terça-feira, 16 de março de 2010

Voltaire - nome simbólico

Algures durante a minha adolescência confrontei-me um dia com a palavra DEMOCRACIA. Perguntando a meu Pai o que ela significava, citou-me de imediato a seguinte frase famosa, atribuída a Voltaire : “Posso não concordar com nenhuma das tuas palavras, mas defenderei até a morte o teu direito de as dizer." De então para cá, tenho pautado sempre o convívio com os meus Amigos e com o Mundo que me rodeia por estas palavras simples, mas com uma força enorme na construção do Mundo em que vivemos.

Fui mais longe, então, procurando desvendar algo mais sobre a Vida e Obra de Voltaire – enquanto Escritor, Pensador e Filósofo – até aos anos mais recentes em que descobri uma nova faceta do seu Pensamento: a sua condição de Maçom. Mas Voltaire, nascido François Marie Arouet foi ainda um dos principais construtores do moderno conceito de Democracia, base da sã convivência entre Povos e Nações, gerando os ideais nobres da Revolução Francesa, da Independência Americana e da Independência do Brasil. Foi também figura proeminente do Iluminismo emergente no século XVIII e defensor intransigente da liberdade Religiosa e … dos tão consagrados Direitos do Homem !!!
As linhas que se seguem têm uma evolução cronológica e sintética, salvaguardando contudo as diversas fases do Pensamento e da Obra de Voltaire. Não esqueci nestas linhas a sua ligação afectiva a Portugal, lembrada a propósito do Terramoto de Lisboa em 1755 e a sua condição de eterno Maçom, porém formalmente assumida muito próximo da sua morte.

Em 21/11/1694, nasceu em Paris no seio de uma família rica e bem relacionada na corte francesa, François Marie Arouet, aliás Voltaire. Órfão de mãe muito jovem, seu pai internou-o muito jovem num dos mais célebres colégios jesuítas de França, onde foi companheiro de futuros governantes e oposicionistas do regime anterior à Revolução Francesa. Aluno brilhante e precoce manifestou, desde então grande habilidade e agilidade de pensamento. O abade de Châteuneuf, seu padrinho influenciou de imediato a sua formação espiritual, apresentando-o também a Madame Ninon de Lanclos, cortesã rica e com larga fortuna, que lhe haveria de oferecer toda a sua biblioteca de milhares de livros. Por outro lado, Madame Ninon de Lanclos introduziu Voltaire na associação de Humanistas cépticos - a “Société du Temple”, constituída por homens livres e pensadores que se juntavam no “Templo” sob a presidência de Filipe de Vendôme, grande prior dos Cavaleiros de Malta em França, sucessora dos Templários após a sua dissolução. Decidido a enveredar pelas Letras, Voltaire abandonou aos 15 anos o colégio, desagradando por isso a seu pais que insistiu na vontade de o fazer mestre em Direito . Falhando por completo os estudos jurídicos, o pai envia-o para Haia como secretário do embaixador francês na Holanda, marquês de Châteuneuf, irmão do abade. A sua mente brilhante arde incessantemente em novas ideias, fazendo-o aproximar-se de novo de grupos de livres-pensadores que por todo o lado começam a nascer por Paris, nas vésperas da Revolução Francesa.
Aos 26 anos é preso pela primeira vez na Bastilha durante onze meses, adoptando então o pseudónimo VOLTAIRE e escreveu a sua primeira obra literária, a tragédia Édipo. A partir de então, as suas obras passam a revelar uma preocupação crescente com a Liberdade e a Tolerância Religiosa, agradando por isso a muitos franceses divididos por lutas e desavenças de cariz religioso. Um conflito com o Conde de Rohan, com quem se bate em duelo, por causa de uma dama disputada por ambos, obriga-o a nova detenção na Bastilha por duas semanas e ao exílio em Inglaterra, onde começa uma nova Vida e assimila novos conceitos de Democracia e Liberdade, determinantes no seu futuro.

Conhece o rei da Inglaterra e passa a conviver com intelectuais e cientistas como Newton e Locke. Escreve as suas Cartas Filosóficas. A sua obsessão passa a ser, então, a Liberdade de Pensamento e de Expressão, criticando asperamente o obscurantismo e a opressão que se vivia a França. Nesta altura da sua Vida, Voltaire reconhece “a dúvida como um direito humano natural em confronto com a crença”. Por outro lado e influenciado pelos ensinamentos ingleses, desafia os franceses a “Pensar por si próprios” e proclama a famosa frase “Posso não concordar com nenhuma das tuas palavras, mas defenderei até a morte o teu direito de as dizer."
Em 1729 regressa a França, publicando então múltiplos trabalhos - tragédia, historiografia, filosofia - preparados enquanto vivera em Inglaterra.

Uma vez mais é perseguido por criticar a política e as instituições francesas e a falta de tolerância do regime. Voltaire foge para a Lorena onde vai viver com a Marquesa de Châtelet em Cyrey-sur-Blaise. Durante dez anos a Marquesa de Châtelet impediu Voltaire de publicar os seus escritos ofensivos do Rei e da Monarquia francesa, facto que lhe permitiu viver tranquilamente e sem perseguições. Por outro lado, permitiu-lhe estabelecer contactos com intelectuais de toda a Europa, assim como com movimentos aderentes aos novos ventos da Revolução Francesa, que começavam a soprar. Nesta fase da sua Vida, Voltaire dedicou-se principalmente às questões da Ética, da Metafísica e da Física de Newton, mas também à História, à Filosofia, à Poesia e ao Teatro, escrevendo mais de vinte obras. Sobre a Ética como factor primordial nas relações entre os Homens, Voltaire afirma que “o homem é um ser livre responsável pelos seus próprios actos e com consciência capaz de os julgar”. Aos que o interrogam sobre a sua profissão responde apenas : “o meu ofício é dizer o que penso”.

E diz cada vez mais o que pensa, já não apenas em França, mas por toda a Europa, passando a corresponder-se com Reis, Chefes de Estado e Ministros e com grandes vultos das Artes, Letras e Ciências do Velho Continente, num total de mais de 8.000 cartas. Em 1746, é eleito membro da Academia Nacional Francesa que lhe reconhece, finalmente, o estatuto de grande Mestre das Letras e do Pensamento e onde priva com o Cardeal Richelieu e Montesquieu. Com a morte inesperada da Marquesa de Châtelet em 1751, vai de novo viver para Paris até que Frederico da Prússia o convence a ir viver para Berlim a expensas da Casa Imperial.
Os primeiros contactos com a Maçonaria Europeia iniciam-se nesta altura, salientando-se a correspondência mantida sobre esta Augusta Ordem com Frederico da Prússia e com o rei Gustavo da Suécia.
A sua presença em Berlim é de apenas três anos, já que entrando em litígio com o poder prussiano e criticando o seu autoritarismo, é expulso da Prússia sem que, por outro lado, possa regressar a França.

Aos sessenta anos Voltaire pede para viver no Cantão de Genebra na Suíça, situação que lhe foi recusada por não lhe ser permitido expressar as suas ideias e representar as suas peças e a edição das suas obras. Triste e desgostoso com a proibição Suíça, adquiriu uma propriedade em Ferney, do lado francês da fronteira, a muito poucos quilómetros de Genebra.
Nesta localidade do Sudeste da França, vai Voltaire viver os últimos vinte anos da sua existência, porventura os seus anos mais fecundos e gloriosos. Marcando esta etapa da sua Vida uma clara divisão entre o Homem de Letras e o Político, faz questão de referir que o poder político está em Paris, enquanto o poder Intelectual residia agora em Ferney. Nos anos que se seguiram, passaram por Ferney os maiores intelectuais, cientistas e políticos da época para com Voltaire dialogarem e aprenderem. Mas também perseguidos e espoliados foram ao seu encontro, construindo Voltaire habitações e a todos proporcionando condições de trabalho construindo-lhes pequenas fábricas, oficinas e outras actividades. De pequena vila Ferney transformou-se em poucos anos num centro de peregrinação e de cultura.

