sexta-feira, 14 de junho de 2024

O Papel da Maçonaria na Era Moderna

Antes de poder falar do papel da Maçonaria na era moderna, do seu presente e, mais em concreto, do seu futuro, aludo primeiro aos tempos mais imemoriais; a Ordem maçónica em Portugal remonta as suas origens muito possivelmente a 1727, pela mão do católico inglês Dugood, ou Dogut, que ergueu em Lisboa as colunas da Loja dos Herejes Mercadores. Nestes quase três séculos de existência, a Maçonaria está intimamente ligada à História de Portugal, tendo inspirado os grandes movimentos liberais, republicanos e democráticos no nosso país.

Mas não será justo falar de história da Maçonaria em Portugal sem relevar o período subsequente a 1869, data da criação do Grande Oriente Lusitano Unido, sob a égide do Grão-Mestre Conde de Paraty, e por onde passaram figuras tão ilustres como Elias Garcia, António Augusto de Aguiar, Bernardino Machado, mais tarde presidente da República, Sebastião de Magalhães Lima, Mouzinho da Silveira, Alexandre Herculano, Garrett, João de Deus, o cardeal Saraiva, patriarca de Lisboa, Machado Santos, Afonso Costa, António José de Almeida, António Maria da Silva, Miguel Bombarda, Sidónio Pais, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Eça de Queirós, Rafael Bordalo Pinheiro, Egas Moniz (prémio Nobel da Medicina), Teixeira de Pascoais, Jaime Cortesão e Aquilino Ribeiro, entre muitos outros.

Mas com o intuito de inferir qual o verdadeiro papel do Maçon, tornemos por um breve instante às primícias do tudo; em termos etimológicos, a palavra Maçonaria deriva do francês “Maçonnerie”, que significa uma qualquer construção realizada por um qualquer pedreiro, o Maçon. A Maçonaria tem assim como propósito essencial, a edificação de algo e o Maçon, o também apelidado de pedreiro-livre, não é mais do que o obreiro dessa construção, o que trabalha para o erguer de um edifício.

Maçonaria significa, pois, construção; o Maçon edifica o seu futuro tornando-se um homem melhor e nesse trajeto a Maçonaria esclarece e aperfeiçoa a humanidade, tornando-a mais justa e perfeita. Este objeto está inscrito, como pedra basilar, nas constituições maçónicas do mundo moderno; a Constituição do Grande Oriente Lusitano de 1926, define a Maçonaria como “uma instituição essencialmente humanitarista, procurando realizar as melhores condições de vida social” enquanto que a Constituição de 1985 aponta como seu propósito o “aperfeiçoamento da Humanidade através da elevação moral e espiritual do indivíduo”. Diferem apenas as palavras, não o sentido.

Em suma, e citando em forma de homenagem o Nosso Irmão António Arnaud, a Maçonaria é uma ordem iniciática e ritualista, universal e fraterna, filosófica e progressista, baseada no livre-pensamento e na tolerância, que tem por objetivo o desenvolvimento espiritual do homem com vista à edificação de uma sociedade mais livre, justa e igualitária. Não aceita dogmas, combate todas as formas de opressão, luta contra o terror, a miséria, o sectarismo e a ignorância, combate a corrupção, enaltece o mérito, procura a união de todos os homens pela prática de uma moral universal e pelo respeito da personalidade de cada um, e considera o trabalho como um direito e um dever, valorizando igualmente o trabalho intelectual e o trabalho manual.

Apesar de todos estes predicados serem em tudo atuais, seleciono os dois que entendo melhor estarem alinhados com a inscrição que encima este texto; a Maçonaria como instituição universal e fraterna, isto é, a visão do mundo como uma verdadeira família, em que os homens se vejam verdadeiramente como irmãos, sem qualquer distinção de raça, sexo, religião, ideologia e condição social; e a Maçonaria como instituição progressista, no pressuposto de que é possível conceber um homem melhor, através da sua elevação espiritual, capaz de contribuir para o aperfeiçoamento da humanidade, encurtando desigualdades e reduzindo as injustiças sociais.

