terça-feira, 27 de novembro de 2007

Tolerância ?!...

A circunstância de o título acima estar acompanhado de um ponto de interrogação e de outro de exclamação, para além de elucidativas reticências, não significa qualquer artificialismo gráfico. Ao contrário, expressa o que me “vai na alma” – como costuma dizer-se – no momento em que traço esta prancha. Mais ainda: nem sequer pode pensar-se que o faço “a quente”, porque já se passaram bastantes dias sobre a data em que a notícia correu mundo. Refiro-me ao facto de as autoridades do Sudão – país cuja Lei Fundamental é o livro sagrado Corão – terem condenado à morte uma professora inglesa que autorizou uma criança de tenra idade a apodar de “Maomé” o ursinho de pelúcia que a acompanhava nas suas brincadeiras próprias da tenra idade.
Antes de entrar em mais considerandos, quero deixar bem clara, de forma inequívoca e insuspeita de quaisquer mal entendidos, que me coloco sempre numa posição equidistante face à querela religiosa que ensombra os nossos dias. Mas equidistância não significa indiferença, sobretudo quando estão em causa princípios e valores que jurei defender quando me foi concedida a Luz que ilumina a existência da Maçonaria e a vida dos Maçons.

Assim, quando foi conhecida a notícia, não desbobinei um chorrilho de impropérios contra os autores da condenação: optei por tentar colocar-me no lugar deles e perceber as razões que os conduziram a tal atitude.
Nesse sentido, perguntei-me se um cristão gostaria que alguém chamasse de “Jesus Cristo” a um urso de pelúcia, se um judeu acharia engraçado que se denominasse de “Jeová” um cãozito de brincar, se um budista escancararia um sorriso de orelha a orelha se soubesse que “Buda” era o nome colocado a um qualquer gatito de felpa. Sinceramente, acho que não. Mas sei, de ciência certa, que nenhum deles condenaria à morte o prevaricador.

Fui mais longe nesta análise. E pensei, de mim para comigo, que a tal inglesa estaria longe de ser tão evidentemente estúpida ou tão inutilmente suicida que deixasse passar em claro a afronta à divindade muçulmana, sabendo que isso a conduziria à morte. Fê-lo, portanto, com desconhecimento da gravidade que o acto assumia para as autoridades do país onde trabalhava. Prossegui, então, no meu raciocínio: é que o desconhecimento da lei não desculpa o prevaricador. Até aqui, os pratos pareciam equilibrar-se na balança dos prós e dos contras. O que os desequilibrou foi a desproporcionalidade do castigo. E todos nós sabemos que um dos princípios sagrados da justiça é a proporção que o castigo assume perante o crime, para que o conjunto da sociedade dele possa sentir-se ressarcida.

Confesso-me pouco versado em questões religiosas. Por isso, quando desconheço determinada matéria nesse domínio do conhecimento – o que ocorre com frequência – pergunto a quem sabe. Ora, neste caso específico fui compulsar o que as enciclopédias dizem sobre Maomé. E, neste domínio, são todas muito objectivas, muito politicamente correctas. Ainda bem que assim é, porque, ao contrário, não estariam a disseminar cultura e informação – também confesso que não percebo como é que pode haver cultura sem informação e informação sem cultura –, para entrarem nas fronteiras da manipulação.

Todavia, a Nova Enciclopédia Larousse escreve, a páginas 4.495, que Maomé – passo a citar – “instituiu o princípio da guerra santa (jihad), que obriga a combater todos os que não aderem ao Islão” – fim de citação. Continuei e, para fazer o exercício do contraditório, consultei todos os textos a que tive acesso – incluindo a vastíssima matéria que encontrei na internet – para tentar encontrar um desmentido sobre aquela afirmação. Não encontrei. Sou, por isso, e ao cabo de tantas buscas, levado a tecer duas conclusões. Primeiro: aqueles que apregoam o pacifismo da religião muçulmana fazem-no seguramente por boa-fé, mas por desconhecimento do que ela efectivamente envolve na sua essência mais profunda. Segundo: se não for assim, é porque os autores da Nova Enciclopédia Larousse são uma cáfila de imbecis manipuladores e ignorantes. Então, mais uma confissão: nenhuma das hipóteses apazigua o meu desconforto.
Como não há apaziguamento possível para o desconforto que sinto quando a ortodoxia do Vaticano, de forma autista, fria e inquisitorial, prega o sofrimento e a morte ao atirar para o vilipêndio de um pecado que deus algum pode ter tido até nas suas mais remotas cogitações a utilização de preservativos como forma de prevenir o terrível flagelo da sida.

Dir-se-á então, como é habitual e de forma inabalavelmente peremptória, que os deuses não têm culpa dos erros dos homens. Fraco consolo, este. Porque, pelos vistos, os homens existem de certeza. E matam. Mas mesmo que os deuses existam e não matem, afinal não conseguem fazer passar a sua mensagem. Será, provavelmente, um problema de comunicação…

Sou, por isso, incontornavelmente induzido a regressar – uma vez mais e sempre – aos princípios e aos valores da Ordem Maçónica Universal, designadamente àqueles que à tolerância dizem directa ou indirectamente respeito.

E aqui começa um conjunto interminável de interrogações, para as quais se poderá encontrar as mais diversas respostas, tamanhas são as variáveis deste entrecruzar de hipóteses. Passo a enunciar apenas algumas.


· Será que em nome da tolerância devemos tolerar práticas intolerantes que atentam contra a tolerância?
· Será que a tolerância tem limites?
· Se os tiver, em que circunstâncias é que eles terminam?
· É possível educar um intolerante no caminho da tolerância. Mas será possível educar-se centenas de milhões de intolerantes nesse caminho?
· Também é possível e desejável jamais esmorecer na senda da tolerância. Mas como fazer passar com eficácia essa mensagem? Não estaremos irremediavelmente remetidos para um diálogo de surdos?
· Quais são as alfaias com que a tolerância deve pregar a sua mensagem?
· Apenas o discurso? Não será como que pregar no deserto – aqui também no sentido literal do termo?
· Valerá a pena insistir nesta prática, cuja aridez gritante é evidenciada a cada passo pela sua ineficácia?
· Mas haverá alternativas a esta prática?
· As possíveis alternativas não serão, elas próprias, contrárias ao espírito da tolerância?

Este enunciado não mais teria fim. E prefiro não alimentar certezas quanto a estas questões. Até porque, se continuar com dúvidas, pelo menos não corro o risco de errar.
Por isso, continuarei impotentemente a assistir, pregando a tolerância, ao incremento de todas as intolerâncias – religiosas, políticas, desportivas, das quais as religiosas são seguramente as mais hediondas, porque em nome dos deuses têm sido cometidas algumas das mais repugnantes chacinas da história da humanidade.
Já agora, e para terminar, obrigado pela vossa tolerância!...

Autor: Álvaro

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