Às 9.20 horas da manhã de 1 de Novembro de 1755, Lisboa foi praticamente arrasada por um terramoto seguido de um maremoto com ondas de 20 metros. A Europa ficou consternada com a Catástrofe e Voltaire, em especial, escreveu um belo Poema sobre a mesma : “Poema sobre o Desastre De Lisboa”. Mas as relações de Voltaire com Portugal e com a cultura portuguesa não se resumem unicamente ao Terramoto de Lisboa de 1755, cujo grau de destruição surpreendeu toda a Europa. Voltaire que de resto lia com facilidade a língua portuguesa, refere-se na sua obra “Essai sur les Moeurs” às Descobertas, Navegações e Explorações Portuguesas de uma forma elogiosa, dizendo que Portugal “começou a merecer uma glória tão duradoira quanto o Universo, através das trocas comerciais entre as nações, que foi bem depressa fruto das suas descobertas” .
O esplendor universal de Portugal, que atribui às riquezas vindas do Brasil foi, contudo, breve devido, diz Voltaire na obra anteriormente citada, ao facto de “essas mesmas riquezas não terem sido equitativamente distribuídas”, e comenta, com profunda e contundente ironia: “neste país o rei é rico e o povo é pobre, concluindo, não sem alguma verdade, que foi para Inglaterra que os portugueses trabalharam na América”. Muitas outras referências são feitas por Voltaire a Portugal, quer no “Essai sur les Moeurs”, quer na sua muita correspondência. No Poema sobre o desastre de Lisboa ataca os argumentos contraditórios dos optimistas. A Polémica com Rousseau e o “Cândido” constituem o termo da sua evolução pelo que poderíamos chamar de pessimismo viril, porventura temperado pela ideia de que a civilização e o progresso asseguram a felicidade do homem. Os acontecimentos da Europa e, neste caso concreto, o terramoto de Lisboa constituem a sua grande fonte de argumentos contra, principalmente, as ideias de Leibniz sobre a Providência. A sua reacção não deduz uma justificação do mal, mas antes se opõe às explicações unilaterais do Mundo.

No Poema sobre o desastre de Lisboa examina e refuta o axioma “Tudo está bem”.
No Dia de Todos os Santos, homens, mulheres e crianças oravam nas inúmeras igrejas de Lisboa no momento em que se deu o terramoto que matou a maior parte deles. Os filósofos enganados procuravam, em paz, as causas da catástrofe, - e Voltaire comenta que os devotos fariam melhor se chorassem.
Tinha na perspicácia a sua melhor qualidade, que usou ao longo da vida para se tornar num conceituado filósofo, escritor e ensaísta. Tinha já mais de duas dezenas de obras publicadas quando em 1755 as suas mais profundas concepções filosóficas sofreram um abalo proporcional ao sismo que, então, atingiu Portugal.
Com a catástrofe portuguesa, Voltaire viu ruir todas as suas concepções do Mundo vigentes à época, pois considerava que tal fenómeno jamais poderia ter ocorrido se a Terra fosse, como até esse momento se acreditava cegamente, uma mera criação divina, regulada pelos princípios de ordem e harmonia.
Voltaire responde à desilusão com a mesma força com que esta se apoderara dele. Para isso usa “Cândido” (1759), uma comédia romântica que abre uma tensa controvérsia e qual Voltaire preferiu assinar com o pseudónimo “Monsieur le docteur Ralph” (Senhor Doutor Ralph). A Igreja Católica é o principal alvo da obra, através da qual o filósofo francês demonstra com humor que, após o terramoto que assolou Lisboa, só mesmo alguém muito ingénuo, muito cândido, poderia continuar a acreditar que vivia num mundo de bem, regido pela bondade e misericórdia de Deus.
Voltaire foi iniciado na Maçonaria no dia 7 de Fevereiro de 1778, numa das cerimônias mais brilhantes da história da maçonaria mundial, na Loja Les Neuf Soeurs de Paris. Aos 84 anos, Voltaire ingressou no Templo apoiado no braço de Benjamin Franklin, embaixador dos EUA na França. A sessão foi dirigida pelo Venerável Mestre Lalande na presença de 250 irmãos.
O Irmão Voltaire morreu três meses depois.
Não teve tempo de ficar dizendo em Loja, com o peito estufado de vaidade, quantos anos ele tinha de Maçonaria; mesmo se pudesse, ele não o faria, pois conhecia o significado do tempo e o valor da sabedoria.

Autor: Voltaire

terça-feira, 9 de março de 2010

John Steinbeck, a luz incorruptível

John Steinbeck nasce no ano de 1902, em Salinas (Califórnia). As origens da sua família perdem-se nas vagas de emigrantes europeus, corre nas suas veias sangue alemão e irlandês. A sua infância e adolescência são passadas em Salinas, localidade que, então, não devia ter mais que dois mil e quinhentos habitantes. O vale de Salinas não era mais que uma sucessão de pântanos cheios de juncos que secavam, no Verão, dando origens a depósitos brancos de alcali, tendo justificado, provavelmente, o nome de Salinas (palavra derivada de sal). Salinas constituía um enclave social e ecológico, localidade relativamente isolada à margem das grandes rodovias, mas passou a oferecer, com o aterro dos pântanos, novas oportunidades de desenvolvimento. A localidade herdou, apesar do desenvolvimento, a escuridão dos pântanos, diz o escritor, «um vento frio e uma monotonia desoladora» apenas quebrada pelas rivalidades entre famílias e os conflitos pela apropriação e uso da terra. A estrutura económica e social era dominada pelos proprietários de terras e os criadores de gado, que também se tinham tornado cultivadores de bens hortícolas e de outros produtos perecíveis. A luta pelo comércio e o escoamento de produtos anima, em parte, uma das obras-primas do escritor – A Leste do Paraíso (1952).
As memórias de infância e adolescência marcam John Steinbeck e tornam-no sensível, creio, para as desigualdades sociais e a importância dos condicionalismos económicos que viciam o carácter humano. Salinas, saliente-se, recebeu de armas em punho a chegada de novos emigrantes e a organização dos primeiros sindicatos. A localidade saberia, contudo, rasgar horizontes de futuro integrando-se, com os seus produtos e serviços, numa economia de dinâmica regional. «O aspecto do vale alterou-se por completo», confessa o escritor, «devem viver cerca de catorze mil» no sítio onde em tempos se erguia uma loja «no meio de um pântano», conclui.
Durante toda a sua vida, julgo, o escritor ficaria prisioneiro desta paisagem seca de pântanos vencidos, afirmando por sobre a sua desolação o valor inalienável da liberdade: liberdade tantas vezes contrariada nos exemplos que assistiu desde muito jovem… O sentido da propriedade violenta o valor da liberdade, eis uma das lições a extrair do seu primeiro sucesso literário, Tortilla Flat. Seguindo o ideal arturiano da justiça e da fraternidade entre todos os homens e povos, os novos cavaleiros da Távola Redonda, no seu conto Tortilla Flat, descendem há séculos de emigrantes irredutíveis ao carácter da América: são paisanos sem emprego regular e sem compromissos familiares, vagueiam pelas colinas e ruas pobres de Monterey (perto de Salinas). Mas estão à beira de descobrirem o sentido da liberdade! A dureza da vida tornou-os resilientes aos discursos sobre a moralidade burguesa e aos grandes valores apregoados pela classe política, mas reinventam a inter-ajuda solidária vivendo como irmãos, partilham o mesmo tecto e prestam assistência até a um dos assaltados, que se tornaria mais um companheiro das desventuras do grupo liderado por Danny. Danny, personagem central de Tortilla Flat, simboliza a tensão entre uma liberdade hedonista que se confunde com a indiferença face ao sofrimento alheio e a fraternidade que exige compromisso e aliança entre irmãos.
As expressões aqui empregues apelam a valores maçónicos, mas não são introduzidas de forma forçada. Em Salinas existia, na época, uma enorme densidade e diversidade de Lojas Maçónicas. Salinas e a maçonaria influenciaram o autor, a procura incessante de uma utopia universal. Uma utopia realista porque tangível, erguida com o valor da consciência e da condição humanas. «Nós éramos uma família maçónica», escreve Steinbeck, «meu pai era maçom e a minha mãe pertencia à Estrela do Oriente».
Por que me demorei a falar de Salinas? Porque tudo pode ser apreendido na sua matriz evolucionária, a tensão entre os valores e as práticas, e o testemunho de uma liberdade que só pode ser conquistada pelo compromisso e a abdicação na entrega ao outro. Releio os seus contos, para além das grandes obras mais conhecidas. Steinbeck é um escritor atento aos pequenos gestos, a tudo que exorta ou ameaça a dignidade humana. No seu conto porventura mais polémico (rejeitado pela crítica), The Moon is Down (traduzido como Noite sem Luar), a liberdade tem o elevado preço da colaboração entre uma população ocupada e o exército ocupante. O eleito local, de nome Orden, simboliza a resistência e a colaboração possíveis, mas também a força de uma união contra a tirania imposta: «Sou o símbolo duma ideia concebida por homens livres. É impossível prendê-la», responde Orden, impedido de sair do edifício onde ficou detido. Pouco depois será fuzilado. Como no conto A Pérola, onde a violência de classe, no caso, transtorna a família de Kino, vários contos de Steinbeck parecem transmitir uma acepção antropologicamente negativa sobre o género humano e as relações sociais, contaminadas por ânsias de poder. No entanto, há sempre um gesto fraterno que tudo redime, uma escassa margem de liberdade que pode fazer toda a diferença!