Mas, sendo a Maçonaria um espaço que se qualifica como de diálogo e de tolerância, de que forma deve, ou pode exercer a sua influência no mundo profano de modo a contribuir de forma resoluta para a fraternidade universal e para o progresso da humanidade? 

Vivendo num regime democrático, não serão os partidos o veículo privilegiado para realizar as transformações político-sociais que nós Maçons tanto almejamos? Na verdade, não, pois os partidos são em geral máquinas de poder, praticamente esvaziadas dos seus princípios programáticos e assolados por um carreirismo desenfreado e tentacular, que por vezes parece ameaçar e subverter o próprio ideal democrático.

Sendo a Ordem Maçónica um espaço de diálogo fraterno entre pessoas de todas as ideologias, esta pode e deve continuar a desempenhar por esta via, um papel de relevo no aperfeiçoamento das instituições, inclusive das instituições democráticas, insuflando-lhes os valores morais que são o apanágio de um verdadeiro Maçon.

Parece, assim inquestionável que a influência da Maçonaria no mundo profano não se exerce diretamente, pois não estabelece diretivas nem impõe qualquer tipo de intervenção concreta, mas apenas indiretamente, através do exemplo, da pedagogia e da influência individual dos seus membros nos locais onde exercem a sua atividade, sejam nos seus no empregos, partidos políticos, organizações cívicas e sociais. Não esqueçamos o início deste parágrafo… “parece inquestionável”. 

Não obstante, entendo que este preceito não desresponsabiliza a Maçonaria enquanto instituição; se não mais exemplos houvesse, vejamos como a Maçonaria foi, não só útil, mas como cardeal na abolição da escravatura, na reconstrução de uma sociedade destroçada pelo terramoto de 1755, na instauração da república em 1910, e mesmo na manutenção dos ideais maçónicos na sociedade durante a clandestinidade no período do estado novo. 

Ainda neste contexto, recordemos as organizações ditas para-maçónicas, existentes desde o século XVIII e fomentadas e dirigidas por Maçons, e que atuaram sobre múltiplos aspetos da atividade social, seja na cultura, na beneficência, na política, nos direitos do homem ou nas relações internacionais. 

Ao longo da sua vetusta história a Maçonaria em Portugal criou, dinamizou e deixou extinguir mais de 400 organizações para-maçónicas, das quais se enaltecem a Academia das Ciências, as Escolas Livres, a Voz do Operário os Jardins-Escolas João de Deus e das quais apenas perduram a Escola Oficina Nº 1 e o Internato de São João, ainda que de forma com tanto de modesto como de desvirtuada no seu objeto.

Retornando ao século XXI, e agora que está abolida a escravatura, reconstruída a metrópole, conquistada a liberdade, instaurada a república, escrita a constituição, reivindicada a igualdade, pelo menos na sua forma mais basilar, garantidos cuidados de saúde para todos, instituída a luta pela igualdade social, que contendas nos restam? Estaremos condenados ao esquecimento ou pior, a sermos apenas recordados nas parangonas das polémicas dos jornais? 

Por certo questionar-se-ão como se pode sequer propor a hipótese da extinção de uma instituição com um percurso de mais de dois séculos como o Grande Oriente Lusitano? Vetada à cessação por uma qualquer lei arbitrária de um qualquer governo? Fruto de desentendimentos internos que promovem a sua dissolução? Alvo de perseguições de uma Igreja velada por antigos ofícios? Saqueada por populares revoltosos?

Talvez num passado longínquo, mas não hoje; não, hoje a Maçonaria sucumbe por mérito de uma única palavra, utilidade; a Maçonaria falece porque deixa de ter um papel relevante para a sociedade, porque deixa de ter préstimo para os homens.

