segunda-feira, 22 de março de 2021

A Escravatura e a “Nova Escravatura”

A escravidão foi, desde tempos remotos, uma situação aceite e tornou-se essencial para a economia e para a sociedade de todas as civilizações antigas, embora fosse um tipo de organização muito pouco produtivo. A Mesopotâmia, a Índia, a China e os antigos egípcios e hebreus utilizaram escravos.

Na civilização grega, o trabalho escravo acontecia na mais variada sorte de funções: os escravos podiam ser domésticos, podiam trabalhar no campo, nas minas, na força policial de arqueiros da cidade, podiam ser ourives, remadores de barco, artesãos etc. Para os gregos, tanto as mulheres como os escravos não possuíam direito de voto. Muitos dos soldados do antigo Império Romano eram ex-escravos.

No Império Romano, o aumento de riqueza realizava-se mediante a conquista de novos territórios, capazes de fornecer escravos em maior número e mais impostos ao fisco. Contudo, arruinavam os pequenos proprietários livres, que, mobilizados pelo serviço militar obrigatório, eram obrigados a abandonar as suas terras, das quais acabavam por ser expulsos por dívidas, indo elas engrossar as grandes propriedades cultivadas por mão de obra escrava.

As novas conquistas e os novos escravos que elas propiciavam começaram a ser insuficientes para manter de pé o pesado corpo da administração romana. Os conflitos no seio das classes de "homens livres" começam a abalar as estruturas da sociedade romana, com as lutas entre os patrícios e a plebe, entre latifundiários e comerciantes, entre colectores de impostos e agricultores arruinados, aliados aos proletários das cidades. Ao mesmo tempo, começou a manifestar-se o movimento de revolta dos escravos contra os seus senhores e contra o sistema esclavagista, movimento que atingiu o auge com a revolta de Espártaco 73-71 a.C.. Desde o século II, a necessidade de ter receitas levava Roma a organizar grandes explorações de terra e a encorajar a concentração das propriedades agrícolas, desenvolvendo o tipo de exploração esclavagista.

E qual foi o papel de Portugal na escravatura?

“Os escravos pululam por toda a parte. Todo o serviço é feito por negros e mouros cativos. Portugal está a abarrotar com essa raça de gente. Estou quase em crer que só em Lisboa há mais escravos e escravas que portugueses de livre condição. Mal pus o pé em Évora, julguei-me transportado a uma cidade do Inferno: por toda a parte topava com negros, raça por que tenho tal aversão, que eles só por si bastariam para me fazer abalar daqui.”

Foi assim que o humanista flamengo Clenardus registou as suas primeiras impressões acerca de Portugal, pouco tempo depois da sua chegada, no ano de 1535. Para alguém como ele, vindo do norte, a instituição da própria escravatura deve ter surgido como algo de inédito, ainda que no sul da Europa os escravos obtidos no comércio com as regiões próximas do mar Negro e nas incessantes guerras contra os estados islâmicos tivessem já representado o seu papel ao longo da Idade Média. O que era verdadeiramente impressionante no Portugal dos séc. XV e XVI era o número de escravos negros, que formava uma das maiores concentrações de gente negra numa sociedade europeia, nos séculos que nos precederam, embora nunca ultrapassassem o número dos portugueses por nascimento, como Clenardus fantasiosamente supôs.

A sua presença era consequência das viagens efetuadas ao longo da costa ocidental africana, fomentadas pelo Infante D. Henrique durante a primeira metade do séc. XV. Por volta de 1440, os seus capitães começaram a trazer escravos negros, e, um século mais tarde, os escravos negros ultrapassavam muito provavelmente o número de mouros que tinham constituído o grosso da população escrava portuguesa nas épocas medievais. Desta feita, Portugal tornou-se a primeira sociedade europeia da época moderna em que a escravatura negra passou a ser usual.

