Em primeiro lugar e antes de dar início a minha prancha pretendo citar-vos um excerto de Nietzsche, na obra “Assim Falou Zaratustra, Da Virtude Dadivosa":
“O homem se acha no meio de sua rota, entre animal e super-homem, e celebra seu caminho para a noite como a sua mais alta esperança; pois é o caminho para uma nova manhã.
Então aquele que declina abençoará a si mesmo por ser um que passa para lá; e o sol do seu conhecimento permanecerá no meio-dia.
‘Mortos estão todos os deuses: agora queremos que viva o super-homem'”
O transumanismo é um movimento filosófico, intelectual, cultural, social e, mais recentemente, estão tentando alçá-lo a uma condição política. É o que se busca com a melhora do ser humano como a principal preocupação da humanidade, senão a única, projetando-o numa esfera evolutiva ao ponto de superar as limitações de nossa espécie”
Na tentativa de criar novos indivíduos, o transumanismo propõe mudanças estruturais profundas no nosso conceito de "homem". É fundamental abordar os problemas práticos das chamadas melhorias e analisar os problemas éticos derivados de tais práticas, cuja causa fundamental é um equívoco da pessoa.
A corrente de pensamento transumanista defende uma filosofia que procura a melhoria da condição humana através do uso da ciência e tecnologia, com a finalidade de aumentar a capacidade cognitiva, superando limitações físicas e psicológicas intrínsecas ao ser humano, enquanto proclama a liberdade e acessibilidade na escolha dos recursos pós-humanos de modificação.
Em 1998 foi criada a Associação Mundial Transumanista (WTA), a qual se passou a chamar “Humanidade +” em 2008 (Humanity +). Seu maior expoente é o filósofo sueco Nick Bostrom, que no seu artigo intitulado “A história do pensamento transumanista” traça romanticamente a origem dessa ideologia desde a Epopeia de Gilgamesh e outras buscas pela imortalidade, incluindo a da pedra filosofal.
O conceito de "transumanar" foi usado pela primeira vez por Dante Alighieri na obra "A divina Comédia", entendendo-a como a experiência elevada pela graça, além do humano, rumo à realização total e transcendente em Deus.
A chamada filosofia transumanista moderna foi originalmente descrita no ensaio de Max More, intitulado Transhumanism - Towards a Futurist Philosophy, em 1990, no qual o transumanismo é definido como uma classe de filosofias que busca guiar-nos em direção a uma condição pós-humana. Transumanismo compartilha muitos elementos do humanismo, incluindo o respeito pela razão e pela ciência, um compromisso com o progresso e uma valorização da existência humana (ou transumana) “terrena”, em vez de alguma pós-vida sobrenatural. Transumanismo difere do humanismo ao reconhecer e antecipar as radicais alterações na natureza e as possibilidades das nossas vidas resultantes de várias ciências e tecnologias, tais como a neurociência e a neurofarmacologia, o prolongamento da vida, nanotecnologia, ultrainteligência artificial, combinado com uma filosofia racional e um sistema de valores.
O transumanismo busca melhorar a natureza humana, superando as suas limitações e prolongando a sua existência através da razão, ciência e tecnologia.
Nesta estrada rumo ao futuro ele precisa de um estágio intermediário (transumano ou humano +) para chegar ao pós-humano (humano ++).
Para isso, promove três propostas:
1) as tecnologias para "melhoramento" humano devem ser amplamente disponibilizadas;
2) os indivíduos devem ter o direito de transformar o seu corpo de acordo com os seus desejos;
3) os pais devem tem o direito de escolher as tecnologias a usar quando decidem ter filhos.
Os defensores transumanistas são defensores do redesenho da condição humana, incluindo parâmetros como envelhecimento, limitação do intelecto, psicologia indesejável, sofrimento e confinamento ao planeta terra.
Os princípios gerais orientadores do transumanismo e a sua versão atual contempla, após as modificações de 2002 e 2009, oito princípios, que podem ser sintetizados do seguinte modo:
(1) o humano, já fortemente afetado pela ciência e tecnologia, pode ser ainda mais beneficiado, por exemplo, com a superação do envelhecimento, de deficiências e do sofrimento involuntário;
(2) atendendo aos riscos das biotecnologias, deve haver um esforço para a sua investigação e compreensão, a fim de reduzir riscos e acelerar as aplicações, cujos efeitos sejam benéficos;
(3) devem-se respeitar os direitos e autonomias individuais e defender o bem-estar de toda forma senciente de vida através da adoção de políticas, demonstrando as nossas responsabilidades morais para com as gerações vindouras;
(4) deve-se permitir a disponibilização de um vasto rol de técnicas de melhoramento da vida, associada à liberdade de escolha individual da respetiva utilização.
Baseados nestes princípios, os transumanistas ligados ao secularismo, rejeitando argumentos de cunho estritamente religioso, pretendem promover uma nova forma de Iluminismo, de cariz biológico. À semelhança do Esclarecimento moderno, o humano deve sair da sua "menoridade biológico-estrutural", investindo na auto-tutoria. Por meio do cálculo racional, ampliando o potencial humano cibernético a um nível superior, o humano, ao mesmo tempo, estaria a realizar plenamente a sua "natureza cibernética" (a saber, de governar tudo o que há) e a alterar a sua "natureza vulnerável", retirando aquilo que o prendia a uma natureza precária. O humano deveria deixar de ser regido pela natureza quanto ao seu processo evolutivo, assumindo a responsabilidade de guiar a sua própria melhoria.