Prova disso será talvez o continuado despovoamento das fileiras do Grande Oriente Lusitano, seja sob o pretexto de cisões realizadas sob duvidosos subterfúgios, seja pelo abandono de Irmãos desalentados, seja pela pouca adesão de novos Irmãos.

Seguramente que todos os Ir que hoje coabitam comigo neste templo têm no seu íntimo a honra e o privilégio que é ser Maçon, uma qualidade que não está ao alcance de todos. Mas se todo o homem livre e de bons costumes pode almejar juntar-se à nossa Ordem, seja por sua iniciativa ou por convite, porque não temos à nossa ombreira essa turba de homens de moral irrepreensível, que por certo os haverá?

É desses mesmos homens, aqueles que mais teriam para oferecer à sociedade, que é recorrente ouvir o discurso da falta de disponibilidade, da vergonha de represálias ou até mesmo da dificuldade em compreender a nossa utilidade na sociedade moderna.

E se dissertamos sobre o futuro, porque não são os mais jovens mais diligentes na sua aproximação à Maçonaria, da mesma forma que se entrincheiram nos meandros da política e de outras organizações apartidárias?

Não será este um claro prenuncio que algo deveria mudar?

Há um vocábulo que ouço recorrentemente no seio do Grande Oriente Lusitano e que me atemoriza tanto quanto decepciona; recrutamento. A Nossa Ordem não tem, não deve e não pode caminhar sobre a égide de crescer através da angariação de membros, como se de uma vulgar coletividade se tratasse. A Maçonaria é tudo menos vulgar; e sim, tem de crescer, não só em número como também, e perdoem-me a frontalidade, nas qualidades morais desses novos Irmão. A Maçonaria tem de florescer cativando, conquistado, fascinando, envolvendo, empolgando, e isso não se realiza com discrição, mas pelo contrário com presença, visibilidade, participação e intervenção social.

Se é verdade que somos por excelência uma organização discreta e nos reservamos o conhecimento de certas práticas e saberes, é também verdade que isto não pode ser sinónimo de displicência; não podemos ficar à margem da sociedade como se dela não fizéssemos parte, não podemos olhar o mundo com tanto desprendimento; não é esse o propósito da Maçonaria; não é esse o propósito de ser Maçon.

habitamos numa era despojada de valores ético-morais, dominada por um capitalismo infrene, sem alma nem regras, que enredou o homem em novas e mais sofisticadas servidões, privando-o da liberdade e da igualdade; urge pois a nossa intervenção na sociedade.

Nós, Maçons, somos muito mais do que carregadores de paramentos, anéis, luvas e símbolos; somos os filhos da viúva, os eternos aprendizes; temos e mantemos viva nas nossas mentes, esta condição, este estado que é perene e que constitui o nosso próprio ser, como ser fraterno.

Como podemos então impugnar tal desígnio?

Em primo e lugar de destaque estará sempre o Grande Oriente Lusitano, pois enquanto instituição jamais se poderá desresponsabilizar do seu propósito e do seu dever para com a humanidade, independentemente do subterfúgio, inclusive o da circunspeção. Repliquemos algumas das sugestões alvitradas por esta mesma Loja no XV Congresso do GOL:

- Reunir as obediências maçónicas seja por meio de tratados de amizade, de seminários, de conferências ou de simples encontros, para debater os temas prementes da sociedade e gerar as diretrizes para a ação no mundo profano.

- Exortar as lojas ao debate sobre as já referidas problemáticas da sociedade, procurando que as conclusões provenientes dessas demandas se traduzam em ações concretas.

- Fomentar uma imagem de maior transparência e abertura para o exterior, incentivando também a sociedade civil a participar ativamente em algumas das iniciativas de discussão organizadas.

- Reabilitar o nosso património, tornando-o útil à sociedade, seja através de novas instituições para-maçónicas que atuem na área do apoio social ou da educação, seja através da sua alocação para fins de beneficência.