Por que escolhi John Steinbeck como meu nome simbólico? A vida do escritor é muito diferente da minha, e se me detive na sua infância e adolescência foi por considerar esses períodos marcantes da sua personalidade. A vida do escritor (como se retomasse agora o início desta prancha), pode ser resumida de forma muito mais sucinta: John Steinbeck nasceu em Salinas, Califórnia, filho de um Tesoureiro e de uma professora local, estudou em Salinas e na Universidade de Stanford, sem completar estudos superiores, tendo interrompido os estudos para regressar para a refinaria onde, então, trabalhava. Mudou-se para Nova Iorque (1925) e trabalhou num jornal local, voltou para Salinas no ano seguinte. Casou pela primeira vez em 1930 com uma filiada no Partido Comunista americano (o que lhe valeu uma investigação das autoridades sobre as suas simpatias políticas). Sua mãe morre em 1934 e seu pai em 1935, ano em que publica Tortilla Flat, seu primeiro êxito literário. Com Ratos e Homens (1936), a sua obra torna-se mais densa de preocupações éticas desenvolvendo narrativas sobre o preconceito e as desigualdades sociais. Em 1937 publica As Vinhas da Ira, livro que chegou a ser proibido em várias cidades da Califórnia. Recebeu o Prémio Nobel em 1962. Morre em 1968, ano em que publica A América e os Americanos, reabilitando a sua obra de não-ficção, artigos e memórias em que me baseio, em parte, para trabalhar sobre esta prancha.

Por que o meu nome simbólico é John Steinbeck? Porque partilho com o escritor três condições essenciais: a concepção sobre o género humano, o sentido da liberdade e a sensibilidade sócio-ecológica. Reparo que as personagens criadas por Steinbeck, mesmo enfrentando situações difíceis, não desesperam. Mantêm a lucidez dos seus actos, e a consciência da sua responsabilidade. Por muito opressores que sejam um regime político ou uma condição humana prevalece uma pequena, mas não desprezível, margem de autonomia individual que a cada um responsabiliza. Os nossos actos não podem ser desculpados pelas circunstâncias. Em The Moon is Down, Orden contacta com os resistentes através de mensagens enviadas por Anita, a cozinheira. Assim como nenhum cargo é mais importante que outro, nenhum acto é alienado da responsabilidade do seu executante. Neste conto, o exército ocupante acabará por se sentir sitiado pela população. O apelo da liberdade não pode ser suprimido. Não interessa o que fazem a um homem, interessa muito mais aquilo que ele faz daquilo que fizeram dele. A concepção sobre o género humano de Steinbeck reivindica, assim, o elemento que nos diferencia de um percurso histórico aleatório: a consciência humana, o apelo incessante da liberdade!
O sentido da liberdade só se cumpre na fraternidade, exigindo compromissos, dedicação e acto – se partilho também com o escritor a paixão pela palavra é porque também a palavra é acto, capacidade de testemunho e de apropriação simbólica da realidade, tornando-nos responsáveis. Mas é bom que a palavra seja mais urgente que o silêncio, e que os actos estejam comprometidos com a palavra. No Princípio era o Verbo… o fim depende daquilo que fizermos, pois a História é feita pelos homens, mesmo que os homens não saibam a História que fazem. Mas a raiz da liberdade é a consciência humana.
A sensibilidade sócio-ecológica também me aproxima do escritor. As Vinhas da Ira, e vários artigos escritos um pouco antes sobre as condições de trabalho e camponeses expropriados pelas hipotecas ou a erosão dos solos testemunham uma crise social e ecológica, que assolou a América logo a seguir à crise financeira e ao colapso dos mercados especulativos em finais dos anos 20 do século passado. Steinbeck sabia que uma estratificação ecológica é correspondida por uma estratificação social, pelas condições de vida e posições no território (Steinbeck concebe o território como um espaço topológico de relações de poder). Nos tempos presentes assistimos também, agora numa escala global, a uma sucessão de crises financeiras como danos colaterais de mercados especulativos e da corrupção política, da falta de regulação eficaz. A crise da globalização é uma crise da regulação.
Às crises dos mercados sobrepõem-se crises ecológicas, pelo percurso incerto das alterações climáticas. Steinbeck tinha esta sensibilidade, à dimensão da época que viveu, o sentido da terra e o prazer da natureza. Não de uma natureza entendida como um sistema mecânico e espontâneo separado das sociedades humanas (Steinbeck estranha uma natureza protegida pelo Estado e, na verdade, como relata em Viagens com o Charlie, só muito tarde visitou o Parque Natural de Yellowstone). A sensibilidade do escritor leva-o a querer compreender as mútuas dependências entre os sistemas sociais e os sistemas naturais: Steinbeck é um escritor que descreve as formas de uso e ocupação do solo, as rivalidades e os condicionalismos económicos e ambientais.

Por tudo o que disse, e também pelo fascínio da palavra (não de uma palavra que seja apenas mais ruído, e menos necessária que a reserva de silêncio que a anuncia, mas denúncia e factor de consciência humana), julgo justificar o meu nome simbólico pretendendo continuar a pertencer a esta irmandade fraterna e contribuir para a afirmação dos valores universais da maçonaria. Liberdade, Igualdade, Fraternidade representam o percurso ético, e épico, da humanidade: a tirania e todas as formas de violência e obscurantismo apenas podem medrar onde prevalecem a ignorância e a irresponsabilidade, o egoísmo dos mercados.
Está em jogo a sustentabilidade social e ambiental do planeta, e caminhamos na incerteza dos futuros. Por fim, se agirmos com a consciência dos nossos actos e o sentido da responsabilidade colectiva, convocando aqui expressões usadas por John Steinbeck (The Moon is Down), «talvez nos mostrem expressões carinhosas. Veremos amigos à nossa volta. Não nos afastaremos de ninguém cheios de pavor…».

No Princípio era o Verbo. No fim não o sabemos, mas o futuro começa em cada instante! Sejamos, pois, Irmãos!

