Por instantes, duas vezes em cada doze meses, o Sol alcança a sua maior declinação elíptica – e parece suspender-se em luz pura. Nesses dois dias mais longos do ano se marca o início dos ciclos maiores da Mãe-Natureza, celebrados desde que o Homem pôde conhecer e medir o seu lugar no Universo.
Desde a mais remota Antiguidade assinalamos, sob a forma de alegorias míticas e festas telúricas, a abertura gloriosa das Portas Solsticiais. E a própria etimologia latina do SOLSTITIUM nos remete para esse breve momento em que o Astro se sustém, grande e jorrando luz, franqueando os seus portais a quem ousa olhá-lo de frente.
Uma das faces do dualismo primordial do preto e do branco, expresso também nas duas faces do deus Janus, o Grande Arquitecto bifásico, está perfeitamente figurada na festa dos Fogos de S. João de Verão, o Solstício de Câncer, personificado no Baptista, e que assinala a travessia da Porta dos Homens, a abundância e a plenitude do que é perfeito.
O mesmo Sol que ilumina o Ser humano, neste momento de transição das trevas para a claridade, é o mesmo que faz germinar na terra os frutos. Por isso, nesta cerimónia, celebramos também o trigo, o vinho e o azeite – cada um na sua carga simbólica própria e todos como representação da capacidade geradora, desse início em que da semente brotam os primeiros rebentos que hão-de crescer, frutificar e multiplicar-se.
Todos os cultos iniciáticos comemoram a alegoria solsticial, desde a ancestralidade da consciência humana. Fizeram-no os antigos egípcios com Anúbis e os persas com os seus ritos estrelares. Fizeram-no os sacerdotes do Hinduísmo, com os pitri (os espíritos dos que partiram) e o deva yana (o caminho dos deuses). Fizeram-no os cultores dos ritos de Mitra e os gregos, nas suas celebrações de Hermes. Fizeram-no as comunidades druídicas das terras e ilhas do Mar do Norte. Fizeram-no os romanos na deusa Vesta, patrona do Fogo, condutora das almas na viagem do terreno para o celeste, isto é, do efémero para o perene. E fizeram-no os irmãos da Fraternidade dos Mathematikoi fundada por Pitágoras, e depois deles todas as escolas filosóficas e iniciáticas cujo labor se centra, como escreveu René Guénon, naquele momento em que “o passado já não é e o futuro ainda não é”.
Os construtores medievais, os maçons das Corporações de ofício, os Mestres do Craft, adoptaram as festas solsticiais, coincidentes com as celebrações de João Baptista (nos Fogos de Verão) e João Evangelista (nos Fogos de Inverno), e erigiram estes em patronos simbólicos das nossas Lojas de São João. Ainda hoje nós aqui o fazemos também.
No Ritual, quando o Venerável Mestre pergunta “De onde vens?”, a resposta que damos é “De uma Loja de São João”. Mas a qual dos dois Joões nos referimos? A ambos, na realidade, pois ambos constituem alegorias que remetem para a sublimação da construção. E há Irmãos que invocam ainda um terceiro João, S. João de Jerusalém, o Saint John Almoner, o João Esmoler e hospitaleiro tão ligado à reedificação dos Templos e ao socorro dos aflitos. Desse falaremos talvez noutra ocasião.
Algo distingue, contudo, o João Evangelista dos Fogos de Inverno do João Baptista dos Fogos de Verão. O primeiro é o que derrama a luz recebida, é o Verbo, aquele que espalha a ideia e acompanha os trabalhos de construção do Templo interior. O segundo é o João da Iniciação e da revelação, o neófito no preciso instante em que a venda lhe é retirada e ele pode contemplar o Sol iluminador. Também o Ritual o afirma, nesta passagem: “O Baptista, em pleno Fogo do Verão, clama pela expansão do Sol Vitorioso”.
A própria alegoria do baptismo explica, noutra figuração, o momento iniciático da luz. Aquele “que purifica pela água” é também aquele que abre os portais para “uma nova vida”, aqui reflectida na entrada num ciclo de “mais luz”. No baptismo encontramos ainda o princípio da transmissão espiritual através da Tradição. Isto é: ninguém se baptiza a si próprio, assim como ninguém é iniciado fora de uma cadeia tradicional, ininterrupta, que lhe dá valor e sentido – o que nos remete para os fundamentos iniciáticos da nossa Augusta Ordem e para a beleza da transmissão iniciática de Mestre a Discípulo.
Tal como estas celebrações solsticiais de Verão anunciam o dia claro e a luz brilhante, assim João Baptista é aquele que prepara e anuncia a era do Ser maior e o acompanha, pelo baptismo renovador, na travessia dos portais do entendimento. No Bhagavad Gitâ isto vem exposto com estas palavras: “Aqueles iluminados pela Luz do verdadeiro conhecimento recebido do Sol da Sabedoria, conhecem o Espírito Supremo e com Ele se unem; esses passam pela porta e abandonam as trevas”.
No Ritual, quando dizemos que “vimos de uma Loja de S. João” e o Venerável Mestre nos pergunta “Onde se encontra essa Loja?”, a nossa resposta é: “Em qualquer lugar em que o homem tome consciência de si próprio”.
Pois em cada um de nós nasce, com a iniciação, um solstício. O solstício está em nós.
Autor: A. Correia da Serra, n.s.
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