- Revitalizar a Escola Oficina Nº1, reatribuindo-lhe o seu verdadeiro papel na educação em Portugal, assim como o recuperar do verdadeiro sentido e rumo do Internato de São João no apoio aos órfãos, crianças e jovens desamparados.

- Não mais expectar pela exposição desregrada na imprensa dos assuntos internos o Grande Oriente Lusitano mas, ao invés, criar uma figura que articule e potencie as comunicações com o mundo profano, em continuidade uma política de maior abertura ao exterior e de ensejo de uma contribuição palpável para o progresso da sociedade em particular e da humanidade em geral.

Ainda antes de voltar ao papel do Maçon enquanto indivíduo, cabe enfatizar o dever das lojas, cujo ofício é não só congregador e organizativo, mas também orientativo. A loja é tida como a união dos Maçons, e é precisamente quando estes se reúnem num qualquer templo para empreender os trabalhos maçónicos, que esta resplandece e enaltece em valor e significado.

A Maçonaria, quando bem compreendida, educa, instrói e orienta, contribuindo para elevar o nível moral e intelectual da sociedade, na prossecução dos trabalhos meditados dentro do templo maçónico. Este trabalho intelectual das oficinas deverá pôr em atividade os irmãos que tenham vocação para as letras, ciências, artes, etc., estimulando-os não só ao aprofundar desse saber como também à sua difusão. 

E nesse sentido, para que os que não sabem possam aprender, e os que sabem possam ensinar, que todos os irmãos devem participar nos trabalhos da sua loja, sem falhas, sem mácula, sem desânimo; a loja não pode sentir-se abandonada pelos seus obreiros, sob pena de se tornar insignificante e inútil.

Mas o estar em loja é algo mais do que cumprir os desígnios do ritual da sessão; é no interior desta célula orgânica, deste cérebro pensante, que as mentes se devem agitar, que a inquietude deve reinar, que a vivacidade deve prevalecer; o Maçon deve honrar-se a si e a todos os irmãos que já passaram pela sua loja nunca se remetendo ao silêncio, à inépcia, à prostração, à resignação, à sujeição. 

Por vezes penso se o benefício de já não estarmos sujeitos aos perigos do passado não se arrisca a tornar-se no pior dos desígnios, conduzindo muitos irmãos a um conformismo desolador. A tarefa maçónica contemporânea requer por isso um trabalho mais metódico e constante do que em épocas ancestrais bem mais conturbadas; é mais fácil treinar combatentes para derrubar um qualquer regime absolutista do que instruir obreiros para as conquistas por meio do discurso do conhecimento.

E eis pois que regressamos ao elo mais importante desta cadeia, o Maçon. E sobre o próprio, pronunciamos em Maçonaria que alguém que foi iniciado, nunca perde a sua qualidade de Maçon; ainda que seja forçado a concordar com o estrito das palavras, questiono a sua latitude… pode o crente ser católico se não praticar, tão só e apenas por ser batizado? Pode o mestre manter seu título, sem nunca erguer nenhuma obra, somente por ter escritos num papiro? E o Maçon, pode ser Maçon se não praticar as virtudes que tanto enaltece, apenas por ter sido iniciado?

Só desta forma, afirmando um ideal moral de solidariedade e justiça, podemos ambicionar em algum momento poder mudar o homem e a sociedade; e sim, acredito que apenas um homem com um simples gesto pode mudar o mundo… e se ao invés de apenas um só indivíduo, formos numerosos Maçons, indubitavelmente que, sob o cunho das virtudes que nos ligam, sob a égide da sabedoria, da força e da beleza que comungamos, como elos dessa cadeia que nos une pelo amor fraterno, que seremos verdadeiramente capazes de transfigurar a humanidade.

Vide comigo as palavras de Álvaro de Campos, em dois trechos do seu poema Tabacaria, e talvez apreendendo o caminho que não devemos trilhar, saibamos que rumo seguir, que Maçon ambicionar:

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

Façamos pois propósitos, tracemos objetivos, esquadrinhemos intenções, sejamos ambiciosos e, acima de tudo, sejamos constantemente irrequietos, obstinadamente irreverentes, incansavelmente inconsoláveis… apenas porque, só assim se muda o Mundo.