Autor: John Steinbeck

terça-feira, 2 de março de 2010

Lírios

Tendo-se cumprido mais uma jornada maçónica, gostaria de vos falar de um elemento vegetal muito pouco referido em Maçonaria, mas a que alguns autores atribuem significado que não gostaria de deixar ficar em claro. Refiro-me aos lírios.
Para esses autores, a relação do lírio com a Maçonaria começa pelo facto de ele ter o significado de uma flor de marcado pendor espiritual, revelador de pureza -da mesma pureza que os Maçons colocam nos seus princípios e nas suas acções e que coloca o próprio Homem em êxtase, perante os mistérios com que está confrontado nesta ordem iniciática.
Assim, os lírios representam os iniciados e em alguns templos maçónicos são dispostos em três patamares, que simbolizam os três graus dos construtores do Templo. Para os mesmos autores, os lírios, dado o seu aspecto fálico, em conjugação com as romãs revelam a exuberância sexual de Salomão e em alguns Templos encimam conjuntamente as colunas J e B, alertando os Maçons para o dever de viver em harmonia.
Mas os lírios constituem, também por isso, a flor dos amores intensos, que, na sua ambiguidade, podem ficar irrealizados, reprimidos ou sublimados. Se forem sublimados, passarão então a ser a flor da glória -da mesma glória que apascenta a sede de conhecimento dos Maçons no seu caminho interminável rumo ao Conhecimento.
Os valores aqui evocados - espiritualidade, pureza, representação dos mistérios, os três graus, a nossa qualidade de construtores, a harmonia - motivos que dão origem aos trabalhos Maçonaria.

Autor: Álvaro

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Baden Powell

“Apenas quatro patrulhas, 20 rapazes e um homem genial mudaram o mundo. Bastaram uma ilha, algumas tendas e um método que perdurou até aos dias de hoje e que já influenciou a vida de cerca de 500 milhões de crianças e jovens.”

Robert Stephenson Smith Baden-Powell nasceu em Londres, na Inglaterra, em 22 de Fevereiro de 1857. Filho do reverendo H. G. Baden-Powell, professor em Oxford e de Henriqueta Smith, filha do almirante inglês Wiliam Smith, foi o 5º de 7 irmãos. Robert ficou órfão de pai aos três anos, ficando a sua mãe com sete filhos de menos de catorze anos de idade. Apesar das dificuldades que passaram, o amor mútuo entre mãe e filhos sempre os levou a vencê-las.
Em 1870 entrou para a escola da Cartuxa, em Londres, com uma bolsa de estudos e embora não fosse um aluno brilhante, sempre se distinguiu por ser um dos mais animados, desempenhando parte activa em todas as actividades desenvolvidas. A sua habilidade dramática era muito apreciada pelos seus colegas que constantemente o convidavam para organizar espectáculos que faziam rir toda a escola. Tinha também vocação para a música, e o dom que possuía para o desenho permitiu-lhe mais tarde ilustrar os seus próprios escritos.
Com 19 anos terminou os estudos na Cartuxa e imediatamente aceitou a oferta para ir para a Índia como Alferes de um regimento que formara a ala direita da cavalaria, na célebre carga da Brigada Ligeira, na Guerra da Crimeia. Com um desempenho militar excelente, já auferia o cargo de Capitão com 26 anos de idade.
Em 1887 encontrava-se na África a tomar parte nas campanhas contra os Zulus, e mais tarde contra as tribos dos guerreiros Ashantis e Matabeles. Os indígenas tinham-lhe tanto medo, que lhe deram o nome de «Impisa», o «Lobo que não dorme», por causa da sua audácia, da sua habilidade de explorador e da sua espantosa perícia em seguir pistas.

Decorria o ano de 1889 e Baden Powell era já Coronel. Era grande a efervescência na África do Sul. As relações entre os ingleses e o governo da República do Transval tinham chegado ao ponto de ruptura. Recebeu ordens de organizar dois batalhões de carabineiros montados e dirigir-se a Mafeking, cidade no coração do Sul de África. Veio a guerra e durante 217 dias defendeu Mafeking resistindo ao cerco contra forças inimigas muito superiores, tendo finalmente chegado reforços no dia 18 de Maio de 1900. Elevado agora ao posto de Major-General, achou-se convertido em herói aos olhos dos seus compatriotas e foi como herói de homens e de rapazes que em 1901 regressou da África do Sul à Inglaterra, para ser cumulado de honrarias e para descobrir, com grande espanto seu, que a sua popularidade pessoal se estendera ao seu livro "Aids to Scouting", destinado ao exército e que estava a ser usado como livro de texto nas escolas masculinas. Baden Powell viu nisto um chamamento especial. Compreendeu que tinha agora uma excelente ocasião para ajudar os rapazes da sua Pátria a converterem-se em jovens fortes. Se um livro sobre exploração destinado a homens havia atraído tanto os rapazes, quanto mais os atrairia um livro escrito para eles. Pôs mãos à obra, aproveitando as suas experiências na Índia e na África, entre os Zulus e outras tribos selvagens. Reuniu uma biblioteca especial de livros, que leu, a respeito da educação dos rapazes através dos tempos.
Lenta e cuidadosamente foi desenvolvendo a ideia do escutismo. Para ter a certeza de que daria resultado, no verão de 1907 levou consigo um grupo de vinte rapazes para a ilha de Brownsea, no Canal Inglês, para realizar o primeiro acampamento escutista de todos os tempos, tendo sido um êxito fenomenal.

Nos primeiros meses de 1908, publicou em seis prestações quinzenais, por ele ilustradas, o seu manual de instrução "Escutismo para Rapazes", sem sonhar que este livro ia desencadear um movimento que havia de afectar os rapazes do mundo inteiro. Mal "Escutismo para Rapazes" começara a aparecer nas livrarias e nos quiosques, começaram a surgir patrulhas e grupos escutistas, não apenas na Inglaterra, mas em muitos outros países. A obra cresceu cada vez mais e em 1910 tomara já tais proporções, que ele compreendeu que o escutismo ia ser a obra da sua vida. Teve a visão de reconhecer que poderia fazer mais em prol do seu país, educando as novas gerações para darem bons cidadãos do que instruindo alguns homens para serem bons soldados.
Por isso abandonou o exército, onde atingira o cargo de Tenente-General, e embarcou na sua segunda vida, como ele lhe chamava – vida de serviço para o mundo por meio do escutismo. A sua recompensa teve-a na expansão do escutismo e no amor e no respeito dos rapazes de todo o mundo.

Em 1912 empreendeu uma viagem à volta do mundo, para visitar os escuteiros de muitos países. Foi este o primeiro começo da fraternidade mundial escutista. A primeira Grande Guerra estalou e entravou a obra por algum tempo, contudo esta recomeçou no fim das hostilidades e em 1920 reuniram-se em Londres, vindos de todas as partes do mundo, muitos escuteiros para formarem a primeira reunião internacional escutista – o primeiro Jamboree mundial, tendo Portugal sido representado por 11 escoteiros da AEP. Na última noite desse Jamboree, em 6 de Agosto, foi proclamado Escuteiro Chefe Mundial, pela multidão de rapazes que o aclamavam. O primeiro Jamboree mundial, foi seguido de outros – em 1924 na Dinamarca, em 1929 na Inglaterra, sendo este o ano da 1ª visita de BP a Portugal, em 1933 na Hungria, em 1937 na Holanda entre muitos outros que têm vindo a realizar-se até aos nossos dias. Em 1958 realizou-se o 1º JOTA – Jamboree On The Air – encontro mundial de escuteiros via rádio-amador, e em 1998 realizou-se o 1º JOTI – Jamboree On The Internet.
O movimento escutista continuou a desenvolver-se e no dia em que fez 21 anos contava mais de dois milhões de membros em, praticamente, todos os países civilizados da Terra. Nessa ocasião BP recebeu do seu rei, Jorge V, a honra do baronato com o nome de Lord Baden-Powell of Gilwell.
Mas os Jamborees foram apenas parte do seu esforço para constituir a fraternidade mundial do escutismo. BP viajou muito em prol do escutismo, correspondia-se com os dirigentes escutistas de muitos países e continuava a escrever sobre assuntos escutistas, ilustrando os seus livros e artigos com os seus próprios desenhos.
Quando, finalmente, chegados aos 80 anos e as forças lhe começaram a faltar, voltou para a sua terra amada em companhia de sua esposa, Lady Baden-Powell, que fora colaboradora entusiástica de todos os seus trabalhos e que, além disso, era Chefe das Guias – obra também criada por Baden-Powell. Instalaram-se no Quénia, num lugar tranquilo, com uma magnífica perspectiva de florestas e montanhas cobertas de neve. Aí faleceu a 8 de Janeiro de 1941 – pouco mais de um mês antes de completar 84 anos.

