serem ouvidos.

Tal como nessas viagens, assim acontece com o nosso percurso   intelectual em direção à Verdade e ao Conhecimento tal como com a marcha moral rumo a um ideal de perfeição, que se revela cada vez   com maior clareza à medida que avançamos na direção que nos conduzirá à sua realização. No início de cada uma delas o recipiendário recebe os respetivos instrumentos que os devolve no final da mesma, sendo-lhe então explicado o seu significado bem como o da viagem então efetuada.

Para a primeira viagem são-lhe entregues o maço e o cinzel, para a segunda o esquadro e o compasso, para a terceira a alavanca e a régua, para a quarta o nível e finalmente para a quinta viagem recebe a trolha. 

Agora no 2º grau maçónico, o Companheiro (etimologicamente é aquele que faz parte de um grupo que reparte entre si o mesmo pão) passou da perpendicular ao nível, conhecendo o esquadro o nível e o prumo. A pedra que era bruta passa nesta fase a ser polida, pois o Aprendiz amadureceu evoluindo para um estado no qual se apresenta pronto a examinar os aspetos mais profundos do seu processo psicológico e da sua própria consciência.

Na terceira viagem de elevação a Companheiro, através de aquisição de conhecimentos científicos é encetado o estudo da Natureza. Nela, o recipiendário recebe para além da Régua e por substituição do Compasso, a Alavanca. Estes dois últimos têm em comum o facto de possuírem três pontos (apoio, a potência e a resistência) que determinam a sua funcionalidade como instrumentos ativos na maçonaria operacional ou filosófica. A Régua, que permite traçar linhas retas que poderão ser prolongadas infinitamente, é o símbolo da lei moral no que ela tem de imutável e rigoroso.
   
Foi, pois, na 3ª viagem da minha Elevação ao 2º Grau da Maçonaria, que tive o primeiro contacto com a Alavanca, instrumento do Grau de Companheiro cujo significado me propus aprofundar.

Em Física, a alavanca é uma máquina simples constituída por um objeto rígido que, utilizando um ponto fixo de apoio (fulcro), consegue multiplicar a força mecânica que é aplicada (força potente) a um outro objeto (resistência / força resistente).   Esta forma de aumento de força constitui o conceito de ”vantagem mecânica”.

Dependendo da relação espacial destes três pontos (fulcro, força aplicada e resistência), assim se classificam os tipos de alavancas: interfixas, interpotentes e inter-resistentes. Quando o ponto de apoio (fulcro) está entre a força aplicada e a força resistente, a alavanca é interfixa (exemplo: tesoura). Se a força resistente estiver entre o ponto de apoio e a força aplicada, a alavanca é inter-resistente (exemplo: quebra nozes). Caso a força aplicada esteja entre o ponto de apoio e a força resistente, então a alavanca é interpotente (exemplo: pinça).

O ponto de apoio deve ser tão ou mais resistente que a própria alavanca para que não comprometa o processo por ineficácia. Da mesma forma é de fundamental importância a Força Potente, força esta que é exercida em determinado ponto da alavanca para que a Força Resistente seja vencida.

“Deem-me um ponto de apoio e moverei a Terra”, terá sido dito   por Arquimedes no século III a.C. ao compreender a Lei da Alavanca. Trata-se duma manifestação filosófica que salienta a enorme importância e valor do "ponto de apoio".

A palavra Alavanca (do latim levare) refere-se ao início da ação de levantar alguma coisa. Tem como princípio básico a possibilidade de poder mover grandes cargas pela aplicação de pequenas forças utilizando sempre um ponto de apoio.

Se na primeira e na segunda viagens o Maçon desbastou a pedra bruta, criando a partir desta, peças mais perfeitas e passíveis de se adaptarem, é na terceira viagem, com a ação da Régua e da Alavanca (instrumento de colocação a par da trolha) que as pedras já se podem unir, começando assim verdadeiramente a edificação do Templo. 

A Alavanca pode representar o desenvolvimento da nossa inteligência e consequente compreensão para regular e dominar a inércia da matéria, levantando-a e movendo-a em direção ao lugar que lhe está destinado na construção do nosso Templo Individual. 

Metaforicamente a Alavanca representa a energia criadora do Homem, a força do trabalho e da vontade, que através da sapiência é posta ao serviço de toda a humanidade. Simboliza o controlo e o domínio da força em ação, movimento que permite vencer os obstáculos, a resistência moral ou material, assim como ultrapassar medos e fraquezas, sempre na condição de ser capaz de encontrar o seu ponto de apoio.   

Na Maçonaria cada irmão constitui um “ponto de apoio”, e todos unidos representam a Alavanca e a sua força. Há pois, que aprender a usar esse enorme poder que a Maçonaria proporciona.

Tendo sempre presente o significado metafórico da Alavanca, os maçons deverão ser resolutos, decididos e persistentes no seu esforço permanente visando ultrapassar os desafios que surgem constantemente, perante os quais é imprescindível exercer a flexibilidade na prática contínua da Tolerância.


Autor: João Bosco

sábado, 11 de novembro de 2023

O Nível

É largamente consensual que a Maçonaria especulativa tem a sua origem na Maçonaria operativa e que foi ganhando expressão à medida que a última ia perdendo fulgor. As lojas operativas deixaram de ser compostas exclusivamente por pedreiros livres e começaram a receber cada vez mais profissionais e pensadores oriundos de outras disciplinas do saber.

A essência destas lojas mistas deixou progressivamente de ser a partilha de técnicas de construção de edifícios monumentais e de templos para se transformar na partilha de técnicas de construção do templo interior, presente em cada um dos irmãos que as compunha.

Durante esta conversão progressiva das lojas operativas em especulativas, muitos dos costumes e ferramentas foram tomados de empréstimo, mas revestidos de uma nova e enorme carga simbólica. O Nível, tema desta prancha, não é excepção.

No mundo profano, o Nível pode ser definido como o “instrumento que serve para determinar a horizontalidade de algo…”, ou ainda como a “linha ou conjunto de pontos que define um plano horizontal” . Era este o uso que lhe era destinado pelos maçons operativos.

Passemos agora ao mundo ritualístico da Maçonaria especulativa. O Nível é a jóia do Primeiro Vigilante e uma das jóias móveis da loja, em conjunto com o Esquadro e o Prumo.

O Nível é habitualmente representado por um triângulo isósceles, com um prumo suspenso no vértice oposto à sua base. O prumo divide, desta forma, o triângulo em dois pequenos esquadros.

A um olhar minimamente atento não passará com certeza despercebido que o Nível, a jóia do Primeiro Vigilante, é formada pelo conjunto das jóias do Venerável Mestre - o Esquadro - e do Segundo Vigilante - o Prumo.

Quanto ao simbolismo associado ao Nível, vejamos o que diz o Segundo Vigilante ao ainda Aprendiz, durante a cerimónia de aumento de salário a Companheiro.

“Meu irmão, o nível de que fostes portador nesta viagem simboliza a igualdade social. Esta igualdade não consiste somente na paridade dos direitos e na equivalência dos deveres entre os membros da sociedade: implica o levantamento dos fracos, o melhoramento dos deserdados da sorte e dos desgraçados.” 

Deduzimos, então, da anterior citação que o Nível representa simbolicamente a igualdade social.

Recuemos agora ao momento da nossa iniciação maçónica. Nesse dia, cada um de nós jurou o solene compromisso de constantemente aperfeiçoar a arte da transformação da pedra bruta em pedra cúbica. Iniciámos esse trabalho, focados na pedra, enquanto Aprendizes, com o auxílio do maço, do cinzel e da régua de 24 polegadas.

Progredimos nesse trabalho enquanto Companheiros. O desafio é diferente. Não estamos concentrados numa pedra, na unidade, mas sim no seu conjunto e - de forma a garantirmos que são construídas superfícies estáveis, niveladas e equilibradas - socorremo-nos de uma nova ferramenta, do Nível. 

Retiramos daqui que o Nível também está associado ao equilíbrio. O equilíbrio é uma consequência do atingimento da igualdade, pois, na prática, só atingimos o equilíbrio se conseguirmos garantir a igualdade entre duas forças antagónicas.

Nada melhor do que este antigo texto maçónico, de cerca de 1790, para nos ajudar a compreender o verdadeiro sentido dado pela nossa Ordem à igualdade:

“Entre nós o que há mais agradavel, além de contar com tantos Irmãos, quantos Mações, he a igoaldade que se observa, e que se simboliza ao Nivel. Luiz 14, Frederico, e Ganganelli tinhão entre nós o mesmo lugar que qualquer outro. Á meza tinhão a mesma obediencia. Cantavão, se os mandavão, e bebião a saude que se lhes propunha com a mesma allegria, sem soberania, nem distinção. Todos somos igoais. (...)

