Se observarmos com atenção esta figura política que os historiadores parecem esquecer, não podemos deixar de sentir uma espécie de embaraço misturado com muita perplexidade, já que se mostra contraditório e por vezes mesmo paradoxal no destino e na alma do homem que fundou a República, que foi o braço armado que, na hora decisiva em que todos desanimavam e alguns já desertavam, fez pender a balança da História para o campo dos revoltosos e, no reduzido acampamento da Rotunda, com uns quantos sargentos, praças e civis, verdadeiramente arrebatou a vitória nos dias 4 e 5 de Outubro de 1910. Contraditório destino, estranha actuação a deste marinheiro da administração naval que vence no campo militar, quando os verdadeiros combatentes se suicidam (como o almirante Cândido dos Reis, julgando tudo perdido) ou se retiram (como os oficiais que decidem abandonar as barricadas do Marquês de Pombal, na manhã de 4, por considerarem que a Revolução falhara)!
Simples comissário naval, com 35 anos na altura dos eventos revolucionários, toma assim a seu cargo a estratégia e o plano decisivo, donde resultaria por fim o triunfo da República, sendo ele, em terra, e Mendes Cabeçadas, no mar, os que de facto fizeram vingar o 5 de Outubro de 1910. E não era combatente, mas um administrador, um simples burocrata da Marinha… Depois, tendo ele sido quem fundou a República, nunca se sentiu bem dentro dela e não parou de conspirar contra todos os que se aproveitaram da Revolução.
Outro paradoxo ainda está na acção política e jornalística seguida por Machado Santos depois do triunfo de 1910, fundando em Novembro desse ano, um jornal mantido, em parte, graças à pensão que a Assembleia lhe concede, o marinheiro Machado Santos converte-se em jornalista, revela dotes inesperados na sua nova actividade, serve-se da sua tribuna para, em obediência ao título do seu órgão, mostrar uma isenção que o inclina a criticar com especial virulência os homens e as formações partidárias que o carbonário nunca tolerou.
O antigo dirigente da Carbonária, o herói da Rotunda, viveu desconfortavelmente na República que ajudara a criar. Triunfante o regime republicano, a vida daquele que a fundara foi cheia de vicissitudes, eleito para as Constituintes como candidato por Lisboa, teve o desgosto de ser escolhido com a votação menos expressiva, o que já traduzia a enorme baixa de popularidade. Feito jornalista, dirigiu o Intrasigente, um jornal onde escreveram homens de talento como Cunha Leal, Humberto Ataíde. Tentou ainda criar um partido onde todos os portugueses se reconciliassem acima das divisões partidárias, a Federação Nacional Republicana. Deixou importantes depoimentos sobre a revolução – A Revolução Portuguesa, 1907-1910 (Lisboa, 1911) e A Ordem Pública (Lisboa, 1916).
Homem recto, coriáceo, intransigente, de grande lisura e integridade moral, um homem livre e de bons costumes, o comissário naval que deu o triunfo à revolução republicana passou pelo regime como um meteoro incandescente e contraditório, desfazendo-se por fim no sangue da noite ignóbil de 1921. O esquecimento a que, em geral, a historiografia portuguesa da República o tem votado, ocultam cuidadosamente as mazelas sobre tais figuras e adensam o halo de maldição sobre esta personalidade tão rica e complexa como a deste Machado Santos que quisemos evocar, passado o seu feito glorioso na Rotunda!
Autor: Júlio Verne - Baseado em Machado Santos e a Revolução de Outubro, História Crítica, Lisboa, 1980
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