A perspetiva transumanista poderia, assim, ser entendida como uma consequência do Humanismo secular e do Iluminismo. A união entre razão, ciência e técnica para um investimento no (pós-)humano justifica o fato de os transumanistas se autodenominarem humanistas racionais.
A argumentação transumanista prestigia o aspeto biológico do humano. A natureza humana, para o transumanismo, é básica ou exclusivamente a sua biologia. É a natureza biológica do humano que está no foco transumanista, uma vez que o melhoramento humano se dará a partir do melhoramento biológico.
Do ponto de vista neurobiológico, o transumanismo procura o aprimoramento das habilidades sensoriais, o aumento da memória, a aceleração dos processos de raciocínio e a diminuição do número de horas de sono. Para isso, procura mecanismos tecnológicos, sejam eles farmacológicos ou do campo da engenharia, visando desenhar cérebros artificiais com capacidade de inteligência natural, incluindo interfaces homem-máquina, cérebros humanos ciborgues e existência pós-biológica em computadores através de scanners que permitem obter a matriz sináptica do cérebro do indivíduo que permita a sua reprodução num computador.
Que problemas surgem da antropologia filosófica e ética na teoria transumanista?
Desde a sua criação, o transumanismo tem recebido várias revisões. O filósofo e cientista político americano Francis Fukuyama considerou o transumanismo "a ideia mais perigosa para os sistemas democráticos", descrevendo-o como uma ameaça à essência humana e ao princípio da igualdade de todos os homens.
Outros argumentam que a eventual bifurcação de humanos em pós-humanos levaria à escravidão e ao genocídio entre os dois grupos ou mesmo que as suas ideias podem levar à extinção da humanidade.
Para além dos problemas médicos, sociais e económicos, o cerne principal do problema centra-se numa inadequada visão e conceito de pessoa humana.
Por outras palavras, antes de qualquer discussão sobre a dimensão ética das " melhorias ", deve-se perguntar se é ético manipular a pessoa em si. A concepção transumanista mostra uma visão da identidade maleável, tomando o corpo humano e o homem como meramente instrumental. Não assume que a natureza humana pode ir para um fim. Para os transumanistas, o homem é, em si mesmo, tecnologia corporificada e, como tal, não faz sentido afirmar que a modificação tecnológica do seu corpo afeta negativamente a sua identidade.
Do exposto, conclui-se que o transumanismo usa um conceito reducionista da natureza humana, na qual ela é reduzida à matéria pura (materialista) e o ser humano é limitado às suas conexões neuronais (reducionismo neurobiológico). O homem permanece como o que pode ser percebido e moldado, sem propósito intrínseco e possibilidade de transcendência ao imaterial. Essa ausência de propósito intrínseco, impossibilita, por sua vez, uma ética onde o ser humano seja o objetivo final.
As decisões que o homem toma e executa não se baseiam apenas na razão nem na objetividade, mas na sua realidade pessoal, no seu contexto, cultura, idiossincrasia etc. Tudo o que define a sua identidade e a sua natureza humana. Por outras palavras, a atribuição do fenómeno mental é responsabilidade do conjunto de razões, crenças e intenções do indivíduo. Não é possível reduzir uma descrição psíquica que emerge e faz sentido no contexto mental a teorias reducionistas de interações neurais ou da imagem num scanner. Não é claro que a mente e o cérebro sejam o mesmo.
Em relação ao conceito de pessoa, os transumanistas consideram como tais os seres que têm a capacidade de raciocinar. Isso justificaria, por exemplo, a exclusão do referido conceito (e, portanto, a possibilidade de manipulação) de seres incapazes de fazê-lo, como embriões, fetos, crianças, incapazes etc.
Com isso percebe-se que a postura moral transumanista não impõe nenhuma limitação de ação.
Esse conceito de pessoa concederia personalidade a máquinas avançadas, extraterrestres ou macacos superiores. Essa forma de reducionismo racionalista (pessoa = razão) esquece que o indivíduo não é pessoa porque se manifesta a sua capacidade racional, mas que a última se manifesta pelo facto do indivíduo ser uma pessoa em si.
Como consequência do seu conceito racionalista de pessoa, deriva um conceito semelhante de dignidade: uma qualidade, um tipo de excelência que admite graus e se aplica a entidades tanto dentro como fora do reino humano.
Embora os transumanistas clamem pela defesa dos direitos humanos, para fins práticos, podemos ver que o conceito de dignidade transumanista contradiz três Princípios da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
1) a dignidade humana é universal, algo que todos os indivíduos possuir apenas pelo fato de ser humano;
2) a dignidade humana é inerente à natureza humana e não é dependente de suas realizações ou de suas " excelências " particulares; e
3) a dignidade humana é aplicada igualmente a todas as pessoas, não admitindo diferentes graus dela.
Mais uma vez, se a ideia de dignidade for equiparada à de autonomia ou qualidade, como defendem os transumanistas, qualquer prática instrumental no ser humano poderia ser justificada.
O transumanismo esquece, porém, que a imperfeição do ser humano e sua relação de insatisfação face à realidade lhe permite ter aspirações, progredir, pensar, vencer ou errar… mas sobretudo, permite -lhe viver e transcender;
Em suma, ser humano.
Autor: Viktor Frankl
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