E em breve vos tenho dito tudo o essencial da Maçonaria; de resto tudo são acidentes, de graos, e significações, que embelezão mas que não mudão a Substancia: por isso ouvireis falar de grao de Mestre Companheiro etcª que não são mais que adições de mais brilhante ornato, e distinção, e que alguns factos celebres da historia lhe derão origem, mas que tudo recorre em ser o Maçon hum homem honrado, e verdadeiro Irmão dos seus Irmãos.” 

O Nível deve inspirar-nos a agir de “... forma imparcial, tolerante e harmoniosa, mantendo a rectitude e igualdade entre todos obreiros perante as leis e morais maçónicas (apesar das funções ou “qualidade” que estes detenham, pois tudo é efémero!), vivenciando estas com cordialidade no trato, carinho, educação e respeito entre todos, seja entre aquele que de momento ocupa o mais elevado grau na Ordem, seja sobre aquele que ainda agora foi iniciado nos nossos mistérios… Desta forma o Nível relembra que ninguém deve dominar outrem.

– Até porque todos nós teremos o mesmo fim. Tempus fugit… -.” 

Mas porquê esta prancha sobre o Nível, sobre a igualdade e o equilíbrio? Porque até a pessoa mais desatenta constata que, na actualidade, estes valores estão a ser relegados para um qualquer plano muito irrelevante. Estamos numa época de decadência civilizacional, que se manifesta num retrocesso em muitos campos. O mundo está cada vez mais desigual. Temos de parar, reflectir e corrigir o rumo.

É necessário recolocarmos valores inalienáveis como estes no centro das preocupações e cada Maçon pode e deve fazer a diferença. Não nos esqueçamos que, ao longo dos tempos, Irmãos Nossos verdadeiramente iluminados assumiram papéis determinantes na luta pelas igualdades. Cabe-nos agora a nós, os maçons de hoje, esse dever.

É somente através da igualdade, proporcionada pelo respeito e pela aceitação, que a verdadeira fraternidade é possível de ser alcançada.

Tomo de empréstimo as palavras de Balzac, com as quais ele nos transmite que “A igualdade pode ser um direito, mas não há poder sobre a Terra capaz de a tornar um facto”.

Jurámos trabalhar incessantemente para alcançarmos um mundo cada vez mais justo, melhor e mais igualitário. Mas este trabalho não pode aguardar uns dias, tem de ser feito ontem. Mãos à obra!


Autor: Abílio Mendes 

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

José da Silva Carvalho

José da Silva Carvalho, nasceu em 19 de Dezembro de 1792, na pequena aldeia de Vila Dianteira, S. João de Areias, filho de humildes lavradores  que viviam do sustento do que a terra produzia.

Com dificuldades, conseguiram que o filho frequentasse o Colégio das Artes em Coimbra e mais tarde, em 1800, a Faculdade de Direito da Universidade, onde se formou em 1805.

Em 1810 foi colocado como Juiz de Fora em Recardães e em 1814 nomeado Juiz dos Orfãos na cidade do Porto.

Foi nessa altura que se iniciou na política em que tanto se notibilizou.

Descontente com a ingerência inglesa na vida política do país, em 1818, juntamente com Manuel Fernandes Tomás, José Ferreira Borges e João Ferreira Viana, fundaram a Associação Revolucionária, denominada O SINÉDRIO, de grande impotância para o triunfo da Revolução Liberal de 1820.

Saindo vitoriosa a revolta, Silva Carvalho, foi eleito membro da Junta Provincial preparatória para as Cortes.

Mais tarde fez parte da Regência do Reino até ao regresso de D. João VI do Brasil, onde se tinha refugiado aquando da primeira "invasão francesa".

Após a chegada do Rei a Lisboa, 3 de Julho de 1821, foi-lhe confiado a pasta da Justiça. Nesse mesmo ano, era obreiro da Loja 15 de Outubro, ao Vale de Lisboa, o qual tinha o nome simbólico de Hydaspe, da qual foi Venerável e de 1823 a 1839, ocupa o cargo de 8º. Grão Mestre do Grande Oriente Lusitano.

Ainda no ano de 1823, deu-se a revolta absolutista e Silva Carvalho foi perseguido e forçado a emigrar para Inglaterra, a fim de salvar a vida.

Em 1826 aclamado rei D. Pedro IV, outorgou a  Carta Constitucional, a que se seguiu uma amnistia e assim Silva Carvalho regressou a Portugal, contudo, desiludido com o governo, retirou-se da vida política e foi viver para a  aldeia que o viu nascer.

Em 1828 foi novamente alvo de perseguissões por parte dos absolutistas com a chegada de D. Miguel a Portugal, conseguir fugir com a ajuda dos seus conterrânios, disfarçado de criado, rumando a Lisboa e dali novamente para Inglaterra. Este é um dos episódios que o povo da aldeia ainda conta, por ter sido transmitido de pais para filhos até aos dias de hoje.

Em 1832 estando no exílio foi nomeado Auditor Geral do Exército Libertador e no mesmo ano, foi nomeado por do Pedro IV ministro da Fazenda, em substituição de Mouzinho da Silveira e poucos meses depois ministro da Justiça e regressa a Portugal.

Em 24 de Setembro de 1834 morre D. Pedro IV e Silva Carvalho, pela terceira vez teve de fugir do país. Regressa em 1838, jura a Constituição, contudo encontra algum descontentamento no país, no entanto continua a sua carreira de legislador e de magistrado.

De 1840 a 1856 ocupa os cargos de 1º. Grão Mestre do Grande Oriente do Rito Escocês e de 1º. Soberano Grande Comendador do Supremo Conselho do grau 33º. afecto ao Grande Oriente do Rito Escocês. Foi igualmente o primeiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

Recusou por várias vezes títulos de nobreza que o rei D. Pedro IV o quis homenagear, dizendo sempre que os títulos não lhe cobriam a sua origem plebeia, bem como de um filho orgulhoso de humildes trabalhadores rurais e ao mesmo tempo queria que “o seu nome chegasse puro á posteridade como o recebera de seus pais”.

José da Silva Carvalho, faleceu em Lisboa no dia 5 de Setembro de 1856 e foi sepultado num túmulo sem pompa nem epitáfio, no Cemitério dos Prazeres, no talhão das figuras ilustres de Portugal.

Esta pequena prancha biográfica, tem como finalidade não só lembrar aos mais jovens quem foi Silva Carvalho, mas também não deixar cair no esquecimento este nosso Ir.’., que embora tenha partido para o Oriente Eterno há 158 anos, nos possa servir de inspiração pelo seu exemplo de humildade, honradez, de justiça, tolerância, serviço do bem comum sem nada esperar ou pedir em troca e o seu amor á liberdade que tanto prezava, valores estes, que um “homem livre e de bons costumes” se deve pautar.


Autor: Fernando Valle

sexta-feira, 29 de setembro de 2023

Damião de Goes

A temática da adopção de um nome simbólico é ela própria um tema interessante e que merecia ser mais explorada em prancha a isso dedicada.

A raíz histórica que encontrei desta prática remontam ao Rito Adonhiramita, praticado no Brasil, mas foi adoptado por outros Ritos e Obediências, em particular aqueles que trabalham em contextos em que a pertença à Maçonaria é mal quista e alvo de perseguições, para proteger a identidade dos Maçons no mundo profano.

O Nome Simbólico é escolhido pelo neófito entre personagens virtuosos, Maçons ou não, que se encontrem no Oriente Eterno e que tenham contribuído para a Humanidade, a Pátria, a Sociedade ou a Maçonaria. A pessoa escolhida torna-se o patrono do novo Maçom, que em Loja só será conhecido por este nome.

Esotericamente, ao receber seu Nome Simbólico, o Maçon Adonhiramita passa a ter a guarda, a proteção e o exemplo de um espírito luminoso, com ricos exemplos de virtudes, e que será como uma espécie de Anjo da Guarda, mensageiro do GADU.’.

Permitam-me então que vos fale um pouco sobre Damião de Goes.

Nascido em Alenquer a 2 de Fevereiro de 1502 de um pai com ligações à aristocracia e mãe descendente de 3ª geração de fidalgos flamengos estabelecidos em Portugal, contava apenas nove anos quando entrou ao serviço da Corte como pajem de lança, onde travou amizade com o princepe D. João (futuro D. João III), ambos da mesma idade. Em 1518 recebeu moradia como moço de câmara de D. Manuel I.