Autor: Álvaro de Campos

quarta-feira, 29 de maio de 2024

O Paradoxo da Tolerância em Democracia: que limites

Como nota introdutória, quero referir que considero o tema em análise deveras frutífero, e até complexo, o que talvez explique a razão pela qual tenha sido muito explorado aqui nas nossas sessões. E, por conseguinte, cabiam certamente em cada um dos segmentos desta pequena reflexão várias pranchas autónomas. Porém, para que tudo caiba numa só, passarei, dentro do possível, a sumariar.

Ora vejamos: O conceito de Democracia teve a sua origem na palavra grega demokratia, composta por demo - “povo” - e kratos - que se traduz como “poder” ou “governo”. Neste complexo sistema político, o povo fica adstrito à participação política que no fundo é o que motiva e justifica o próprio poder político. Democracia, assim, representa e pretende alcançar uma “unidade plural” - o que por si só, é claramente paradoxal. Representa uma unidade, comum e uniforme, que resulta da pluralidade de consciências e opiniões. São a diferença e a individualidade a produzir a semelhança e o comum. 

O conceito de Democracia, como sistema político, surgiu por volta do Séc. V a.C., na cidade de Atenas. Representava uma alternativa à tirania, conceito definido por Platão e Sócrates como sendo a marca da ilegalidade, ou seja, a violação das leis e regras instituídas que conduziam à quebra de legitimidade para governar.

Não obstante, Platão, na sua obra República, é muito crítico do modelo de democracia ateniense da época, por não ser um regime democrático na sua plenitude de direitos e deveres, uma vez que não era plena, pois era vedado às mulheres, aos metecos (os estrangeiros) e ainda aos escravos o direito a eleger e a ser eleito. Platão também já antevia a democracia como permeável à corrupção, tal como a vemos na democracia moderna.

Platão considerava este modelo “o governo do povo”, mas usava a palavra “povo” em sentido pejorativo, pois para ele o povo era facilmente influenciado por características irrelevantes, como a aparência dos candidatos, e preconizava que só os filósofos, por terem uma compreensão mais profunda da realidade do que as pessoas comuns, estavam preparados para governar.

Platão dizia que a democracia era uma forma corrupta de governo. O idealismo platónico era muito acentuado no tocante ao modelo político de democracia que defendia e que se baseava na ideia de que só os filósofos, porque falam a verdade e amam a sabedoria, estavam preparados para governar.

A ideologia platónica convoca o perigo da democracia ateniense pelo facto de esta admitir opiniões e paixões desprovidas de saber filosófico e de relativizar a verdade e vencer pelo argumento e pelas paixões, tal como os que se limitam a dar opiniões. A estes Platão chamava Sufistas, e aos que querem convencer pelo argumento e que não se preocupam com a verdade ou com o saber e aos que opinam para convencer as outras pessoas e que amam apenas a opinião, não possuindo o conhecimento e o saber dos filósofos, para Platão são os Filodóxos.

Não obstante os mais de dois mil anos que que nos separam, e as idiossincrasias respeitantes à capacidade de eleger e ser eleito muito restrita, Platão tinha uma visão muito crítica e muito próxima do modelo de democracia moderna, pois já antevia os perigos da corrupção e da disseminação através de fake news, tal como hoje somos confrontados no nosso quotidiano.

Aqui chegados urge perguntar. Apesar dos vícios apontados por Platão relativamente ao modelo de democracia ateniense e que estão patentes cada vez mais na nossa Democracia Moderna, haverá um outro melhor e que mais afirme direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.? Infelizmente, não existe outro melhor, como Churchill muito bem sintetizou numa só frase. Ora toda a filosofia pós-platónica liga a democracia, no desenvolvimento do seu conceito, à tolerância.

