terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Bocage


Depois de uma das maiores alegrias da minha vida, que foi ter sido iniciado na Augusta, Benemérita e Venerável Loja Estrela D’Alva, foi com imenso prazer que tive a oportunidade de escolher, para nome simbólico, o daquele que é um dos homens que mais admiro.

São várias as razões pelas quais me identifico com Bocage. A primeira é o facto de ser um permanente injustiçado: um dos melhores, senão o melhor talento da literatura portuguesa é popularmente conhecido por uns chistes de gosto mais que duvidoso e de humor grosseiro. Tal facto dever-se-á, sem dúvida, ao repentismo dos seus versos e ao facto de se ter dedicado à poesia erótica e satírica às claras e sem rebuço, ao contrário do que sucedia com os outros autores da época. Mas é precisamente a sua coragem de assumir a sua liberdade de expressão e de criação naqueles tempos que eu mais admiro. Bocage foi um homem livre quando era perigoso ser um homem livre. 
Admirador de Camões, foi para o Oriente, onde esteve em Goa e Damão. Desertou desta última cidade, aparecendo em Macau. Seria ainda o desejo de imitar Camões e de visitar todos os lugares que este percorrera? Não se sabe. Cheio de saudades da Pátria, chega a Lisboa em Agosto de 1790, ao mesmo tempo que os ecos da Revolução Francesa de 1789. Homem livre e de bons costumes que era, imediatamente abraçou os ideais da Revolução, cantando contra o despotismo de Pina Manique, que apodou de “sanhudo”, “inexorável”, “monstro que em pranto, em sangue, a fúria ceva”. 

Enquanto esteve filiado na Arcádia Lusitana, para onde entrou em 1791, não sofreu especiais perseguições. Mas em 1793 sai em ruptura com os seus colegas, com quem troca epigramas violentíssimos (Luís Correia Amaral França, o Abade de Almoster, Joaquim Franco de Araújo Barbosa, Caldas Barbosa e o seu ódio de estimação, o Padre José Agostinho de Macedo) – Vós, Franças, Semedos, Quintanilhas, Macedos e outras pestes condenadas… Coincidência ou não, começa nesta altura a ser perseguido pelo regime despótico. Pouco acautelado na manifestação das suas crenças políticas e religiosas, possuindo sentimentos liberais, acabam por prendê-lo no Limoeiro em 1797, após a sua denúncia como autor do poema em modelo clássico “Pavorosa Ilusão da Eternidade”, o qual, por ironia, talvez seja o melhor texto escrito em Português no Séc. XVIII. 
Sofreu tratos inumanos na prisão civil até que, por intercessão de alguns amigos, e posto que a principal acusação ao poema era este ser “ímpio”, o processo passa das justiças civis para a Inquisição, onde é acelerado. Deste modo, em Fevereiro de 1798 passou ao mosteiro de São Bento da Saúde, de Lisboa, e daí, em Março, ao hospício de Nossa Senhora das Necessidades, dos clérigos de São Filipe Néri. Repare-se: um hospício. Ser livre-pensador era, nestes tempos, uma doença mental! 
Compreender-se-á, neste momento, a segunda das razões da minha identificação com Bocage: a sua luta pela liberdade de ideias e de expressão das mesmas, com sacrifício da sua liberdade e fortuna é muitíssimo inspiradora. 
Como fosse, os frades não lhe acharam desvio mental de monta, e em poucos meses recuperou a liberdade, embora nunca mais terminassem as perseguições religiosas e políticas. Em 23 de Novembro de 1802 foi denunciado por uma beata, Maria Teodora Severiana Lobo Ferreira, ao Santo Ofício como pedreiro livre, mas o processo foi arquivado. 

Esta a terceira razão para ter escolhido o nome simbólico de Bocage. Bocage foi um cultor do verso clássico e tinha um conhecimento extraordinário das mitologias  grega e romana, que levaram o escritor Reis Brasil, grande estudioso da sua obra, a exclamar: “ – O Homem é infernal. É capaz de escrever um poema acerca de um deus que deu um pontapé no outro. E nós depois é que temos de estudar afincadamente a mitologia até encontrarmos tal excêntrico episódio”.
Está tudo dito. Para não deixar, porém, a história a meio, faltará dizer que após a morte do pai, Bocage veio para Lisboa com a sua irmã Maria Francisca, residir para a casa da Travessa André Valente, que todos conhecem. 
Os últimos cinco anos de vida viveu-os praticamente a expensas do seu grande amigo e admirador, José Pedro da Silva, ou José Pedro das Luminárias, dono do café das Parras, no Rossio, que ainda se não chamava “Nicola”, razão pela qual se demonstra como as anedotas respeitantes a este café são apócrifas. No final da sua vida a sua miséria é tão grande que alguns dos seus inimigos, antigos árcades, se reconciliam com ele, assistindo-o nos últimos momentos. Um deles é o Padre José Agostinho de Macedo. O outro é Filinto Elísio, com quem a ruptura não foi muito grande. Teve oportunidade ainda de lhe dedicar um poema, cujo final constitui o título de um quadro hoje em exposição no Café Nicola: Fadou-se o grão Filinto, um vate, um nume. Zoilos tremei, posteridade és minha. 

Morre na miséria e é António Feliciano de Castilho que em 1865, no seu centenário, apresenta nas salas do Clube Fluminense do Rio de Janeiro uma proposta para uma subscrição pública para se lhe erigir um monumento. Mas como o próprio poeta dizia, o seu Fado era desafortunado. Uma violenta crise na Praça (Bolsa) do Rio de Janeiro provoca a perda de grande parte do dinheiro, salvando-se muito pouco. António Feliciano de Castilho, porém, continua a empenhar-se e, já em Portugal, consegue que a 22 de Novembro de 1861 que a Câmara Municipal de Setúbal coloque a primeira pedra no monumento que veio a ser inaugurado a 21 de Dezembro. Nenhuma outra homenagem veio a ser prestada a Bocage, o que não é de estranhar no período da monarquia e do estado Novo, mas que é bizarro no período da Primeira República, aliás todo ele eivado de bizarrias. Apenas depois do 25 de Abril se lhe veio a prestar homenagem relevante, tornando-o efígie para uma série das notas de cem escudos. 
Espero desta forma ter justificado as razões pelas quais escolhi o nome simbólico, que espero e desejo poder vir a honrar como merece. 

Autor: Bocage

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