A sua formação na corte deu-lhe a oportunidade de tomar contacto com diferentes áreas do saber, das letras, onde estudou latim e os clássicos gregos, à música, passando pela matemática; conheceu também políticos e diplomatas que o prepararam para as missões de representação do país que viria a ser chamado a desempenhar muito cedo na sua carreira.

Em 1523, aos 20 anos, D. João III nomeou-o para o lugar de secretário da Feitoria Portuguesa de Antuérpia - um dos centros do movimento humanista europeu - onde a sua ascendência flamenga e ao seu domínio do latim, à época a língua usada nos meio diplomáticos, lhe permitiram desempenhar o cargo com reconhecida eficácia e sucesso.

Entre 1528 e 1531 efectuou várias missões diplomáticas e comerciais na Europa, conhecendo a Inglaterra, Danzig e o Grão-Ducado da Lituânia, na região do Báltico, Poznań e visitado demoradamente a Corte de Cracóvia na actual Polónia.

Na missão à Dinamarca e Polónia realizada em 1531, visitou Lübeck e Wittenberg, cidade onde travou conhecimento com Martinho Lutero e Philipp Melanchthon, dois dos principais impulsionadores da reforma protestante.

Em 1532 matriculou-se na Universidade de Lovaina (Leuven), um dos principais centros de conhecimento da Europa, período no qual traduziu para latim o livro da embaixada do Imperador da Etiópia a D. Manuel I, que publicou com o título Legatio Magni Indorum Imperatoris Presbyteri Joannis ad Emanuelem Lusitaniae Regem in 1513. Nesse mesmo ano visitou Friburgo, cidade onde conheceu Desidério Erasmo, mais conhecido por Erasmo de Roterdão, e Basileia onde se encontrou com Sebastian Münster, matemático, professor de hebreu e conhecido luterano, e com Simon Grynaeus, humanista, latinista, helenista, teólogo e filósofo ligado ao movimento de reforma protestante na Alemanha.

Em 1533, em Paris, conviveu com o frade franciscano frei Roque de Almeida, também ele ligado à defesa das ideias da reforma protestante.

De regresso a Portugal foi convidado por D. João III para tesoureiro da Casa da Índia, cargo que não aceitou, deixando o serviço da corte para ir em peregrinação a Santiago de Compostela e, de seguida, para Estrasburgo e Basileia onde se dedicou a tempo inteiro ao estudo e ao aprofundamento dos ideais humanistas. Mudou-se em 1934 para Friburgo, onde partilhou casa com o humanista holandês Erasmo de Roterdão que o guiou nos estudos e influenciou nos escritos. Neste período manteve um grave conflito com o jesuíta português Simão Rodrigues, que acusava Damião de Goes de estar próximo das visões heréticas (entenda-se reformistas) e contra a doutrina católica.

Entre 1534 e 1538 frequentou a Universidade de Pádua, onde pode travar conhecimento próximo com os humanistas italianos Pietro Bembo, um futuro cardeal, Lazzaro Buonamico e Jacopo Sadoleto, outro influente humanista e bispo, defensor da conciliação com as facções mais moderadas da Reforma. Para além de contactar com as grandes figuras do humanismo do seu tempo, visitou Veneza, Roma e a Itália de norte a sul.

Conheceu também Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, que foi propositadamente de Veneza a Pádua para se desculpar do comportamento desrespeitoso de Simão Rodrigues, ficando ele e os companheiros hospedados na sua casa.

Terminados os estudos em Pádua, em 1538 regressou a Lovaina. Nesse mesmo ano, com autorização do rei D. João III, casou com Johanna van Hargen, nascida por volta de 1515 em 's-Gravenzande (Holanda), com quem viveu até ela falecer em 1569 e teve nove filhos.

O casal permaneceu em Lovaina durante seis anos, entre 1539 e 1542, durante os quais, publica vários opúsculos de temática humanista e historiográfica, entre os quais Commentarii rerum gestarum in India (1539) e Fides, religio moresque Aethioporum sub imperio Preciosi Joanni (1540).

Neste período, totalmente integrado na comunidade, participou activamente na defesa da cidade de Lovaina, tendo sido feito prisioneiro durante a invasão francesa da Flandres. Após um ano de cativeiro em França, às ordens do rei Francisco I de França, foi libertado em 1544 por intervenção de D. João III de Portugal, regressando a Lovaina onde pública Aliquot Opuscula.

O imperador Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico, quis expressar o seu reconhecimento pelos serviços prestados, elevando-o a fidalgo de cota de armas da Flandres, honra que lhe foi confirmada por el-rei D. Sebastião de Portugal.

Em 1545 a convite do rei D. João III, regressou a Portugal com a família para ser mestre do príncipe D. João. Apesar do prestígio pelo seu percurso intelectual e pelas amizades que contraíra na Europa e da evidente protecção régia, foram-lhe no entanto movidos dois processos no Tribunal do Santo Ofício, o primeiro dos quais, logo em 1545, ao ser acusado de heterodoxia e denunciado à Inquisição pelo seu antigo companheiro de estudos, o padre Simão Rodrigues, ao tempo o preceptor do príncipe herdeiro D. João e pouco depois nomeado por Inácio de Loyola como primeiro provincial da Província Portuguesa da ordem Jesuita. Beneficiando da protecção de D. João III, os processos da Inquisição foram arquivados.

Em 1546 publicou em Lisboa a obra Urbis Lovaniensis obsidio.

A 3 de junho de 1548 foi nomeado 11º guarda-mor dos arquivos reais da Torre do Tombo, cargo que ocupou até 1571.

Em 1554 publicou, em Évora, a obra Urbis Olisiponensis Descriptio.

Em 1558 foi escolhido pelo cardeal-infante D. Henrique para escrever a crónica oficial do reinado de D. Manuel I de Portugal. Tendo à sua disposição as fontes documentais do arquivo régio, Damião de Góis deu início à sua obra de cronista, completando o trabalho em 1565. Em 1566 saíram a primeira e segunda partes da Crónica do Felícissimo Rei D. Manuel. Em 1567 saíram as terceira e quarta partes e foi impressa a Crónica do Príncipe Dom João.

Versátil e culto, para além de cronista e escritor, fez-se músico, compositor, colecionador de arte e mecenas. Entre as obras por si coleccionadas é frequentemente atribuído o tríptico de As Tentações de Santo Antão, do pintor holandês Hieronymus Bosch.

As suas obras humanistas e historiográficas foram amplamente reconhecidas na esfera intelectual europeia que frequentou, sendo editadas em várias cidades europeias, o que lhes conferiu ampla difusão.

Em Portugal, no entanto, a sua visão humanista e, em particular, os seus contactos com reformadores e intelectuais considerados heréticos, levantaram profunda suspeição junto do clero português, que não aceitou os seus escritos.

A Crónica do Felícissimo Rei D. Manuel apesar do rigor historiográfico, gerou grandes animosidades junto de algumas famílias da nobreza, que se consideraram diminuídas pela narração do autor. A sua publicação marca o início do declínio da reputação de Damião de Goes. Em 1567 foi reimpressa a primeira parte da crónica, com revisões que marcam a vitória dos cortesãos sobre o cronista.

Pouco depois, em 1571, já sem a protecção do seu amigo El-Rei D. João III, e com muitas inimizades e invejas na corte, regressam os problemas com o Tribunal do Santo Ofício. Foi preso em condições degradantes que lhe causaram um acelerado declínio físico.

Com 69 anos de idade, prisioneiro, sente-se, cito, muito velho e doente, tão cheio de feridas e sarna por todo o corpo que me falta pouco para me julgarem leproso e quase não tenho já forças para me suster sobre as pernas.

No isolamento do cárcere, não deixa de conservar o seu espírito de homem culto e de letras rogando aos carcereiros que me mandem emprestar um livro em latim para ler, qual lhes parecer, porque estou apodrecendo de ociosidade e com o ler se me passam muitos pensamentos.

Sujeito a um longo e penoso processo e em outubro de 1572 condenado a cárcere perpétuo

como hereje, luterano, pertinaz e negativo. Transferido para o Mosteiro da Batalha, esteve preso de Abril de 1571 a Dezembro de 1572, em condições particularmente duras, sendo-lhe confiscados todos os bens.

Veio a falecer em Alenquer a 30 de Janeiro de 1574. A sua partida para o Oriente Eterno está ainda hoje envolta em obscuridade e não existem registos fidedignos dos seus derradeiros anos.

Presume-se que nos seus últimos dias foi liberto do cárcere e retornado Alenquer, sua terra natal, despojado de bens e da sua relevância social. Diz-se, com fraco suporte documental, que foi encontrado morto junto a uma lareira com uma lesão craniana.

Investigações recentes revelaram, no entanto, que o crânio que se encontrava em seu túmulo, o qual apresentava marcas de uma fissura horizontal no occipital que lhe teria causado a morte, não tem correspondência genética com um presumível descendente dos nossos dias.

