Os anos já lhe pesavam nas pernas e o tempo húmido e frio não ajudava nada. Mas ele não era dos que desistem facilmente. Com passos vagarosos ia subindo a rua. Há muito que a noite tinha estendido o seu manto negro sobre a cidade. Não se via muita gente nas ruas. As molas de um velho autocarro chiavam com os solavancos do piso irregular. Dava para perceber que o motorista evitava os carris do eléctrico, pois aí o perigo de derrapagem aumentava ainda mais. Lá dentro, meia dúzia de passageiros olhava distraidamente para a rua.
Teve de parar um pouco para respirar. Havia contudo outro motivo para a sua paragem. Queria certificar-se de não estar a ser seguido. No passeio por onde subia a íngreme rua não se via ninguém a caminhar na mesma direcção. Ficou mais descansado. No entanto, mal pôde, dobrou uma esquina e depois de caminhar alguns metros, voltou a parar olhando discretamente para trás. Retomou a marcha, mas pelo sim pelo não, depois de voltar a mudar de rua repetiu a paragem.
À medida que caminhava, vinham-lhe à memória cenas que gostaria de nunca mais voltar a viver. Ele que criticava todas as ideologias radicais, ele que apenas queria que no seu país houvesse justiça, liberdade de expressão e menos pobreza, tinha sido expulso do ensino público só porque tinha sido um dos subscritores de um abaixo-assinado. Ao fazê-lo entrava para a lista negra dos “perigosos comunistas” e passava a ter de viver com os magros proventos das explicações que dava.
Pensou nos amigos que o esperavam. Um tinha sido desterrado para centenas de quilómetros da cidade alentejana onde tinha nascido e onde sempre tinha vivido e exercido a profissão. Só de lá tinha saído para estudar direito. Motivo: ter-se assumido como republicano num país que oficialmente continuava a ser uma república! Agora, reformado, sempre que podia vinha à capital para se encontrar com os amigos.
Apesar da idade, o médico ainda tinha de trabalhar. Não tendo direito a qualquer reforma, se não fosse dando as suas consultas não teria forma de se sustentar a ele e à mulher que a diabetes tinha cegado.
Quem lhe tinha feito mais confusão era o graduado da polícia. Fazia uma vida dupla. De dia fingia ser o mais fiel dos seguidores do ditador. De noite, reunia-se com os resistentes. De início receavam-no, mas depois de anos de convívio, tinham total confiança nele, até porque por mais de uma vez os tinha avisado da eminência de mais alguma vaga repressiva.
O velho marujo era o que mais vezes sentia o maravilhoso sabor da liberdade… a ditadura não conseguia proibir o vento de trazer o cheiro a maresia. Tinha andado num seminário, mas fartara-se e o chamamento do mar tinha sido irresistível. Já o tinham tentado apanhar com as artimanhas em que o regime era fértil, mas sem sucesso. A última tinha sido a de obrigar os seus homens a irem a uma manifestação favorável ao regime que se tinha sentido em perigo com a candidatura de um general sem medo. Habituado a lidar com as fúrias do oceano, lá se conseguiu escapar airosamente: teve de zarpar na véspera da manifestação “espontânea” devido a um aviso meteorológico…
Não bastando a mais do que evidente cumplicidade da alta hierarquia da Igreja nacional com o ditador, há muito que as ordens de Roma eram claras: nenhum crente podia pertencer a uma organização como aquela que os unia sob pena de excomunhão. Mas o padre João não se preocupava e dizia que respondia directamente perante o Criador. Só queria que o pesadelo em que o país estava mergulhado havia décadas acabasse. E ele bem sabia do que falava, pois passava a maior parte do tempo a tentar acudir aos mais necessitados. Mas era tão pouco o que tinha para lhes dar…
É verdade que naquele grupo predominavam os “doutores”, por isso os dois que pouco mais sabiam do que ler e escrever eram especialmente acarinhados. Um era motorista da Carris e o outro ferroviário. Homens calejados pela vida desejavam um futuro mais justo para os filhos e os netos.
Pensou no que iriam falar nessa noite. Havia muitos boatos, mas parecia certo que a polícia política tinha armado uma cilada ao General e que o teria assassinado. À hora combinada chegou a casa do amigo. Desta vez calhava-lhe a ele ser o último. Tinham de chegar um a um, discretamente. Subiu com esforço até ao primeiro andar. A cada degrau, as artroses dos joelhos causavam-lhe dores.
Pareceu-lhe que havia um silêncio mais pesado do que era habitual. Devia ser impressão sua. Como sempre, deu três discretas pancadas na velha porta. A voz que ouviu fez-lhe parar o sangue: «é só um momento».
Dez minutos depois aqueles homens bons e honrados que apenas queriam que o seu país vivesse em paz e que no mundo inteiro reinassem a liberdade, a igualdade e a fraternidade, lá iam a caminho de uma masmorra…
Viva o 25 de Abril
Autor: Carl Sagan
2 comentários:
Parabéns por este espaço, que prima por ter bom conteúdo, mas também pelo seu aspecto arrejado.
T.'. A.'. F.'.
Mota
Conteúdos excelentes- gostei.
T.'.F.'.A.'.
Carlos Ramos (Vilaça)
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