Quem já foi escuteiro, nunca deixará de o ser, mesmo se algum dia sair do movimento, pois o escutismo não é apenas um aglomerado de actividades variadas, o escutismo é um modo de vida.
Quem olhar para o escutismo com “olhos de ver” poderá facilmente constatar que nada se faz por acaso. Tudo tem um propósito. Tudo tem um simbolismo. Todos os jogos têm um objectivo. Todas as actividades visam o desenvolvimento intelectual, físico, de carácter e de moral. É incutido o sentido de fraternidade, entreajuda, liberdade com responsabilidade É incentivado o desenvolvimento interior e o auto-conhecimento. A pedagogia é aplicada a nível escutista através de pólos educativos visando o desenvolvimento do carácter, da criatividade, da saúde, da ajuda ao próximo, etc. O grau de civilização de um povo é o resultado da educação que essas pessoas receberam durante a sua infância e juventude. Assim, e utilizando as palavras de Robert Baden Powell “O escutismo procura transformar os rapazes em Homens bons”.

Os escuteiros acompanharam-me em alguns dos momentos mais difíceis por que passei. Ajudaram-me a ultrapassar e encarar a morte prematura do meu pai, tendo eu 13 anos nessa altura. Apoiaram-me quando, com 16 anos, decidi morar sozinho. Não faziam as coisas por mim, mas estiveram presentes sempre que necessitei. Escutavam-me quando precisava falar, aconselhavam-me quando precisava de ouvir. Foram meus professores, meus amigos, meus irmãos. E tudo isto se mantém, mesmo não estando activo no meu Agrupamento à 10 anos.
O escutismo tem na realidade muitas semelhanças com a maçonaria, quer seja nos seus ensinamentos, nas suas praticas, nos seus valores ou simbologias. Repare-se na semelhança entre uma Velada de Armas realizada antes da Promessa Escutista e a Câmara das Reflexões antes de uma Iniciação, nos três princípios, nas três pontas da flor-de-lis, no cumprimento com a mão esquerda (lado do coração), entre outras razões, como forma mundial de reconhecimento ou as três insígnias maiores (insígnia de promessa, lenço e o chapéu de abas).
O legado de Baden Powell marcou-me de uma forma indescritível. Todos os seus ensinamentos e princípios ajudaram a moldar o homem em que me tornei e seguramente continuarão a influenciar o meu caminho.
O escutismo ajudou-me a despertar e desenvolver alguns valores que estavam latentes no meu interior. Valores como a solidariedade e entreajuda, a irmandade e fraternidade, a liberdade e igualdade, a honestidade e a verdade. Estes são os valores e princípios que me moldam, definem e pelos quais rejo a minha vida. Estes são os valores que vim encontrar na Maçonaria. Estes são os valores que já experimentei aqui com os meus irmãos.

Hoje acredito que BP era maçom, não obstante haverem vozes contraditórias relativamente a esta matéria. Muito mais poderia dizer-vos sobre a forma como fui ajudado e a minha vida marcada pelo trabalho deste Homem, contudo limito-me a deixar-vos um trecho da última mensagem de Baden Powell:
“Procurai deixar o mundo um pouco melhor de que o encontraste e, quando vos chegar a vez de morrer, podeis morrer felizes sentindo que ao menos não desperdiçastes o tempo e fizestes todo o possível por praticar o bem. Estais preparados desta maneira para viver e morrer felizes (…)” – in Última mensagem de BP aos escuteiros

Eis a razão porque, orgulhosamente, escolhi este nome simbólico.

Autor: Baden Powell, III

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Ideal

Aquilo que generalizadamente se considera como um ideal é, nem mais nem menos, do que um objectivo. E todos os homens elegem um objectivo para a sua vida - é o seu sonho e a sua esperança. Mas apenas alguns conseguem satisfazer o seu ideal - a maioria não, frequentemente por circunstâncias exógenas e a que são alheios por completo.
Podemos considerar que o ideal maçónico objectiva a reunião de todos os homens livres e de bons costumes que passaram pela iniciação, cultivando o amor fraterno por meio de atitudes tolerantes, justas e honradas.
Cada Maçom visualiza o seu ideal e vai caminhando no sentido da sua cabal prossecução, peça por peça. É um trabalho, todavia, que jamais estará concluído, tamanha a sua dimensão.
Mas sem ideal não há esperança. E sem esperança não há motivação para se continuar a arquitectura do nosso trabalho. Mais do que a esperança, evidencia-se a certeza das virtudes que sublinham trabalhos justos e perfeitos. Assim acontece.

Autor: Álvaro

terça-feira, 9 de fevereiro de 2010

A Republicana Dr.ª Carolina Beatriz Ângelo

Carolina Beatriz Ângelo nasceu na Guarda em 1877. Foi a primeira mulher a votar em Portugal em 1911; no ano anterior tinha sido implantada a República. O seu marido Januário Barreto era um activista republicano.

Após a sua conclusão do curso de medicina, foi a partir de 1906 que conseguiu conciliar a sua profissão com a sua actividade de defensora da igualdade, do direito das mulheres, da paz, do direito ao voto, pelo direito ao divórcio, alertou para a insuficiência das leis da família, do alargamento do serviço militar às mulheres, integrando movimentos femininos, da implantação da República, da Maçonaria.
Aderiu, com outras quatro médicas – Adelaide Cabete, Domitila de Carvalho, Emília Patacho, Maria do Carmo Lopes, ao Comité Português da agremiação francesa La Paix et le Désarmement par les Femmes; Grupo Português de Estudos Feministas, Liga Republicana das Mulheres Portuguesas. Participou nos Centros Escolares Republicanos. Fez parte do I Congresso Nacional do Livre Pensamento, ocorrido em Abril de 1908. Fundou com Ana de Castro Osório a Associação de Propaganda Feminista, considerada a primeira organização sufragista portuguesa.
O ambiente político a partir de 5 de Outubro de 1910 inspirado por valores da Revolução Francesa oferecia agora uma maior liberdade e um contexto propício para a luta por direitos que até então tinham sido abafados pela Igreja e pela Monarquia.

A republicana Dr.ª Carolina Beatriz Ângelo, tornou-se neste ambiente uma defensora de causas nobres pela liberdade e pela igualdade. Pode-se bem imaginar o esforço acrescido de uma mulher em conseguir não só uma licenciatura em medicina e primeira cirurgiã portuguesa (3), constituindo uma das profissões masculinas da altura, como também pela luta de direitos numa época em que as mulheres não tinham voz.
É assim neste contexto em que vivia Carolina Beatriz que fez despertar a sociedade em que vivia nos seus primeiros passos de República para a Liberdade, Igualdade e Fraternidade, não fosse ela Maçom adoptada pela Loja Humanidade.
Neste ambiente político ou social conturbado desta época, importa exactamente referir que a Carolina é uma excepção deste ambiente e fora do seu tempo histórico. E isto porque ao lutar pelo direito ao voto das mulheres não o fez somente pela luta por um direito como também contra um preconceito. Possivelmente hoje lutaria pelos direitos dos homossexuais à igualdade por exemplo. E porque não, lutar também, por uma voz mais expressiva da Maçonaria.
Importa agora referir na sua vida curta, alucinante e activa, alguns momentos de luta e de conquista, numa altura em que a VOZ da mulher não se ouvia. Numa época em que as mulheres tinham poucas oportunidades e eram tratadas como objectos. De facto pertencia a um grupo necessariamente minoritário não no sentido numérico mas no sentido do sexo fraco com menores direitos e deveres na sociedade.
Desta actividade podemos aferir que Carolina Beatriz lutou pela liberdade e defesa dos direitos de todas as pessoas: à educação, mas sobretudo pela igualdade entre o homem e a mulher pelos direitos e deveres iguais para ambos os sexos.
Esta actividade que Carolina conseguiu conciliar com a sua carreira médica e com sucesso, para mim o que mais se destaca foi o fato de ter conseguido o direito a voto, sendo esse direito retirado logo depois e que só veio a recuperar-se em condições de igualdade mais de 60 anos depois.