Convém, no entanto, que comecemos por definir o termo “tolerância”, que deriva do latim tolerate, que significa “suportar” ou “aceitar”, e cuja evolução recriou um conceito diverso, complexo e, por vezes, contraditório.

Tolerância é o ato de agir com condescendência e aceitação perante algo que não se quer, algo que não se compreende ou algo que não se pode impedir, mas que, ainda assim, estamos dispostos a aceitar.

A falta de tolerância leva às guerras. No entanto, e ao mesmo tempo, não devemos - nem podemos – tolerar as guerras. A falta de tolerância leva à discórdia, e ainda assim, é da discussão civilizada que nasce o consenso e o entendimento. Devemos defender tolerância a mais ou tolerância a menos? No fim, de que vale realmente a tolerância, se esta constitui um paradoxo em que parece ser a semente do entendimento e simultaneamente do próprio conflito?

Os limites da tolerância parecem estar encerrados na própria tolerância. No fundo, é como se alguém nos pedisse para aceitarmos de forma cega e superficial a sua opinião e ainda assim, sabendo que não o devemos fazer, aceitássemos fazê-lo. É uma imposição intelectual ingrata e desconfortável, porque sabemos quem somos, ou, pelo menos, o que queremos, e, no entanto, existe aquele momento em que temos de abrir mão das nossas crenças e ideias, para tolerar umas novas, por vezes completamente alheias e opostas às antigas. Não se trata de integrar, mas, uma vez mais, tolerar. E isto, veja-se, por nossa própria escolha livre.

Não estamos a discutir compaixão, nem tampouco entendimento ou reconsideração. Estamos a falar de aceitar pelo mero facto de aceitar. Por exemplo: sabemos que a Liberdade - tema que nos é tão caro - é um valor que deve ser respeitado ao mais alto e íntimo nível, mas ainda assim sabemos que não é um valor absoluto, e temos consciência dos limites em que a mesma se contém: “a minha liberdade termina onde a liberdade do outro começa”. Ora a tolerância também não pode ir muito mais além. Não é aceitável algo como: “eu tolero o que tomas como absoluto, apesar de não concordar, aceitar ou acreditar nisso”. Aqui, a Tolerância e o acto de tolerar começa a parecer extremista, forçado e desnecessário.

Tolerância começa a parecer uma imposição idealista sem uma vontade de verdadeiro conhecimento e compreensão. Tal conceito - ou ideal - não pode manchar os nossos objetivos e visões individuais e para a própria humanidade. Sabemos, todos nós, onde estamos e para onde queremos e ambicionamos ir. A tolerância tem de ser contida - talvez corrigida – e quando ultrapassar aqueles limites tem de ser rejeitada pura e simplesmente. A tolerância é assim um pilar fundamental da capacidade de uma sociedade global para coexistir harmoniosamente, respeitando as diversas crenças e promovendo a compreensão mútua: esta afirmação provém da Declaração de Princípios sobre a tolerância aprovada pela UNESCO EM 1995, e é a forma correcta de definir o correcto dever de tolerância.

Portanto a tolerância é como a liberdade, que não é um valor absoluto, mas relativo, isto é, com limites (eu não posso tolerar aquilo que viola os meus valores mais perenes), e é útil no sentido em que eu, aceitando a priori um ponto de vista alheio, posso daí partir para a sua refutação.

Isto tem toda a aplicação no trabalho maçónico. Não adianta contrariar logo o meu “irmão” porque me expôs uma conclusão para mim inaceitável. Tenho, com toda a tolerância, de ouvir o caminho que o levou a essa conclusão, para refutar o preciso ponto onde divergimos.

Tal método é essencial para o trabalho em Loja, e este conceito de tolerância é seguramente aquele a que se referem todos os catecismos maçónicos, quando – frequentemente – usam o termo. A discussão em Loja é profícua até ao ponto onde os Irmãos concordam… em discordar. Entendo que em Loja não é admissível o caminho: “- Não discuto contigo porque não estás de acordo com o que eu digo ou penso, logo não és igual a mim.” A diversidade e a complementaridade são a riqueza de uma Loja maçónica, que não pode ser escamoteada.