Terá sido acidente, assassinato pelos seus inimigos, a própria Inquisição a queima-lo na fogueira, depois de não o ter conseguido condenar à fogueira inquisitorial por intervenção de alguns amigos de Damião que gozavam de influência?

Tudo isso é irrelevante face à grandeza deste Português que, abrindo-se ao Mundo e nele buscando o conhecimento que cá ainda não encontrava, se tornou maior que a Pátria de vistas curtas que honrou e tornou mais reconhecida, não somente como terra de homens valentes que deram novos mundos ao mundo e dele trouxeram novos sabores, vestes e demais riquezas com que inundaram as principais cortes europeias, mas também como uma terra de conhecimento e cultura.

Foi a memória deste Homem que eu humildemente tento honrar e reavivar com a escolha do seu nome para meu Nome Simbólico. Porque também eu Português, tive o privilégio de ter uma educação cuidada e completa onde pude cultivar o gosto por adquirir conhecimento em áreas muito díspares e abrangentes; mas foi ao abrir-me a experiências fora das nossas fronteiras que senti o meu espírito a alargar-se; que intuí a riqueza de saberes que estão ao nosso alcance ao abraçar sem preconceitos a forma de olhar o mundo de outros povos e credos; que assimilei verdadeiramente (ou iniciei o meu caminho para assimilar) que os Homens são fundamentalmente todos iguais no que desejam e procuram e que os cambiantes com que cada cadinho cultural nos tinge, mais do que dividir-nos, dão-nos uma oportunidade única de nos somarmos e enriquecermos, desde que mantenhamos um espírito aberto à diferença e livre de preconceitos e dogmas.

Que o espírito livre de Damião de Goes me ilumine, nesta caminhada que agora estou a iniciar.


Autor: Damião de Goes




terça-feira, 14 de março de 2023

Da Dialética entre Moral e Ética ao Ser Consciente

Se há temática que sempre me seduziu foi o esquadrinhar dos princípios morais e do julgamento ético e essa nossa capacidade, como indivíduos, de avaliar o mundo de forma sublime, por comparação com os demais seres vivos ditos inteligentes; e se de sapiência discorro, porque não incluir nesta paragona as modernas engenhocas, copiosas em algoritmia da agora tão parangonada inteligência artificial?

Mas este não é o fascínio do estudioso erudito que procura o sentido da vida, nem do douto engenheiro que busca o segredo da omnisciência das máquinas; é antes o fascínio do estupido ignorante, que ainda que sendo ocasionalmente um estudioso e rotineiramente um engenheiro, somente quer saber o que nos torna tão singulares ao ponto de conseguir granjear estes traços na forma de letras, as letras na forma de palavras, as palavras na forma de frases e as frases na forma deste prosaico arranjo que apelido de texto, e que hoje partilho com os meus irmãos.

Mas, comecemos pelo princípio, e esse, pela ordem consagrada no título refere-se à moral. Do latim não a distinguimos claramente da ética, pois de ambas tiramos idêntica significação relativa aos costumes. Mas esta réstia de ambiguidade cessa na etimologia, pois na verdade vejo-as de forma profundamente distinta, ainda que complementares.

No meu entender a moral não é mais do que o conjunto de regras, de preceitos e de leis aplicadas no quotidiano por cada individuo, orientando as suas ações e os seus julgamentos sobre o que é moral ou imoral, certo ou errado, bom ou mau.

Mas a moral padece de um inconveniente, pelo menos na minha interpretação; ela é relativa, temporária, mutável; há moral entre biltres e patifes, entre quem mata e segrega a refugio das leis, entre quem politiza sob pretexto do bem comum, entre quem comete atrocidades sob o duto da religião. A moral está intrinsecamente ligada ao tempo, espaço e grupo social e cultural em que discorre e por isso não é nem pode ser universal. De certa forma a moral é externa ao indivíduo, pois habitualmente precisa de ser ensinada e vulgarmente precisa de ser imposta.

Talvez os mais alheios se interroguem de como podem coexistir diferentes morais? Para os presentes certamente que é universalmente aceite que matar outro ser humano é errado, ainda que em outras pátrias a pena de morte seja legal, moral e aceite; mesmo tempo, lugares distintos. Nesses mesmos prados, há bem pouco tempo, estava institucionalizada a segregação monocromática de raças, para hoje ser considerado algo abominável e moralmente errado; apenas mudou o tempo, não o lugar.

Tal como no passado distante, neste tempo, no nosso tempo, a moral difere; seja na forma da vivência poligâmica de um Muçulmano, do kilt festivo de um Escocês ou da nudez de uma tribo da Amazónia.

Seguindo a ordem no rótulo deste desvario linguístico, chegamos à ética; e essa, para mim, vai um pouco, ou muito mais além, quando a defino como o conjunto de conhecimentos extraídos do comportamento humano, na tentativa de explicar as regras da moral de forma racional e fundamentada, independentemente do espaço social e cultural em que se inserem.

Procurando intencionalmente ser redutor, a ética é não mais do que uma reflexão sobre a moral, o seu estudo filosófico, baseada em conceitos temporais e não temporários, e por isso é verdadeiramente universal, e por isso é uma virtude.

Ser ético significa ter a capacidade de perceção dos conflitos entre o que nos narra o coração e o que é cogitado no cérebro; é ao juízo ético que cabe o papel de trilhar o caminho entre a emoção e a razão e de assim inventar o equilíbrio mais consentâneo para as nossas ações.

Da simples diligência de devolver um cunho perdido por um descuidado transeunte, passando pelo gesto fraterno em socorrer um irmão em aflição, até ato espontâneo do desconhecido que, sem receio pela sua vida, invade um carro em chamas para resgatar uma anónima criança, tudo são comportamentos éticos, porque simplesmente os realizámos convictos que seriam as atitudes corretas.

Alguns chamar-me-ão infame pateta por me atrever a tal destrinça, achando porventura que a moral é a ética do quotidiano e que de ética vivem os médicos, advogados, engenheiros, clérigos e políticos; noutro tempo e lugar diria que isso não é ética, é deontologia e faz parte da filosofia moral contemporânea. Mas olvidem-se das minhas ultimas palavras, pois iria refugiar-me nos mestres como Espinoza, Kant ou Savater para responder, pois ainda que moralmente correto, por certo que os mesmos filósofos que me criticam não achariam ético citar terceiros.

Então como descrever a um cego objetos que este nunca pode ver? Como pedir a um surdo que entenda a diferença entre música e troada? Da mesma forma como eu próprio apenas tenho convicção da minha própria insciência, como qual apedeuta, daltónico e duro de ouvido, refugio-me nas palavras de um sublime humanista, Albert Schweitzer: “Ética não é mais do que a reverência pela vida. Isso é o que me dá o princípio fundamental da moralidade, nomeadamente, que o bem consiste em manter, promover e melhorar a vida, e que destruir, ferir, e limitar a vida é pura maldade”.

Da ética resta-me dizer que, como qual voluptuosa e casta mulher, que todos fabulizam amar incondicional e desinteressadamente e veneram como quem ansia que esta seja a sublime matriarca dos seus filhos, vejo que por vezes (ou quase sempre), são muitos (ou todos), os que a violentam como se a mais vulgar prostituta se tratasse, como se em algum momento fosse também ela merecedora de tal desgraça.

Moral e ética são assim por mim entendidos como dos mais importantes valores do homem livre, estando intrinsecamente ligadas ao respeito e reverência pela vida; mas o homem, provido de algo singular que se chama livre arbítrio, é ele próprio a personificação de todo o bem e de todo o mal deste mundo, e é do juízo ético que irá colher, dessa liberdade conquistada, o caminho da virtude.

Mas a citação que deu início a este texto tem ainda mais um termo, que em jeito de oração se desdobra em duas palavras; então em que medida se insere o ser consciente ou a consciência no meio destes dois vernáculos, moral e ética?

A verdade é que o que define o ser humano não são os seus instintos ou marcadores genéticos, tão semelhantes que são a outros animais, mas sim a nossa capacidade de decidir e inventar ações que nos transformam a nós e à realidade que nos circunda. Esta “liberdade”, a que chamarei pensamento consciente, é o fundamento do que consideramos a nossa dignidade racional, e as regras morais e o juízo ético, o fio condutor entre o nosso pensamento e a tomada de decisão.

Esta é a “centelha divina” que nos permite amar sem qualquer explicação racional, odiar por razões fúteis, sorrir por um gracejo, irar por simples capricho, mentir porque nos é profícuo, asseverar quando sabemos estar errados, matar ou escolher morrer … por simplesmente querer.