Vale a pena ler o seu requerimento efectuado no dia 4 de Abril de 1911 com o seu pedido de inclusão nos cadernos eleitorais na Comissão de Recenseamento. As suas alegações foram remetidas para o ministro do Interior, António José de Almeida, responsável pela legislação eleitoral:
“Carolina que enviuvou cedo, essencialmente justificava no seu requerimento os seguintes requisitos previstos na lei:”
(…) Não só sabe ler e escrever, mas é chefe de família, vivendo nessa qualidade com uma filha menor, a cujo sustento e educação prevê com o seu trabalho profissional, bem como aos demais encargos domésticos (…)”
- Em sequência de indeferimento, apresentou recurso, entregue em 24 de Abril de 1911 no Tribunal da Boa-Hora e invocava quer o decreto, com força de lei, de 14 de Março de 1911, quer artigos do Código Civil.” .

Em 28 de Abril, numa decisão histórica, João Baptista de Castro (pai de Ana de Castro Osório), Juiz da 1.ª Vara Cível de Lisboa, proferiu sentença favorável à médica, mandando incluí-la nos cadernos eleitorais. Eis o considerando final da sentença, citado por Magalhães Lima numa entrevista ao jornal A Vanguarda, poucos dias após o acto eleitoral:
“Considerando que excluindo a mulher, apesar de ser uma ilustração, como a reclamante, de ser eleitora e ter intervenção nos assuntos políticos – só por ser mulher, como se diz a folhas n.º 6, verso – é simplesmente absurdo e iníquo e em oposição com as próprias ideias da democracia e justiça proclamadas pelo partido republicano, porquanto desde que a reclamante tem todos os predicados para ser eleitora não pode arbitrariamente ser excluída do recenseamento eleitoral, porque onde a lei não distingue não pode o julgador distinguir; por isso, em obediência aos verdadeiros princípios da moderna justiça social: Julgo procedente e provada a presente reclamação e mando que a reclamante seja incluída no recenseamento eleitoral em preparação no lugar e com os requisitos precisos. Intime-se”.

Foi assim que Carolina Beatriz se tornou a primeira mulher a exercer o direito de voto em Portugal, ou em qualquer outro país da Europa do Sul. Segundo a Revista Alma Feminina (Janeiro-Fevereiro de 1922): «Não foi uma vitória feminista, mas foi um ato de rebeldia contra o preconceito da superioridade de sexo.» No entanto esse direito, que ainda por cima era restrito, foi-lhe mais tarde negado assim como a todas as mulheres:
“A lei foi alterada a 3 de Julho de 1913 e ratificada em 1 de Julho de 1915. Deste modo, foi eliminada radicalmente do sufrágio universal a possibilidade de voto aos analfabetos e aos cidadãos portugueses do sexo feminino.”
Em 1916, o Senado defendeu o voto para as mulheres diplomadas, o que foi recusado pela Câmara dos Deputados. Nova insistência em 1918, pelo deputado Jacinto Nunes, teve igual fim. Só em 1931, o direito de voto foi concedido a algumas mulheres, as que possuíssem um curso secundário ou superior”. Mais tarde o Estado Novo viria a quebrar os sonhos dos portugueses e os ideais da democracia. Deixou de existir a igualdade e com ela a liberdade.

A República comprovou ser sinónimo de liberdade e de igualdade, sem a qual muito possivelmente hoje não poderia proferir estas palavras, no entanto, a história continua a mostrar-nos que um preconceito se sobrepõe aos princípios adquiridos pela própria República, e parece que ignoramos todos os momentos da nossa história em que conseguimos vence-lo.
É importante lembrar neste ano em que se celebra o centenário da República que a revolução republicana defende os valores democráticos e de igualdade e de cidadania para todos.

Esperamos que a Carolina Beatriz Ângelo continue a ser lembrada como uma maçon que lutou pela liberdade das mulheres, e pelos caminhos de luta que abriu pela igualdade, e consigamos que a humanidade seja uma! Sem ser dividida em preconceitos, em raças ou sexo.

In "A Republicana Dr.ª Carolina Beatriz Ângelo, a Liberdade, a Igualdade, ou só um Quadro na Parede? G. R. G. Rodrigues"

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Ferramentas

Cada profissão possui a sua ferramenta específica. E a Maçonaria afina pelo mesmo diapasão. Ou seja: na aprendizagem maçónica é necessária a utilização simbólica de ferramentas - inicialmente para desbastar a pedra bruta, para depois erguer uma edificação de estabilidade e solidez permanentes.
É, pois, fundamental para os Maçons, seleccionarem com frequência uma ferramenta, a fim de com ela prosseguirem o trabalho de construtores para que foram iniciados.
É que para nós, Maçons, o maior desafio, que exige aturada experiência e dedicado empenho, é a construção do nosso próprio templo interior.
O trabalho que se nos impõe é, pois, o de construir, de fora para dentro do nosso microcosmo, um templo digno de receber os nossos Irmãos com fraternidade e solidariedade.
É evidenciado o quanto temos todos vindo a laborar, em ordem à prossecução de tão nobre objectivo de uma forma justa e perfeita.

Autor: Álvaro

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Alberto Bargossi

Pela enorme amizade que me liga à “Família Bargossi” desde 1989, é difícil encontrar os adjectivos, as palavras correctas para falar desta ilustre e fraterna Família italiana. Foram até ao momento, e na sequência da minha ida regular à Universidade de Bolonha desde 1989, mais de vinte anos de contacto e de conhecimento mútuo, de troca de ideias e de experiências vividas e sofridas que me levaram à procura contínua de uma aprendizagem de valores morais, de ética, de tolerância, de fraternidade, de solidariedade, de justiça e de firmeza de carácter e me fizeram sentir preparado para me iniciar nesta Augusta Ordem, com o objectivo de adquirir uma nova “missão” para a minha vida. Assim, na Universidade de Bolonha encontrei mais do que um complemento à minha formação de médico. Adquiri mais do que conhecimentos de novas tecnologias na área da terapêutica e do diagnóstico da Aterosclerose que, de forma inovadora, vim a introduzir no nosso país. Na Universidade de Bolonha encontrei uma Família de acolhimento que viria a promover profundas mudanças no meu modo de pensar.

A escolha do meu nome simbólico encerra uma dupla homenagem; à Família Bargossi, na pessoa de Nazario Sauro Bargossi (Pai) e ao seu filho Alberto Mario Bargossi.