E isto é tanto a riqueza de nós, maçons, quanto é certo que, se este fosse o caminho do fórum político-social profano, o método de trabalho de quem quer alcançar o poder (económico, político, social), o conceito de democracia andava mais próximo, e não estava sujeito às críticas, de Platão. Mas nesse caso - lá está - estávamos no mundo ideal que ele preconizava: só os que falam a verdade e amam a sabedoria devem governar.

Não vos trouxe estas reflexões para resolver o paradoxo, porque não sei fazê-lo. Trata-se, apenas, de o apresentar enquanto o nó górdio das sociedades dos nossos dias, para suscitar uma reflexão.

Autor: Bocage

segunda-feira, 13 de maio de 2024

A Cadeia de União

Regressado de tempos difíceis e renovado em sentimentos e emoções neste retorno tão desejado, trago a este templo uma breve reflexão pessoal sobre a história, significados e importância da Cadeia de União. 

Esta organização circular tão carregada de simbolismo, tanto evidencia simplicidade e inocência como se revela como a mais complexa e abrangente conexão universal, numa prática que suscita elevados sentimentos de fraternidade e forte ligação.

A “Cadeia de União” representa, na sua singela simplicidade, uma figura complexa, não só em termos de organização da sua configuração, como também no que diz respeito ao seu sentido simbólico. Para além do rito da “Cadeia de União” corresponder à operacionalização humana do conceito de entrelaçar, é possível, também, a partir dela intuir sobre a ideia de cadeia, numa percepção de fortaleza, de conjugação perfeita de pés em esquadro, troncos e mãos, numa dinâmica comunicacional que, em muito, ultrapassa o conceito e o sentido de União. É significativamente mais profunda que a comunicação entre irmãos, seja por meio de oração, seja pela transmissão da palavra semestral.

Mas, a Cadeia, que é de facto de União, representa, na unicidade da sua forma e importância da sua mensagem, uma ideia de fraternidade, de coesão, de ligação e conexão harmoniosa, que se evidencia em tudo o que é físico e espiritual, numa coreografia da tradição maçónica.

A primeira referência à Cadeia de União remonta ao ano de 1696 e é descrita nos manuscritos dos arquivos de Edimburgo, como uma estrutura circular, organizada, que se recria, como hoje ocorre, no final dos trabalhos. Digamos que, com o passar do tempo, a cadeia de união ampliou sua presença e, a partir do século XIX, tornou-se num ritual frequentemente realizado no âmbito do encontro maçónico. 

A Cadeia de União constitui-se um grande momento de intimidade cúmplice e de proximidade assumida. 

É um momento em que todos os irmãos dão as mãos, formando um círculo e olhando para o centro da loja. Tudo é simbolicamente importante nesse momento união: a maneira de dar as mãos, a formação do círculo, o toque dos pés, as palavras ditas pelo Venerável Mestre.  

Alguns autores, (como Irène Mainguy) referem-se, até, a um fluxo de energia circulando por todos os maçons ligados na cadeia, num vínculo que une irmãos, muito para além do próprio tempo e espaço.

Pela Cadeia de União, corporiza-se aquilo que é a unidade da corrente através da multiplicidade dos seus elos. Mas outras conotações podem ser apontadas na representação da Cadeia. 

Ao se organizarem em círculo, os maçons definem, claramente, a sua cadeia de união como algo que representa o grande elo, a grandeza, a eficiência e o poder do sagrado. A Cadeia torna-nos elos de Força, Beleza, Sabedoria, Partilha e União, que não só liga os Irmãos entre si, como liga os Homens ao Grande Construtor do Universo.