Mas não me entendam erradamente; não opino como Kant sobre a falta de fé na natureza humana, quando refere que não existe bondade natural e que por natureza somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos e roubamos; apenas reafirmo que a nossa consciência nos dá liberdade de escolha, e que a moral e a ética guiam essa escolha.

E a minha inquietude é justamente de onde provém esta luz que nos torna tão especiais e que nos premeia com esta consciência livre; será uma consequência natural da teoria evolutiva? Será que este fulgor provém do espirito, como representação divina de Deus, um qualquer Deus, no consciente do homem?

Para quem não conhece “O Erro de Descartes” de António Damásio, Phineas Gage será apenas um nome de um comum mortal e na realidade é isso mesmo que ele foi, um jovem vulgar ainda que dotado de uma invulgar responsabilidade profissional; e precisamente no lavor do dia-a-dia, talvez no seu único momento de incúria, a prematura detonação de uma carga explosiva projeta uma ciclópica barra de ferro através sua face esquerda, trespassando a base do seu crânio e a parte anterior do cérebro e saindo pelo topo da cabeça. Por qualquer milagre, e verdadeiro milagre já que a ciência do século XIX pouco mais permitia nestes casos do que cuidados paliativos, Gage sobrevive e, à exceção da visão do olho esquerdo, recupera integralmente todas as suas capacidades físicas.

Mas esta dádiva vem em pouco tempo a revelar uma pessoa diferente; o outrora homem de hábitos moderados e de considerável energia de caráter, astuto e inteligente nos negócios e com uma mente equilibrada e persistente na execução de todos os seus planos, deu lugar a uma pessoa caprichosa e irreverente, que se mostra impaciente e com pouca deferência para com os seus colegas, socorrendo-se frequentemente de linguagem menos própria e parecendo ora obstinado ora caprichoso e vacilante, fazendo frequentemente planos para ações futuras sempre inconsequentes.

Nem o amparo dos médicos, nem a admoestação dos chefes, nem as achegas dos colegas, nem o socorro dos amigos, nem as lágrimas da família, nem a fé de todas as religiões, tiveram sucesso em redimir tão radical transformação. Este outrora homem de elevados padrões morais, não se tornou num individuo mau, nem violento, nem desrespeitador da lei, mas perdeu de forma inapelável parte essencial do seu juízo ético e de responsabilidade; é como se aquela barra de ferro, ao atravessar o seu crânio, tivesse uma mão divina que lhe apresou uma porção do espírito consciente e o arrebatou violentamente para longe do seu corpo.

Há muito que se aceitam distintas zonas do cérebro como alicerces da linguagem, da perceção e das funções motoras, mas o que este acontecimento funesto vem revelar é uma região muito particular, especialmente encarregue de propriedades humanas únicas associadas ao livre arbítrio, às dimensões pessoais e sociais do raciocínio e à observância das convenções sociais e das regras éticas previamente adquiridas, permitindo antever e planear o futuro e manter o sentido de responsabilidade, perante si próprio e perante os outros.

Como se já de si não fosse surpreendente constatar esta imagem corpórea do espírito consciente, eis que a mesma ciência nos conduz a um novo sobressalto; os vitupérios nesta tão particular região do cérebro pareciam também emudecer os sentimentos, fazendo-se perder a tristeza, a impaciência, a frustração, transformando até uma extemporânea explosão de raiva numa apatia sem rancor. Aventuro-me ao concluir com a convicção dos sentimentos que, sem estes, não poderia haver juízo ético, nem o proferido “ser consciente”; no fundo, não haveria humanidade, com todo o altruísmo e perversidade que a veste.

Recuperando de forma inusitada o primeiro parágrafo deste trecho, como quem não consegue abandonar o rumo do aborrecido homem de ciência, vislumbro longínqua a tão ambicionada inteligência artificial, pelo menos à nossa imagem; por mais flops de processamento e bytes de dados que se vertam numa máquina, esses dados transformar-se-ão simplesmente em excessiva informação, em acanhado ou desajustado conhecimento e em nenhuma decisão dotada de juízo ético, pois falta-lhe ainda o defeito dos sentimentos. Questiono-me … como poderá um fantoche agir com coragem se não sabe o que é o medo? Como poderá amar se desconhece a dor da perda? Como poderá decidir humanamente se não pode senão seguir a “moral” que lhe foi imposta em inúmeras linhas de código?

Feito este repto, como qual princípio de reflexão sobre o futuro da humanidade, regresso ao nós, para afirmar com a relutância da força das palavras que irei proferir, mas com a convicção que serão bem entendidas; não se pode ser maçon sem ter consciência ética. Reconhecendo a moral como parte integrante da vida de todos os homens em sociedade, é precisamente por fazer uso da ética no juízo da moral que o maçon está condenado a trabalhar em prol do bem comum, contestando as leis morais sempre que estas não respeitem os princípios fundamentais da maçonaria; a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

Em conclusão, recordo o que sempre intentei ser como homem, e agora como Maçon, na forma das palavras consentidas do meu testamento filosófico, a quando da minha admissão a esta Augusta Ordem; a família é a base da sociedade e o que esta tem de mais precioso e é pois no lar que se forjam as virtudes de um povo, seja no íntimo da minha casa, seja na reclusão do nosso templo. Deste último recinto sagrado, retiro a vontade em aprender, já que tão pouco ambiciono ensinar o que quer que seja; do primeiro, e em concreta mesura para com os meus filhos, aspiro apenas à vontade do querer conceder-lhes algo mais nobre do que bens materiais, na forma de valores como a honestidade, a bondade, a generosidade, a lealdade, a honra e o respeito. Mas acima de tudo, desejo ter a força de caráter para os ajudar forjar o seu próprio “espírito ético”, para que eles próprios possam ajuizar em consciência, e assim contribuir para uma sociedade melhor e mais justa.

Sem perder um hábito adquirido, tal saudável vício que ampara depois de uma árdua peleja, partilho um curto escrito de nome "A Educação do Estóico", da autoria não do meu homónimo Álvaro de Campos nem do seu Fernando Pessoa, mas de um quási desconhecido heterónimo, o Barão de Teive:

Não há maior tragédia do que a igual intensidade, na mesma alma ou no mesmo homem, do sentimento intelectual e do sentimento moral. Para que um homem possa ser distintivamente e absolutamente moral, tem que ser um pouco estúpido. Para que um homem possa ser absolutamente intelectual, tem que ser um pouco imoral. Não sei que jogo ou ironia das coisas condena o homem à impossibilidade desta dualidade em grande. Por meu mal, ela dá-se em mim. Assim, por ter duas virtudes, nunca pude fazer nada de mim. Não foi o excesso de uma qualidade, mas o excesso de duas, que me matou para a vida.


Autor: Álvaro de Campos 

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

Transumanismo, Ética e Pessoa Humana...

Hoje trago-vos a minha reflexão sobre uma corrente filosófica chamada Transumanismo.
Em primeiro lugar e antes de dar início a minha prancha pretendo citar-vos um excerto de Nietzsche, na obra “Assim Falou Zaratustra, Da Virtude Dadivosa":
“O homem se acha no meio de sua rota, entre animal e super-homem, e celebra seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança; pois é o caminho para uma nova manhã.
Então aquele que declina abençoará a si mesmo por ser um que passa para lá; e o sol do seu conhecimento permanecerá no meio-dia.
‘Mortos estão todos os deuses: agora queremos que viva o super-homem'”

O transumanismo é um movimento filosófico, intelectual, cultural, social e, mais recentemente, estão tentando alçá-lo a uma condição política. É o que se busca com a melhora do ser humano como a principal preocupação da humanidade, senão a única, projetando-o numa esfera evolutiva ao ponto de superar as limitações de nossa espécie”
Na tentativa de criar novos indivíduos, o transumanismo propõe mudanças estruturais profundas no nosso conceito de "homem". É fundamental abordar os problemas práticos das chamadas melhorias e analisar os problemas éticos derivados de tais práticas, cuja causa fundamental é um equívoco da pessoa.
A corrente de pensamento transumanista defende uma filosofia que procura a melhoria da condição humana através do uso da ciência e tecnologia, com a finalidade de aumentar a capacidade cognitiva, superando limitações físicas e psicológicas intrínsecas ao ser humano, enquanto proclama a liberdade e acessibilidade na escolha dos recursos pós-humanos de modificação.