Dificilmente se encontraria uma área da vida portuguesa - económica, social ou intelectual – que a escravatura não influenciasse de alguma forma. Tratou-se de uma influência crucial no papel histórico de Portugal enquanto descobridor, já que foi a possibilidade de arranjar escravos que ganhou apoio popular para as viagens que patrocinou o Infante D. Henrique para o sul, assim como a intenção d encontrar novos fornecedores de escravos, ou seja, novos territórios cuja população pudesse ser escravizada. Dali em diante, o tráfico de escravos constituiu o mais central vínculo comercial entre Portugal e a maioria dos reinos litorais de África, ao mesmo tempo que a reexportação de escravos para Espanha e para as Américas veio a tornar-se uma característica essencial da economia portuguesa.

O Império Português foi o primeiro a iniciar o comércio de escravos para o Novo Mundo no século XVI e outros logo o seguiram. Os donos dos navios negreiros consideravam os escravos como uma carga que deveria transportada para a América da maneira mais rápida e barata possível, para então serem vendidos para o trabalho escravo em lavouras de café, tabaco, cacau, açúcar e algodão, nas minas de ouro e prata, campos de arroz, na indústria de construção, corte de madeira e como empregados domésticos.

As razões para o emprego de escravos têm sido objeto de debates que remontam ao séc. XVI. Há quem considere que os escravos eram importados para compensar a perda dos homens idos para as colónias de além-mar. No entanto, as províncias nortenhas, que eram as que mais emigrantes forneçam, eram as que tinham menor número de escravos. Os escravos eram empregues sobretudo nas regiões em que o contingente local de trabalho livre não podia satisfazer a procura criada pelo aumento da economia. Era esta a situação de Lisboa e das províncias mais a sul, no entanto há dados que indicam que, por volta de meados do séc. XVI, o crescimento populacional começou a tornar desnecessária a mão de obra escrava, pelo menos no que se refere a Lisboa.

Ora isto traz-nos para os tempos atuais e para aquilo que eu chamo a “Escravatura Moderna”. A exemplo do que acontecia no séc. XVI, também hoje os países desenvolvidos da Europa recorrem aos imigrantes para fazer face à escassez de mão de obra local, especialmente em algumas profissões menos desejadas pelos naturais dos países. Muitos desses imigrantes provêm de países em guerra ou com precárias condições de vida e procuram a Europa para terem uma vida melhor, mas nem sempre é assim. Países há onde estes imigrantes vivem em condições desumanas, degradantes mesmo, em grandes cidades de países ditos desenvolvidos, como tive oportunidade de testemunhar há três anos atrás em pleno Paris.

E que dizer de proprietários agrícolas que contratam estrangeiros para trabalhos sazonais e depois, por vezes, vem-se a descobrir que não lhes pagam, apenas lhes dão de comer e mantêm-nos prisioneiros, sem sequer os deixar sair à rua. Até aqui em Portugal já foram relatadas situações destas.

E as redes de mendicidade, que põem mulheres e crianças a pedirem nas ruas, explorando-os e tratando-os, mais uma vez, como autênticos escravos.

Mas há situações menos graves que estas que espelham igualmente algo de escravatura, desta escravatura moderna: trabalhadores de algumas profissões, que só têm uma folga semanal, trabalhadores que fazem dois e três turnos seguidos mas não ganham horas extraordinárias, trabalhadores que são excluídos ou prejudicados por cumprirem apenas o seu horário de trabalho e não fazerem horas extra pro bono.

Atente-se também no que se passa em países menos desenvolvidos da Ásia, onde crianças são utilizadas em trabalhos muitas vezes pesados, onde trabalhadores trabalham em condições precárias para produzirem produtos de grandes marcas, que depois são vendidos nos mercados ocidentais com grandes ganhos.

Não serão estes alguns exemplos correntes de escravatura moderna? Ou para se ser considerado escravo tem de se andar acorrentado e sofrer castigos e sevícias? Onde está a liberdade? Onde está a igualdade? Onde está a fraternidade? Onde estão os Direitos Humanos?