Nazario Sauro Bargossi (1919 - 1988) nasceu na cidade de Forlì em 1919, na região italiana de Emília - Romana, cidade com uma extraordinária herança política, cultural e de resistência antifascista. Na cidade de Forlì nascera também Aurelio Saffi (1819 -1890), figura que inspirou Nazario Sauro Bargossi e que em grande parte moldou o seu espírito revolucionário.
Aurélio Saffi, foi um político activo durante a unificação italiana e figura proeminente do “Radicalismo Republicano”. Foi discípulo de Giuseppe Mazzini (1805 - 1872), líder do movimento do “Ressurgimento Italiano”. O Professor Giuseppe Mazzini defendia um projecto de unificação italiana “vindo de baixo”, ou seja, de cariz popular, em oposição à elite liberal – conservadora, monárquica liderada por Camillo Paolo Filippo Giulio Benso, Conde de Cavour, (1810 – 1861). Mazzini era grande devoto da unificação italiana e foi membro da sociedade dos carbonários italianos que, a exemplo dos jacobinos franceses na época da Primeira República da França (1792 - 94), esperava que a futura unificação italiana resultasse de um grande levantamento popular, se bem que estimulado e dirigido pela intelligentsia italiana. O mundo de Giuseppe Mazzini, bem ao contrário do de Cavour, era o dos conclaves clandestinos nas “catacumbas republicanas”, dos ”pátios” das universidades, das redacções dos jornais radicais, frequentados por escritores, por advogados, por estudantes e professores, que seguiam Mazzini com devoção apostólica, certos da acção definitiva do “povo”. O “Mazzinismo” não deve ser visto apenas no seu contexto peninsular italiano, porque Mazzini era adepto da causa “Europeia”, ou seja, de uma “Europa Unificada”. Imaginava uma confederação de estados europeus convertidos ao “Republicanismo Popular”.

Voltando à Família Bargossi, o pai de Nazario Sauro Bargossi, Amilcare Bargossi, nasceu na cidade de Faenza (região Emília - Romana) e foi chefe de estação dos Caminhos de Ferro italianos, tendo viajado e permanecido em inúmeras cidades italianas ao longo do exercício das suas funções profissionais. Foi também perseguido pelo regime vigente, fascista. Foi sempre fiel aos ideais de Liberdade, Igualdade e Universalidade de Mazzini e do Republicanismo Radical. Foi voluntário da Legião Italiana Garibaldina (1914), tendo combatido na 1ª Guerra Mundial, nomeadamente na Batalha de Argonne (França). Foi feito prisioneiro pelos Austríacos e permaneceu no Campo de Prisioneiros de Mauthausen (Áustria) até ao fim do conflito da 1ª Guerra Mundial (1918).
Amilcare Bargossi deu a seu filho, o nome do seu grande amigo Nazario Sauro para perpetuar a sua memória. Nazario Sauro (1880 - 1916) foi um exemplar militar naval italiano, Comandante – de – Fragata da Marinha Real Italiana, patriota convicto, um lutador pela liberdade, expoente do “Irrequietismo Italiano Istriano” e foi fuzilado por traição aos Austríacos no dia 16 de Agosto de 1916. Amilcare Bargossi, mesmo perseguido pela polícia monárquica italiana encontrava-se frequentemente com o seu amigo, Nazario Sauro em Ravena, quando o seu navio de guerra aí atracava, trocava informações consideradas subversivas, material de propaganda dos seus ideais republicanos e de liberdade para os seus amigos correligionários. Valores esses que foram transmitidos a seu filho Nazario Sauro Bargossi, assim como, os valores de lealdade, de tolerância, de capacidade crítica construtiva e de intransigência moral.
Nazario Sauro Bargossi foi um óptimo estudante, formado na área financeira, tendo efectuado uma brilhante carreira na banca italiana, desde simples funcionário a dirigente de topo, nomeadamente na “Banca de Credito Italiana”.
Recrutado, como Oficial militar, prestou serviço no Exército italiano no Corpo Alpino – Guarda de Fronteira – e na Córsega.
Inicia então, a sua colaboração activa com grupos opositores ao fascismo italiano, em especial com o grupo opositor denominado “Justiça e Liberdade”.
Em 1943, liga-se às Forças Aliadas que desembarcam na Sicília, depois em Salerno e participa activamente na libertação da cidade de Nápoles, tornando -se “Oficial de Ligação à Milícia Civil Popular Napolitana”.
Foi o primeiro Presidente do Instituto Aurélio Saffi, com a missão de divulgar a vasta obra deste político republicano italiano. Ao longo da sua longa carreira bancária, que exerceu em várias cidades italianas, foi fundador de várias Lojas Maçónicas italianas, contribuindo para a propagação dos ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade.
Na sua vida, ainda foi um membro activo do Partido Republicano Italiano e da Associação Mazziniana Italiana. Publicou a biografia e divulgou a obra de Aurélio Saffi, seu conterrâneo.
Em 1946, foi um dos fundadores do Movimento Federalista Europeu (MFE) com Altiero Spinelli (fundou as filiais de Ancona, de Ferrara e de Forlì, a qual tem o seu nome).
Depois do Golpe Armado de Pinochet no Chile (1973), contra o Governo Democrático e Popular de Salvador Allende tornou-se Presidente da “Comissão Italiana Para Um Chile Democrático”.
Faleceu na cidade de Bolonha no dia 28 de Outubro de 1988.

Quando faleceu, Nazario Sauro Bargossi deixou dois filhos; um filho, de nome Alberto Mario Bargossi e uma filha, de nome Maria Luisa Bargossi.
Actualmente a filha Maria Luísa Bargossi, Arquitecta de profissão, educada no espírito.
Mazziniano e Republicano, de Tolerância e de Liberdade, exerceu desde muita nova de idade, intensa actividade política em Forlì, inicialmente no Partido Comunista Italiano e depois no Partido Democrático. É actualmente Vereadora da Autarquia de Forlì.
O filho, Alberto Mario Bargossi, nasceu na cidade de Bolonha, no dia 11 de Março de 1948, desde muito novo embebido nos ideais de Tolerância, Lealdade e Justiça incutidos pelo seu pai Nazario Sauro Bargossi, foi um activo anarquista – republicano enquanto estudante de Medicina na Universdade de Bolonha, nunca descurou os estudos, tendo-se licenciado em Medicina e Cirurgia em 1977, com a classificação máxima. É Especialista em Higiene e Medicina Preventiva, em Cirurgia Geral, em Patologia Clínica (1983) e em Medicina do Desporto (1986).
Exerceu a sua carreira médico-profissional no Hospital Universitário Sant`Orsola – Malpighi da Universidade de Bolonha. Foi Director do Serviço de Patologia Clínica (1981 - 2006) e reformou-se em 2006, como Dirigente de 1º Nível do Serviço Nacional de Saúde Italiano.
Foi Professor Contratado de Patologia Clínica da Escola de Especialização de Medicina do Desporto da Universidade de Bolonha (1986 - 1998) e “Visiting” Professor da Universidade de Gd`ansK.
Publicou, até ao momento, inúmeros artigos/trabalhos científicos nas áreas da Patologia e Química – Clínica Aplicada, da Medicina do Desporto e da Nutrição Humana.
Desde 1975, é Consultor da Federação Italiana de Luta (Greco-Romana e Estilo Livre), e de Judo – Comité Olímpico Nacional Italiano e ainda da Federação de Ciclismo Italiana – Comité Olímpico Nacional Italiano. De 1992 a 1998 foi Consultor da Federação Italiana de Futebol – Comité Olímpico Nacional Italiano. De 1999 a 2006 foi Consultor da Federação de Ciclismo Italiana – União Ciclista Internacional, para o Controlo de Substância Abusivas.
Exerceu vários Cargos de Direcção em inúmeras Sociedades Científicas Italianas e Internacionais (Presidente da Associação Italiana de Fitness e Medicina, Membro do Colégio e ex. Presidente da Associação Italiana de Ciclismo).
Nos últimos anos tem desenvolvido intensa actividade de divulgação dos ideais maçónicos de Liberdade, Igualdade e Fraternidade na região Emília – Romana, tal como seu pai fizera anteriormente.

Atendendo à vida exemplar de luta permanente contra a ignorância, a prepotência, com uma enorme firmeza de carácter, de justiça e de luta pelos ideais de Liberdade, Igualdade e Solidariedade de Nazario Sauro Bargossi e de Alberto Mario Bargossi, é fácil agora entender a escolha do nome simbólico maçónico de Alberto Bargossi.