Em 1998 foi criada a Associação Mundial Transumanista (WTA), a qual se passou a chamar “Humanidade +” em 2008 (Humanity +). Seu maior expoente é o filósofo sueco Nick Bostrom, que no seu artigo intitulado “A história do pensamento transumanista” traça romanticamente a origem dessa ideologia desde a Epopeia de Gilgamesh e outras buscas pela imortalidade, incluindo a da pedra filosofal.
O conceito de "transumanar" foi usado pela primeira vez por Dante Alighieri na obra "A divina Comédia", entendendo-a como a experiência elevada pela graça, além do humano, rumo à realização total e transcendente em Deus.
A chamada filosofia transumanista moderna foi originalmente descrita no ensaio de Max More, intitulado Transhumanism - Towards a Futurist Philosophy, em 1990, no qual o transumanismo é definido como uma classe de filosofias que busca guiar-nos em direção a uma condição pós-humana. Transumanismo compartilha muitos elementos do humanismo, incluindo o respeito pela razão e pela ciência, um compromisso com o progresso e uma valorização da existência humana (ou transumana) “terrena”, em vez de alguma pós-vida sobrenatural. Transumanismo difere do humanismo ao reconhecer e antecipar as radicais alterações na natureza e as possibilidades das nossas vidas resultantes de várias ciências e tecnologias, tais como a neurociência e a neurofarmacologia, o prolongamento da vida, nanotecnologia, ultrainteligência artificial, combinado com uma filosofia racional e um sistema de valores.

O transumanismo busca melhorar a natureza humana, superando as suas limitações e prolongando a sua existência através da razão, ciência e tecnologia.
Nesta estrada rumo ao futuro ele precisa de um estágio intermediário (transumano ou humano +) para chegar ao pós-humano (humano ++).
Para isso, promove três propostas:
1) as tecnologias para "melhoramento" humano devem ser amplamente disponibilizadas;
2) os indivíduos devem ter o direito de transformar o seu corpo de acordo com os seus desejos;
3) os pais devem tem o direito de escolher as tecnologias a usar quando decidem ter filhos.
Os defensores transumanistas são defensores do redesenho da condição humana, incluindo parâmetros como envelhecimento, limitação do intelecto, psicologia indesejável, sofrimento e confinamento ao planeta terra.
Os princípios gerais orientadores do transumanismo e a sua versão atual contempla, após as modificações de 2002 e 2009, oito princípios, que podem ser sintetizados do seguinte modo:
(1) o humano, já fortemente afetado pela ciência e tecnologia, pode ser ainda mais beneficiado, por exemplo, com a superação do envelhecimento, de deficiências e do sofrimento involuntário;
(2) atendendo aos riscos das biotecnologias, deve haver um esforço para a sua investigação e compreensão, a fim de reduzir riscos e acelerar as aplicações, cujos efeitos sejam benéficos;
(3) devem-se respeitar os direitos e autonomias individuais e defender o bem-estar de toda forma senciente de vida através da adoção de políticas, demonstrando as nossas responsabilidades morais para com as gerações vindouras;
(4) deve-se permitir a disponibilização de um vasto rol de técnicas de melhoramento da vida, associada à liberdade de escolha individual da respetiva utilização.

Baseados nestes princípios, os transumanistas ligados ao secularismo, rejeitando argumentos de cunho estritamente religioso, pretendem promover uma nova forma de Iluminismo, de cariz biológico. À semelhança do Esclarecimento moderno, o humano deve sair da sua "menoridade biológico-estrutural", investindo na auto-tutoria. Por meio do cálculo racional, ampliando o potencial humano cibernético a um nível superior, o humano, ao mesmo tempo, estaria a realizar plenamente a sua "natureza cibernética" (a saber, de governar tudo o que há) e a alterar a sua "natureza vulnerável", retirando aquilo que o prendia a uma natureza precária. O humano deveria deixar de ser regido pela natureza quanto ao seu processo evolutivo, assumindo a responsabilidade de guiar a sua própria melhoria.
A perspetiva transumanista poderia, assim, ser entendida como uma consequência do Humanismo secular e do Iluminismo. A união entre razão, ciência e técnica para um investimento no (pós-)humano justifica o fato de os transumanistas se autodenominarem humanistas racionais.
A argumentação transumanista prestigia o aspeto biológico do humano. A natureza humana, para o transumanismo, é básica ou exclusivamente a sua biologia. É a natureza biológica do humano que está no foco transumanista, uma vez que o melhoramento humano se dará a partir do melhoramento biológico.
Do ponto de vista neurobiológico, o transumanismo procura o aprimoramento das habilidades sensoriais, o aumento da memória, a aceleração dos processos de raciocínio e a diminuição do número de horas de sono. Para isso, procura mecanismos tecnológicos, sejam eles farmacológicos ou do campo da engenharia, visando desenhar cérebros artificiais com capacidade de inteligência natural, incluindo interfaces homem-máquina, cérebros humanos ciborgues e existência pós-biológica em computadores através de scanners que permitem obter a matriz sináptica do cérebro do indivíduo que permita a sua reprodução num computador.

Que problemas surgem da antropologia filosófica e ética na teoria transumanista?
Desde a sua criação, o transumanismo tem recebido várias revisões. O filósofo e cientista político americano Francis Fukuyama considerou o transumanismo "a ideia mais perigosa para os sistemas democráticos", descrevendo-o como uma ameaça à essência humana e ao princípio da igualdade de todos os homens.
Outros argumentam que a eventual bifurcação de humanos em pós-humanos levaria à escravidão e ao genocídio entre os dois grupos ou mesmo que as suas ideias podem levar à extinção da humanidade.
Para além dos problemas médicos, sociais e económicos, o cerne principal do problema centra-se numa inadequada visão e conceito de pessoa humana.
Por outras palavras, antes de qualquer discussão sobre a dimensão ética das " melhorias ", deve-se perguntar se é ético manipular a pessoa em si. A concepção transumanista mostra uma visão da identidade maleável, tomando o corpo humano e o homem como meramente instrumental. Não assume que a natureza humana pode ir para um fim. Para os transumanistas, o homem é, em si mesmo, tecnologia corporificada e, como tal, não faz sentido afirmar que a modificação tecnológica do seu corpo afeta negativamente a sua identidade.

Do exposto, conclui-se que o transumanismo usa um conceito reducionista da natureza humana, na qual ela é reduzida à matéria pura (materialista) e o ser humano é limitado às suas conexões neuronais (reducionismo neurobiológico). O homem permanece como o que pode ser percebido e moldado, sem propósito intrínseco e possibilidade de transcendência ao imaterial. Essa ausência de propósito intrínseco, impossibilita, por sua vez, uma ética onde o ser humano seja o objetivo final.
As decisões que o homem toma e executa não se baseiam apenas na razão nem na objetividade, mas na sua realidade pessoal, no seu contexto, cultura, idiossincrasia etc. Tudo o que define a sua identidade e a sua natureza humana. Por outras palavras, a atribuição do fenómeno mental é responsabilidade do conjunto de razões, crenças e intenções do indivíduo. Não é possível reduzir uma descrição psíquica que emerge e faz sentido no contexto mental a teorias reducionistas de interações neurais ou da imagem num scanner. Não é claro que a mente e o cérebro sejam o mesmo.
Em relação ao conceito de pessoa, os transumanistas consideram como tais os seres que têm a capacidade de raciocinar. Isso justificaria, por exemplo, a exclusão do referido conceito (e, portanto, a possibilidade de manipulação) de seres incapazes de fazê-lo, como embriões, fetos, crianças, incapazes etc.
Com isso percebe-se que a postura moral transumanista não impõe nenhuma limitação de ação.
Esse conceito de pessoa concederia personalidade a máquinas avançadas, extraterrestres ou macacos superiores. Essa forma de reducionismo racionalista (pessoa = razão)  esquece que o indivíduo não é pessoa porque se manifesta a sua capacidade racional, mas que a última se manifesta pelo facto do indivíduo ser uma pessoa em si.
Como consequência do seu conceito racionalista de pessoa, deriva um conceito semelhante de dignidade: uma qualidade, um tipo de excelência que admite graus e se aplica a entidades tanto dentro como fora do reino humano.

Embora os transumanistas clamem pela defesa dos direitos humanos, para fins práticos, podemos ver que o conceito de dignidade transumanista contradiz três Princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
1) a dignidade humana é universal, algo que todos os indivíduos possuir apenas pelo fato de ser humano;
2) a dignidade humana é inerente à natureza humana e não é dependente de suas realizações ou de suas " excelências " particulares; e
3) a dignidade humana é aplicada igualmente a todas as pessoas, não admitindo diferentes graus dela.
Mais uma vez, se a ideia de dignidade for equiparada à de autonomia ou qualidade, como defendem os transumanistas, qualquer prática instrumental no ser humano poderia ser justificada. 

