Naquele tempo era perigoso contrariar o mandato dos céus, e o deus que havia protegia os poderosos. A religião dos homens e a lei dos fortes eram defendidas por velhos sacerdotes e severos juizes. Bastava uma palavra infeliz, um acto qualquer incompreendido e a justiça haveria de encontrar um criminoso. O homem que tinha sido julgado sem dúvida cometera uma ofensa grave, mas não podia recordar-se do seu crime. Um outro deus era o seu, mas esse outro amaldiçoara-o a cumprir um calvário de sangue. Nenhum deus ama a liberdade, e o que está escrito tem que ser seguido. Também o seu deus tinha fracassado perante os destinos inexoráveis. O homem que tinha sido condenado deixara de acreditar no seu deus, e apenas lamentava o tempo perdido dos que o tinham escutado. Homens e mulheres comuns que seriam perseguidos por causa da sua palavra.
O homem que tinha sido condenado sabia demais e via para além do seu deus. O seu deus era casmurro e malicioso o suficiente para cumprir as escrituras. Um velho nojento e embevecido ainda com a sua imagem nos confins do universo. A vaidade corrompe os deuses, e até os homens mais próximos e amigos. Mas nada disso interessava já, nem o tempo em que procurou o sentido da festa. Cedo demais tinha julgado o seu deus diferente e a humanidade disponível para a alegria. Cedo demais, repetia para si. Qual tinha sido o seu primeiro milagre, o seu primeiro erro? Agora estava morto ou julgá-lo-iam como tal. A injúria dos homens é irreparável. Para quê regressar? O corpo foi entregue a José que o cobriu com um lençol fino que comprara, trataram-no como a um morto e como deveria ser. Também o centurião que certificou a sua palidez julgou estar perante um cadáver.
Acordou naquela manhã envolto em ligas e o rosto coberto por um sudário. Apenas podia mexer as mãos, e foi assim que se sentiu vivo. Enjoado com o lento despertar numa gruta fria, o homem que não morreu contemplou outros corpos enfaixados e inertes a seu lado. A morte é uma coisa estranha, uma forma suprema de quietude e silêncios. Por fim aceitou a consciência de que estava vivo, a luz do sol brilhava lá fora e pressentia que outra vida o esperava. Mover a pesada pedra estava fora das suas possibilidades, o homem que tinha sido condenado rastejou para a fresta que o religava ao mundo e à realidade dos vivos, escavando com tempo o seu triunfo inútil. Voltou a questionar a sensatez de um regresso. Quem quererá morrer duas vezes?
Entre arbustos próximos retirou as ligas que o apertavam, nódoas de sangue e suor. O homem sentiu o sol percorrer a sua nudez, reparou como eram horrorosas as suas chagas. Como viver uma vida honrada, ser apenas um homem mais e sem mistérios? Estranhou a sensação da água num riacho próximo, um outro baptismo de vida. Não podia arriscar-se a ser descoberto. Regressou cauteloso, era como se não conhecesse mais mundo que o espaço para onde tinha rastejado. Fazer a viagem da morte para a vida é uma oportunidade única e não conseguiu dormir na noite após a sua ressurreição.
Contemplou um amanhecer inteiro pela primeira vez, sem uma missão a cumprir. Não podia ocultar-se eternamente. Arrepiava-se diante daquela palavra… eternidade! Como poderia ter mentido tantas vezes sobre a bondade do seu deus? Estava perdido nestes pensamentos quando um grupo de mancebos desviou a pedra da entrada para roubar os panos de linho aos cadáveres. Não se moveu, porque não é crime roubar quem não precisa. Além disso as questões da lei nunca lhe interessaram, ou não tivesse violado o sábado ao curar enfermos e a colher espigas para comer diante dos fariseus. Recordava-se agora dos seus pecados. Enquanto os mancebos disputavam o linho, o homem que tinha sido condenado pensava que o amanhecer é sempre belo, e olhou para a estrada e as anémonas cor de púrpura por onde os mancebos escapavam, atravessando mais adiante os loureiros bravos.
O homem que tinha saudado a luz de um novo dia notou então que três mulheres se aproximavam, silenciosas como se viessem chorar a morte de alguém. Custava-lhe ainda enfrentar a luz de um novo dia, mas reconheceu Madalena. Atrás seguiam a mãe de Tiago e Salomé. Não quis falar-lhes, tinha que desabituar-se de transmitir esperanças. Era melhor que a morte fosse tida como natural e inevitável, o elo que falta entre os homens e os deuses. Sem a morte, pensou, a arte e todas as religiões seriam improváveis como coisas humanas.
Mas o seu corpo não estava na gruta, na verdade ele estava vivo e não podia contrariar a sua ressurreição. Não queria voltar a morrer apenas para fazer a vontade dos homens e do seu deus, mas não sabia como viver. Não sabia para que servia a vida. Apenas não queria ser descoberto pelos soldados. Nem pelos discípulos. Poderia falar com Madalena, pedir auxílio e um esconderijo temporário mais seguro que uns arbustos. As três mulheres repararam na pedra movida e no lugar vago do seu corpo. Mas o homem que não morreu tinha que manter o mistério do seu desaparecimento, ninguém o encontraria.
Apenas Madalena, a beleza que o surpreendeu junto a um poço de água. Deveria, pois, saciar a sua sede? Amar a beleza num corpo mortal que envelhece. Amar sem o propósito de salvar a humanidade inteira para fugir à responsabilidade de um único beijo. O filho de deus saberia amar? Suportaria conhecer o amor, e o remorso que fica sempre depois do amor? O deus que fora o seu nada sabia do sofrimento humano porque lhe ordenara que morresse na cruz, por um amor sem substância e sem fim.
Deveria agora esgueirar-se por caminhos sombrios, amar é o maior perigo que pode acontecer a um homem! Madalena estava só na sua tenda, queria libertar-se da memória daquele homem solitário que a tinha olhado de maneira diferente. Entre o mistério e o pranto, aguardava sem saber. O homem que não morreu entrou sem alarde, e olhou para Madalena como quem desperta de um sono profundo. Sou apenas um homem, disse-lhe. Madalena reconheceu-o e voltou a tratar-lhe das feridas.
O homem que não morreu encontrou o tempo para chorar ser filho de um deus que não queria. Beijou lentamente os pés de Madalena, abraçou-se às suas delicadas coxas e permaneceram calados, enquanto Madalena lhe afagava os cabelos. O amor não precisa de palavras nem de orações. Sentiu o sangue latejar quando se deitou com Madalena. As mãos percorreram os rostos, e descobriu que os humanos fazem amor conservando mútuo o olhar. Dar a outra face é isto mesmo, partilhar o êxtase e o segredo dos afectos. O filho de deus tinha finalmente ressuscitado da morte de não amar.
Autor: Adriano Rosa (A David Herbert Lawrence, porque escreveu a novela intitulada The man who died).
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