Mas voltemos à História:

A Dinamarca, que tinha sido ativa no tráfico de escravos, foi o primeiro país a proibir o seu comércio através de uma legislação de 1792, que entrou em vigor em 1803. O Reino Unido proibiu o comércio de escravos em 1807, impondo pesadas multas para qualquer escravo encontrado a bordo de um navio britânico. A Marinha Real Britânica, que na época controlava os mares do mundo, começou a impedir que outras nações continuassem a praticar o comércio de escravos e declarou que o tráfico negreiro era igual a pirataria e era punível com a morte. O Congresso dos Estados Unidos aprovou a Lei de Comércio de Escravos de 1794, que proibiu a construção de navios nos Estados Unidos para o uso no comércio de escravos. Em 1807, o congresso proibiu a importação de escravos a partir de 1 de janeiro de 1808, a primeira data permitida pela Constituição dos Estados Unidos para tal proibição. No entanto isso não impediu que a escravatura nesse país continuasse a existir por mais 57 anos!

O último navio negreiro registado a atracar em solo americano foi o Clotilde, que em 1859 contrabandeou ilegalmente vários africanos na cidade de Mobile, no Alabama. Os africanos a bordo foram vendidos como escravos e a escravidão nos Estados Unidos só foi abolida cinco anos mais tarde, após o fim da Guerra Secessão, em 1865. O último país a proibir o comércio de escravos no Atlântico foi o Brasil, em 1888. Um comércio ilegal vibrante tinha continuado a enviar uma grande quantidade de pessoas escravizadas para o Brasil e também para Cuba, até a década de 1886, quando a pressão dos britânicos finalmente pôs fim ao comércio atlântico.

O historiador Walter Rodney afirma que foi uma queda na rentabilidade das operações triangulares que tornou possível a consolidação das críticas contra o tráfico negreiro no Atlântico. Rodney afirma que as mudanças na produtividade, na tecnologia e nos padrões de intercâmbio na Europa e na América impulsionou a decisão dos britânicos de acabar com a sua participação no comércio de escravos em 1807.

Em 1998, a UNESCO, das Nações Unidas designou o dia 23 de agosto como o "Dia Internacional de Recordação do Tráfico de Escravos e de sua Abolição". Desde então, tem havido uma série de eventos que reconhecem os efeitos da escravidão.

Em 30 de janeiro de 2006, Jacques Chirac (o então presidente francês) disse que 10 de maio seria, a partir de então, um dia nacional em memória das vítimas da escravidão promovida pela França, marcando o dia em 2001, quando o país aprovou uma lei que reconhecia a escravidão como um crime contra a humanidade.

Em 27 de novembro de 2006, Tony Blair, então primeiro-ministro britânico, fez um pedido de desculpas parcial pelo papel do Reino Unido no comércio de escravos africanos. No entanto ativistas dos direitos africanos denunciaram o discurso como "retórica vazia" que não conseguiu resolver o problema corretamente. Blair novamente pediu desculpas no dia 14 de março de 2007.

Em 31 de maio de 2007, o governador do Alabama, Bob Riley, assinou uma resolução expressando "profundo pesar" pelo papel do estado na escravidão e desculpas pelos erros e os efeitos remanescentes. O Alabama é o quarto estado do sul a fazer um pedido de desculpas formal pela escravidão, após Maryland, Virgínia e Carolina do Norte. Em 30 de julho de 2008, a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos aprovou uma resolução pedindo desculpas pela escravidão e por leis discriminatórias posteriores. Em 18 de junho de 2009, o Senado dos Estados Unidos emitiu um comunicado pedindo desculpas condenando as "fundamentais injustiças, crueldades, brutalidades e desumanidades da escravidão".

Aparentemente tudo está bem, todos os países fazem mea culpa, pedem desculpas, lamentam o passado. Mas continuam hoje a existir homens mulheres e crianças a viver em condições de autêntica escravatura nos dias de hoje, e toda a gente olha para o lado, até nós, se calhar.

A Declaração Universal dos Direitos Humanos diz, nos seus primeiros artigos:

Artigo 1.º: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.

Artigo 4.º: Ninguém será mantido em escravatura ou em servidão; a escravatura e o trato dos escravos, sob todas as formas, são proibidos.

Artigo 5.º: Ninguém será submetido a tortura nem a penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes.

Quanta hipocrisia! Possamos nós, enquanto Maçons livres nunca pactuar com situações destas e defender sempre os valores da Liberdade, Igualdade e Fraternidade que defendemos.


Autor: António Egas Moniz

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