O transumanismo esquece, porém, que a imperfeição do ser humano e sua relação de insatisfação face à realidade lhe permite ter aspirações, progredir, pensar, vencer ou errar… mas sobretudo, permite -lhe viver e transcender;
Em suma, ser humano.

Autor: Viktor Frankl  

terça-feira, 10 de janeiro de 2023

Gratidão

Durante o meu já longo e algo atribulado percurso de vida experienciei imensas situações que originaram, felizmente, sentimentos de gratidão. 
Assim o tema a que me propus debruçar no presente trabalho é a Gratidão que considero ser, sem dúvida alguma, um dos mais nobres sentimentos do ser humano.
Importa desde já, estabelecer a diferença entre sentimento e emoção.  
Uma emoção é a resposta cerebral a um estímulo determinando automaticamente reações físicas mais ou menos percetíveis (p. ex o choro).  No entanto as emoções são passageiras podendo ou não, gerar sentimentos (tristeza).
Por sua vez os sentimentos sendo o resultado de uma experiência emocional, apesar de serem menos intensos que as emoções duram muito mais tempo. De modo geral, os sentimentos são vistos como uma disposição mental perante algo ou alguém.

Debrucemo-nos então sobre este notável sentimento que é a gratidão.
Etimologicamente a palavra gratidão é um substantivo feminino derivado do termo latino gratus, que significa estar agradecido ou ser grato. Simultaneamente tem origem em gratia, que em latim quer dizer graça. 
Gratidão traduz o reconhecimento de um benefício recebido de alguém que o fez sem esperar nada em troca.
A gratidão pressupõe assim, o bem despretensioso, sem interesses, contrapartidas ou qualquer tipo de compensação.
No relacionamento interpessoal jamais se deve impor condições a fim de se conceder um favor, pois o elo que se criaria seria destrutivo. A gratidão não exige retribuição, pois tal descaracterizaria o bem pelo bem. É um ato voluntário que beneficia ambas as partes pois quem faz o bem sente-se feliz por ter contribuído para o benefício do outro.
As pessoas assim envolvidas experienciam a formação de elos ficando ligadas por esse ato que se eterniza nas suas vidas.
A gratidão expressa a satisfação íntima com tudo o que lhe é concedido. É ter consciência do valor de ser beneficiado por algo ou alguém.
Dizer obrigado de forma consciente, reconhecendo o desprendimento do outro, abre portas para o nascimento de relações mais equilibradas e estáveis pois à gratidão associam-se uma série de outros sentimentos, como o amor, a fidelidade, a amizade e a reciprocidade.  
 
Manifestar a gratidão é imprescindível para que percebamos o sentido da vida, valorizarmos mais o muito que nos acontece e assim sermos mais felizes.
Como expressões do sentimento de gratidão, temos as interjeições (são consideradas “palavras-frases”), “obrigado/a” e “bem-haja”.
Obrigado, do latim obligatus, é uma palavra que deriva como particípio do verbo obrigar, “obligare”, que tem o sentido de “amarrar”, "ligar moralmente, por uma obrigação, favor ou gentileza". É daqui a origem da ideia de comunhão entre o favorecido e o provedor do favor.
Ao usarmos como forma do nosso agradecimento a palavra “obrigado” estamos a reduzir a expressão que completa seria “fico-lhe obrigado”, ou seja “fico-lhe ligado pelo favor que me fez”.  Mas na realidade quando se está grato, não se está ‘obrigado’ a nada. Tal não implica um compromisso subserviente de disponibilidade nem exige retribuição.  Temos sim, para com o outro o desejo de lhe retribuirmos, fazendo-lhe bem de algum modo. É pois, criado um laço de união entre as pessoas que se sentem obrigadas umas para com as outras.
O fundamento de dizer obrigado é simplesmente mostrar que reconhecemos o valor da atitude que nos beneficiou. 
Devemos, pois, ser gentis/amáveis uns com os outros e relacionarmo-nos por amor e não “por favor”. O ideal seria substituir o “obrigado” pelo “agradecido” ou “grato” e o “por favor” pelo “por gentileza” ou “por amabilidade”.
“Bem-haja” como expressão de gratidão, é uma forma de agradecimento equivalente a "tenha tudo de bom" em relação a algo ou a alguém. 

“Não se agradece em Maçonaria”. Desde que fui iniciado o tenho ouvido dizer. Sobre isto, não encontrei nada nem escrito e consequentemente, nem justificado. Deduzo que se refere ao facto da grande união que deve existir entre os obreiros. É como sejamos “um só”. Qualquer coisa, atitude, gesto ou acção, que se execute a favor de um irmão é como se fosse ele próprio a fazê-lo. Será pois “de mim para mim”.
Penso que será este o fundamento do “não ser necessário o agradecimento entre irmãos”. Mesmo partindo do princípio desta “não obrigação” é minha firme convicção que o devamos fazer. É uma atitude de “boa educação” e correção nas relações sociais o expressarmos o quanto nos foi favorável o que recebemos de quem o fez de uma forma desinteressada sacrificando no mínimo o precioso tempo da sua própria vida.
Concluo, frisando o dever e a obrigação de demonstrarmos de uma forma clara por palavras gestos e atitudes que nos sentimos gratos a quem nos despertou esse sentimento, pois tal não só o reforça de per si como também nos aumenta o sentimento de felicidade ao constatarmos que o outro teve consciência do resultado e da importância do seu ato para connosco.
Termino dizendo apenas Muito Obrigado por tudo (de bom e de menos bom) que já vivi convosco que seguramente me enriqueceu como pessoa fazendo de mim o que hoje sou.

Autor: João Bosco

Diversidade, Discriminação e Igualdade

“Qualquer grupo ou reunião de pessoas é marcado e caracterizado pela diversidade. As diferenças de carácter cultural, físico, social, intelectual, de género, etárias, entre outras, estão presentes em todas as formas de agrupamento humano e, quando respeitadas, abrem caminho para a inclusão". Compreender essas diferenças enriquece e torna a sociedade mais harmoniosa, justa e igualitária.
Contudo, quando estas mesmas diferenças são manipuladas para justificar disparidades entre pessoas e agrupamentos sociais, resultantes em desequilíbrios no acesso e na garantia de direitos, o que se tem é o estabelecimento da desigualdade, produzindo discriminação, exclusão, segregação e separação de indivíduos, pessoas e grupos considerados inferiores. Isto conduz, inevitavelmente, à violação dos Direitos Humanos.
Comecemos por analisar o significado de “discriminação”. Etimologicamente, a palavra “discriminação” está associada à ideia de fazer distinção com base em etnia, raça, género, idade, nacionalidade, orientação sexual, condição social, religião ou, ainda, em razão de deficiência.

A discriminação existe enraízada na sociedade e é transmitida, muitas vezes, inconscientemente de geração em geração, através de expressões, atitudes racistas, depreciativas, entre outras. É muitas vezes suportada na existência de uma produção histórica, de estereótipos, de preconceitos, no desconhecimento acerca do outro e em processos de generalização influenciados por regimes políticos, pelos média e pela forte influência católica.
Acredito que a maioria das pessoas já experienciou discriminação, seja na primeira pessoa ou indiretamente, através de familiares ou outros entes queridos. No meu caso, foi marcante ter passado grande parte da minha infância a ver dois familiares próximos, toxicodependentes, a serem empurrados para debaixo do tapete da sociedade e a ver a comunidade gay a ser ainda mais estigmatizada do que já era, por ter o aparente exclusivo das infeções pelo VIH. No que diz respeito à tal discriminação directa, da qual provavelmente fui, sou e serei alvo de vez em quando, fui um felizardo por ter tido os recursos necessários para criar bastante imunidade.
Vale a pena consciencializarmo-nos que as discriminações “funcionam” de modo a manter privilégios, pois ao mesmo tempo que negam os direitos de alguns grupos, favorecem outros.
É verdade que têm sido feitos progressos ao longo do tempo, mas é igualmente verdade que não têm sido suficientes, ou que não têm acontecido em tempo útil, apesar de termos gozado da sorte de contar, nas últimas décadas e em muitas das democracias mundiais, com governos com uma agenda anti-discriminatória.
Basta estarmos atentos ao dia a dia para nos deparamos demasiadas vezes com situações em que alguém é vitima de discriminação. Por vezes, sem nos apercebermos, somos nós próprios os agentes discriminadores.
Contudo, os tempos que se avizinham são outros, grassam os extremismos e os agentes políticos com agendas retrógadas começam a chegar ao poder. É de esperar que existam retrocessos significativos.