Na verdade, a Cadeia de União pode ser considerada como uma expressão superior do Amor Fraterno, baseado no amor tremendo, invencível, avassalador e puro de Deus. As mãos nuas dos Irmãos, ligadas naquele momento, falam da Honestidade dos corações e, a sua união representada pela comunhão que se interpreta pela sua posição, invoca os valores da Fraternidade. A Cadeia de União é exponencialmente mais expressiva e simbólica do que toda a mímica de entrelaçar os braços, do aperto de mãos e do toque dos pés em esquadro.

Através da Cadeia de União, o Maçon conecta-se com os seus Irmãos! É uma prática de partilha de sentimentos e pensamentos, que ocorre, concretamente, em presença de todos, mas que alcança todos os que, por uma razão inopinada ou fragilidade momentânea, possam estar ausentes do templo. 

A representação formal da Cadeia de União remete-nos, igualmente, para os deveres, princípios e virtudes próprios do “Ser Pessoa” e do “Ser Maçon”. 

Todos os Irmãos, unidos na expressão coreográfica da ligação existente entre si, alinham-se defendendo e fazendo cumprir um ideal de atitude, comportamento e orientação que nos assegura a capacidade de:

• Ser bondoso, amigo e cordial para com todos.

• Ser empático e disponível para todo o Irmão que precise de ajuda. 

• Acolher, apoiar e defender os Irmãos nas suas falhas ou fragilidades, revelando capacidade superior para compreender os factos e os contextos individuais.

• Ser próximo, gentil e cuidadoso em conteúdo e forma, em situações de correção, sugestão ou orientação para a melhoria ou, até mesmo, qualquer recomendação sobre alteração de comportamentos.

• Assegurar-se de uma atitude permanente e proativa de bondade para com todos outros, preocupando-se em manter uma postura bondosa, amistosa, coerente e justa em todas as situações.

No fundo, a Cadeia de União, significa e valida o quão inquebrável é a ligação entre os Irmãos, unidos pelos laços da Fraternidade.

Sem aquele momento de união universal, ninguém abandona o local. A Cadeia de União permite uma despedida em harmonia, uma separação entre Irmãos, na certeza de que todos estão felizes e realizados, que todos se sentem e são respeitados como seres únicos e individuais, mas também imensamente pertença de um conjunto uno e inquebrável, como é a ligação e a União Fraterna, de harmonia e paz interior que reina entre os Irmãos. Nesta perspectiva, podemos até afirmar, que a Cadeia de União formada dentro do Templo e simbolicamente associada a uma ideia de União Fraterna é, realmente e em si própria, a representação da própria Fraternidade.      

Conceição (2002) refere-nos de forma categórica (e cito) que “Individualmente somos fracos, isolados e falíveis, contudo, quando o Venerável, antes do encerramento dos trabalhos, evoca a união de todos os Maçons (…) há um sopro mágico que se introduz no Templo”. 

De facto, a Cadeia de União é o corolário obrigatório das sessões de trabalho! Momento alto de simbolismo e expressão mítica. Há uma agregação das forças psíquicas presentes, focadas no mesmo objetivo e há, assumidamente, uma energia que esta cadeia pode armazenar que passa ao longo da cadeia por todos os seus integrantes.

A Cadeia de União é, também, uma cadeia de defesa!!! Juntos somos mais fortes! E, mantendo-nos juntos, conseguiremos ser mais capazes, competentes e impenetráveis face às influências nefastas do exterior. Por outro lado, a conexão que se manifesta naquele momento, dá significado às palavras que possam ser proferidas, à oração que se murmure, à referência de compaixão que se anote e, ainda, à invocação proferida pelo Venerável, relativa a eventuais preocupações e aspirações gerais e particulares. 

Nenhum Maçom pode (ou deve) integrar a Cadeia de União se carregar em si, o peso de sentimentos negativos, se trouxer o coração carregado de rancor, inveja, raiva, ira, egoísmo ou qualquer outro sentimento maléfico. Da Fraternidade e União, resultam espíritos conectados! E também uma energia benfeitora, humana e criativa, sempre construtora do Bem

Autor: Noah