Autor: Alberto Bargossi

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Pentagrama

Constituindo o Pentagrama um dos Símbolos mais carismáticos da Maçonaria, pareceu-me oportuno fazer uma reflexão sobre este símbolo, para o que me socorri do apoio da Respeitável Loja "Os Fiéis Obreiros da Baixa Califórnia".
Assim, os algarismos 1 e 2 na parte lateral esquerda de um Pentagrama representam o Masculino e o Feminino. No ângulo superior encontra-se o signo de Júpiter. Nos braços está o signo de Marte, símbolo da força. No centro encontra-se o caduceu de Mercúrio - representando a espinha dorsal e os signos de Vénus e Mercúrio. Nos lados do caduceu estão o Sol e a Lua. As duas alas representam a ascensão do fogo sagrado ao longo da espinha dorsal, como no tantrismo e na alquimia sexual. Aos pés do Pentagrama aparece o signo de Saturno. A espada é o falo masculino. Mas também ali se encontram a Chave e o Selo de Salomão. Cada uma das cinco pontas representa um elemento - Ar, Fogo, Terra, Água e Espírito. As letras gregas alfa e ómega representam o princípio e o fim. O Cálice simboliza o vaso da abundância, que contém a bebida da imortalidade. Por outro lado, penta significa cinco em grego, alfa é a primeira letra daquele alfabeto e grama significa letra na mesma língua.
Hoje participámos, pois e uma vez mais, numa sessão pletórica de significado.

Autor: Álvaro

terça-feira, 12 de janeiro de 2010

Carlos

Para o bem e para o mal nasci Angolano, Angola foi e será sempre a terra do meu coração.
Como alguns saberão vivi uma parte dolorosa da história daquela terra, o que não me faz esquecer as muitas e gratas recordações que dela também tenho. Lembro-me das farras aos sábados e das madrugadas de domingo, que se lhe seguiam, passadas na praia cantando. Eram das poucas ocasiões que tínhamos para estar em grupos sem que a policia nos considerá-se incómodos para o regime vigente.
Uma das músicas obrigatórias era Muxima cuja tradução para português significa coração pois a considerávamos um hino a Angola, tocada e cantada na praia olhando o nascer do Sol sobre a baía de Luanda, respirando tranquilidade, ouvindo aquela guitarra e a voz de soul de Liceu, um dos músicos de serviço e autor da mesma.
Numa farra perguntei a Liceu porque todas as suas canções eram em kinbundo, dialecto que eu não entendia e se tal não constituía um perigo para um território geograficamente dividido por rios, com vários grupos étnicos e dialectos
Liceu sorriu, e disse-me, é o dialecto que domino e é o que o povo daqui entende.
-- De chofre pergunta-me:
-- Que achas da música?
-- Respondo:
-- Sente-se, vive-se, e ver as mães a dançar como se estivessem a embalar crianças, só tu arranjavas esta coreografia, e só sendo africano se pode ter este sentimento.
-- Pois, fico satisfeito por brancos gostarem da minha música, é de propósito.
-- Porque?
-- Temos de lutar por uma sociedade multicultural, somos angolanos.
-- Insisto, porque não em português?
-- Não te preocupes. Se o português não for a nossa língua oficial nunca seremos um País.
-- Tens razão, vou dançar este merengue.
Curiosamente este homem nascido na Republica Democrática do Congo (um de 24 irmãos) tinha sido registado Angolano, e eu nascido numa cubata no Bembe, norte de Angola, tenho no bilhete de identidade nascido no Fundão, pois meu pai recusava que os filhos fossem brancos de segunda.
Conhecido por Liceu Vieira Dias, ou simplesmente Liceu, alcunha dada por ter sido um dos primeiros negros angolanos a terminar o secundário no Liceu Salvador Correia, foi preso no final da década de cinquenta, e desterrado mais de uma década no campo de concentração do Tarrafal em Cabo-Verde, pela sua luta pela Liberdade e Independência de Angola, à qual sempre se manteve fiel.
A sua grande sensibilidade musical e cultural, assumindo a oralidade tradicional africana, fá-lo iniciar um trabalho de resgate cultural, procurando relançar músicas tradicionais e a elas dar arranjos modernos sem perder as suas essências originais.
Reconhecido como o pai da música angolana criou o género rítmico-canção denominado por semba. Deve-se-lhe ainda a introdução do reco-reco e das congas na música e ritmos de Angola sendo na viola acústica que mais se evidenciou.
Iniciou a carreira artística em 1947, fundando a banda musical Ngola Ritmos, o seu veículo de intervenção.
Liceu Vieira Dias um dos fundadores do MPLA, manteve-se coerente na defesa dos seus princípios e valores, como a liberdade, o multiculturalismo, a não violência e o diálogo. Com efeito os caminhos seguidos de confronto e de partido único baseados em concepções importadas sempre contaram com a sua oposição mantendo-se fiel a um modelo pluricultural e pluriracial para Angola baseado numa evolução com Liberdade. Assim em 1975 no congresso do MPLA em Lusaka, procurando evitar a guerra civil iminente, torna-se dissidente formando com outros moderados o movimento denominado Revolta Activa.
Este homem simples, que muito me ensinou da cultura angolana, e com quem aprendi que a defesa dos valores e princípios fundamentais em que acreditamos não têm preço tinha como seu primeiro nome Carlos.
É em sua homenagem que escolhi o meu nome simbólico.

Autor: Carlos

SABER MAIS:
Liceu Vieira Dias nasceu a 1 de Maio de 1918, na República Democrática do Congo. É unanimamente considerado o “pai da música popular angolana”. Tendo as violas acústicas como base, ele introduziu a dikanza (reco reco) e as ng’omas (tambores de conga) nas suas canções. A sua carreira musical começou, em 1947, quando, com Domingos Van-Dúnem, Manuel dos Passos, Mário da Silva Araújo, e Nuno Ndongo fundou o Ngola Ritmos, um grupo “histórico” da música popular angolana.
Três anos depois, a banda é reforçada com Amadeu Amorim, Belita Palma, Euclides Fontes Pereira, José Cordeiro e Lourdes Van-Dúnem. As músicas eram cantadas em kimbundu acompanhadas de violão e percussão. O seu som tornou-se muito popular na década de 50, sobretudo nas áreas urbanas, onde a audiência era favorável à sua mensagem politizada e nacionalista. O filho Carlitos Vieira Dias é o sucessor do enorme legado histórico e musical de Liceu Vieira Dias.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Santo

Como é consabido, o significado da linguagem maçónica afasta-se daquele que é vulgar e generalizadamente utilizado no mundo profano. Vem isto a propósito da palavra "santo" que quer dizer "puro" e "escolhido". Ocorreu-me esta analogia porque os Maçons são, na sua essência, homens de bons costumes e que são escolhidos para enformarem a comunidade a que pertencerão. Em hebraico, por exemplo, santo diz-se "kadosch", que é o nome do trigésimo grau maçónico filosófico no Rito Escocês Antigo e Aceite. E embora a Maçonaria não venere os santos da Igreja Católica, na maçonaria filosófica existe um grau denominado de "Santo André". Santificado significa, pois, sancionado, aquele que é escolhido e aceite. Afinal, como escolhidos e aceites são todos os Maçons. E uma vida santificada significa viver exteriorizando amor ao próximo, que é uma das virtudes maçónicas por excelência. Veja-se, pois, como palavras iguais assumem significados diferentes consoante sejam proferidas no mundo maçónico ou no mundo profano. Seria, por exemplo, verosímil ouvir-se dizer a um profano que tivesse terminado uma obra que os trabalhos decorreram de forma justa e perfeita? Não! Mas é isso precisamente que acontece na Maçonaria.

Autor: Álvaro