Merecem a nossa atenção episódios recentes que nos dão conta de que:
- um político português, com representação parlamentar, foi condenado por discriminação racial;
- o actual presidente do Tribunal Constitucional, declarando-se ”membro da maioria heterossexual”, descreveu em 2010 e no dia da promulgação da lei que permite o casamento a pessoas do mesmo sexo, ”os homossexuais” como ”uma inexpressiva minoria, cuja voz é enorme e despropositadamente ampliada pelos média”, dizendo-se não “disposto, nem disponível para ser ‘tolerado’ por eles”[2];
- um estudo sobre diversidade e inclusão no local de trabalho desenvolvido pelo Grupo CEGOS concluiu que quase dois em cada três trabalhadores já sentiram algum tipo de discriminação com base no seu aspeto físico, idade, género ou origem étnica e cultural[3];
- um político português, líder partidário, afirmou em 2019 que os imigrantes são "sugadores" do dinheiro do Estado. Ora, confrontando estas declarações, que se mantiveram ao longo dos últimos anos, com documentos oficiais de 2019 e 2020, verifica-se que ”a relação entre as contribuições dos estrangeiros e as suas contrapartidas do sistema de Segurança Social português – as prestações sociais de que beneficiam –, têm sido bastante favoráveis para contrabalançar as contas públicas nacionais”[4];
- um primeiro-ministro inglês declarou, em abril deste ano, ter feito um acordo com o Ruanda de forma a que os migrantes e requerentes de asilo sejam para lá transferidos;
- as média de pensões de velhice atribuídas a mulheres em 2021 foram de 450 euros, 40% menos do que as reformas atribuídas a homens, o que revela desigualdades no acesso ao mundo laboral e às remunerações[5];
- a Federação Russa invadiu, desumanamente e sem qualquer motivo, o estado soberano da Ucrânia.

É necessário que, enquanto sociedade, ganhemos consciência destes problemas para que cada um de nós se mobilize na sua mitigação e erradicação.
Estamos dependentes das novas gerações para regenerarmos a sociedade. Uma nova sociedade mais igual e mais amiga do que é diverso. O combate às discriminações e a aceitação das diversidades são, e devem ser, valores defendidos na escola, pois esta tem um papel determinante na sua formação. Cabe-nos a nós, familiares e amigos, incentivá-las neste percurso.
Adicionalmente, temos a obrigação de nos assumirmos a nós próprios como agentes activos e indutores do processo de transformação da sociedade, questionando os nossos comportamentos, crenças e abdicando do nosso conforto. Cada um deve fazer a diferença!
Enquanto este processo de correcção se desenvolve, é no desenho desta nova sociedade, como arma contra as discriminações e promoção dos Direitos Humanos, que o princípio da igualdade vem em nosso auxílio, impondo o tratamento igual de todos os seres humanos perante a lei e uma proibição clara de discriminações infundadas, sem prejuízo de impor diferenciações de tratamento entre pessoas, quando tal se justifica.
O substantivo “igualdade”, etimologicamente tem origem do latim aequalìtas e tem associadas as definições de “aquilo que é igual”, “semelhante”, “qualidade de igual”, “relação entre coisas ou pessoas iguais”, “correspondência perfeita entre as partes de um todo”.
O princípio da igualdade é um conceito jurídico que tem vindo a sofrer modificações, fruto da evolução histórica e social e é, desde há muito, objecto de estudo, nomeadamente, de filósofos, sociólogos e juristas, encontrando-se referências a este princípio desde a antiguidade clássica.
Historicamente, são muitos os momentos em que, impondo o princípio da igualdade por força da lei, se foram garantindo novos direitos aos povos, limitando as discriminações e promovendo o respeito pela diversidade. Dito de outra forma, foram sendo aprofundados os Direitos Humanos.

Uma das primeiras referências à proteção dos Direitos Humanos data de 539 a.C., quando as tropas de Ciro, o Grande, conquistaram a Babilónia. Ciro libertou os escravos, declarou que todas as pessoas tinham o direito de escolher sua própria religião e estabeleceu a igualdade étnica. Esses e outros princípios serviram de inspiração para os quatro primeiros artigos da Declaração Universal dos Direitos Humanos de que falo mais à frente.
A idade média aparenta ser parca no aprofundamento dos Direitos Humanos. Não é surpresa. Em 1215 é promulgada a Magna Carta e é introduzido o conceito de “Estado de Direito” e a ideia básica de direitos e liberdades definidos para todas as pessoas, garantindo proteção contra processos arbitrários e encarceramento.
A Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, surge em 1789, adoptada pela Assembleia Nacional da França. O documento representa uma das cartas básicas das liberdades humanas, contendo os princípios que inspiraram a Revolução Francesa. O valor básico introduzido pela Declaração foi o de que todos “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”, especificados como os direitos de liberdade, propriedade privada, inviolabilidade da pessoa e resistência à opressão.
Os avanços desde a época de Ciro foram impressionantes, mas muitos destes direitos, quando traduzidos em políticas, excluíam mulheres, pessoas não brancas e membros de certos grupos sociais, religiosos, económicos e políticos. Os primeiros esforços conhecidos para superar esta situação são do século XIX e início do século XX. Tratam-se da proibição do comércio de escravos e da redação dos primeiros tratados internacionais sobre leis e crimes de guerra.

Significativa é a adoção das quatro primeiras Convenções de Genebra e das Convenções de Haia, expressando a profunda preocupação da opinião pública em promover o respeito por um nível básico de dignidade humana dos indivíduos, mesmo em tempos de guerra, lançando as bases do direito internacional humanitário moderno.
Em 1948, a Comissão dos Direitos Humanos da ONU chamou a atenção do mundo, redigindo os 30 artigos que hoje compõem a Declaração Universal dos Direitos Humanos. A Declaração foi apresentada ao mundo, funcionando pela primeira vez como uma carta reconhecida e aceite internacionalmente, cujo primeiro artigo afirma que “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e direitos. Eles são dotados de razão e consciência e devem agir uns para com os outros com espírito de fraternidade."
No seu preâmbulo é afirmado que “o reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos iguais e inalienáveis ​​de todos os membros da família humana é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”. São também reafirmados os direitos civis e políticos já atrás identificados e introduzidos direitos de natureza fundamentalmente económica, social e cultural, e afirmados que todos os direitos são interdependentes e indivisíveis.
A mensagem foi clara e poderosa. A realização de um direito está ligada à realização dos outros. Todos os Direitos Humanos, sejam eles direitos civis e políticos (o direito à vida, à igualdade perante a lei e à liberdade de expressão), direitos económicos, sociais e culturais (o direito ao trabalho, à segurança social e à educação), ou direitos colectivos (o direito ao desenvolvimento e à autodeterminação) são indivisíveis, inter-relacionados e interdependentes. A melhoria de um direito facilita o avanço dos outros. Da mesma forma, a privação de um direito dificulta o aperfeiçoamento e gozo dos outros.
A influência da DUDH tem sido substancial e, juntamente com os Pactos Internacionais sobre Direitos Económicos, Sociais e Culturais e sobre Direitos Civis e Políticos, constitui a “Carta Internacional de Direitos” que estabelece as obrigações dos governos em agir de determinadas maneiras ou abster-se de atos específicos, a fim de promover e proteger os Direitos Humanos e as liberdades fundamentais de indivíduos ou grupos.
Os seus princípios foram incorporados nas Constituições de quase todos os membros da ONU e alcançaram o estatuto de direito internacional (fonte: https://tinyurl.com/5n6bk8wx ).
A Constituição da República Portuguesa não é excepção ao referido, afirmando no seu artigo 13.º, Princípio da igualdade, que “1) Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, 2) Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”[6]

Vale a pena ainda referir que, no quadro do atual projeto de revisão da Constituição da República Portuguesa, a proposta do Partido Socialista propõe uma nova redação para o artigo 13.º, número 2. Nesta, pode ler-se que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, identidade de género, etnia, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual”[7].
São propostas a substituição de raça por etnia e a inclusão da garantia de que a identidade de género não pode ser motivo para qualquer tipo de discriminação. Mais uma evolução.
Mas é verdade que não basta mudar regimes políticos, governantes e leis. Pode ser condição necessária mas não suficiente. Reforço que é premente termos consciência de que a discriminação é, e será sempre, um problema. É importante sermos humildes, evitarmos tudo o que é dogma e sermos racionais. A complexidade do mundo exige que assim seja.

Enquanto maçons temos uma reponsabilidade acrescida nesta luta. Não nos esqueçamos que nos é ensinado que o valor individual de um ser humano deve apenas ser apreciado pelas qualidades morais do próprio e pelo esforço que emprega na realização do bem.
Uma pessoa sozinha não muda o mundo e por ter essa convicção juntei-me a vós. Exploremos a força e a união da loja, onde todos trabalhamos como irmãos e somos convidados a contribuir de forma igual.

Autor: Abílio Mendes