domingo, 9 de maio de 2021

O Valor Solidariedade nos Nossos Dias

O Estado moderno nasce com Maquiavel. O pensamento político medieval, herdeiro dos conceitos do Império Romano e da romanização dos Bárbaros, era subordinado à teologia, à filosofia e ao direito. Do ponto de vista social tinha gerado o Feudalismo. Com Maquiavel inaugura-se a ideia de estado absoluto, de predomínio do Príncipe sobre os cidadãos exercendo o poder de forma pragmática. Deste modo, o pensamento maquiavélico – historicista, antropocêntrico, pessimista, autoritário, laico e por vezes antirreligioso – separou historicamente a Igreja do Estado.

Do séc. XVI ao séc. XVIII o absolutismo foi-se desenvolvendo, a ponto de se chegar a legitimar de forma transcendente, pelo direito divino dos reis. A evolução política da França, a partir das guerras da religião do séc. XVI, documenta este processo: depois de Richelieu e Mazarino terem lançado os fundamentos do Estado central e enfrentado os resquícios das feudalidades, Luís XIV, ele próprio temperado pelas dificuldades da Fronda, traçou e cumpriu uma estratégia de engrandecimento e reforço do poder do estado sobre a sociedade e a nação francesas e do poder absoluto do monarca sobre o Estado.

Ao longo do séc. XVIII este modelo vem a vigorar na Áustria, Rússia, Prússia, Suécia, Dinamarca, Espanha, Portugal e Nápoles, em réplicas mais ou menos conseguidas. Esta asfixia dos povos e das nações deu origem a movimentos filosóficos de repúdio e a novas formas conceptuais de organização política, de que é exemplo modelar a teoria da separação de poderes de Montesquieu. É o início do Iluminismo, a entrada no Século das Luzes, no qual a Maçonaria tem um papel importante, senão o mais importante.

Da Revolução Francesa saem os três valores, que no fundo são nossos e ainda hoje celebramos: Liberdade, Igualdade, Fraternidade. Assim, o séc. XIX vem a ser o século dos Estados constitucionais liberais, os quais assumem uma forte neutralidade ideológica, porém num quadro jurídico de humanismo laico, ainda que, como observa Jaime Nogueira Pinto, se lhe possa assacar uma certa componente ideológica, ao defenderem “uma certa concepção de individualismo liberal oligárquico, uma espécie de democracia de notáveis em que a liberdade e a propriedade eram os valores fundamentais”.

No entanto, a partir de meados do séc. XIX a Revolução Industrial vem criar enormes concentrações de riqueza, possibilitando que famílias, ou mesmo indivíduos, tenham condições de concorrer com os Estados em importância e sobretudo em Poder. Por contraponto, e apercebendo-se do que será o futuro com esta receita (capitalismo selvagem, por um lado, Estado não intervencionista, por outro), Marx e Engels publicam em 1848 o Manifesto Comunista, propondo uma organização dos estados nova e completamente revolucionária.

Estas duas novas forças vão digladiar-se na primeira metade do séc. XX. Na Europa, Itália, Alemanha, Espanha e Portugal caem em regime de ditadura de Direita. E embora fascismo, nazismo, conservadorismo rural e corporativismo sejam realidades diferentes, às vezes mesmo muito diferentes, elas são organizáveis numa mesma categoria: regimes ditatoriais com prevalência do económico sobre o político. Por seu lado, a Rússia segue a via do comunismo, integrando como União Soviética uma série de Estados satélites. A França, como de costume, experimenta de tudo, desde Léon Blum à República de Vichy e à ocupação hitleriana.

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, no entanto, saem triunfantes os valores da liberdade, os nossos valores, os valorespor que lutaram os nossos irmãos antigos. Durante os trinta anos seguintes, os chamados anos dourados, a Europa é governada por forças moderadas, herdeiras do liberalismo democrático, com alternância entre a democracia cristã e a social-democracia.

Porém, com o advento da revolução tecnológica aconteceu algo semelhante ao que já acontecera na revolução industrial. O centro moderado esbateu-se. A Democracia Cristã, personalista e solidária, desapareceu algures no tempo, permitindo uma deriva para um liberalismo, ou neoliberalismo, desenfreado e novamente selvagem. A social-democracia, socialista e igualitária, em contraponto com a ditadura do proletariado do chamado socialismo científico, paradoxalmente perde a voz com a implosão da União Soviética, a que se seguiu a mudança de regime também na China, e deixa de contar como força política relevante, reduzindo-se a mero porta-voz de temas menores, embora importantes, como os direitos dos animais ou os direitos das minorias. A revolução tecnológica está a conduzir-nos, nestes tempos, de novo à prevalência do económico sobre o político, levando-nos a novas formas de exploração selvagem que nenhum modelo anterior pode ou sabe combater.

Estamos, portanto, num momento de transição em que iremos sair da Idade Contemporânea em direcção ao desconhecido. Ora, é neste momento que mais uma vez a Maçonaria, que sempre iluminou os grandes saltos históricos da evolução da Humanidade, tem uma palavra a dizer e um papel principal a desempenhar.

Observe-se que dos nossos valores iniciais, Liberdade, Igualdade e Fraternidade, a Liberdade está felizmente conquistada. A Fraternidade está disponível. Resta-nos cumprir a Igualdade. E a globalização pôs a nu o enorme atraso da Humanidade na promoção da Igualdade.Já foi aqui em Loja referido, há pouco tempo, como a revolução tecnológica, a robótica, a inteligência artificial e todas estas conquistas científicas estão a destruir milhões de postos de trabalho. Tentar defender os postos de trabalho contra o avanço tecnológico será como tentar desviar o curso de um rio com uma tábua.

Se, nesta conformidade queremos glorificar o direito e a justiça, queremos, enfim, fazer Maçonaria, temos de invocar um novo valor para nos nortear: a solidariedade. Este será o novo valor essencial para a promoção da igualdade entre os Homens.

Falta solidariedade quando se fecham fronteiras a quem, fugindo da guerra, só deseja uma oportunidade para, em paz, reiniciar a sua vida; Falta solidariedade quando se luta cinicamente na parte rica do mundo por 35 horas de trabalho semanal e nunca se tem uma palavra acerca daqueles que, na China, são obrigados a trabalhar 60 horas por semana para, apenas, sobreviver; Falta solidariedade quando se não critica o autêntico esbulho de matérias-primas a um continente inteiro – a África – sem que se promova que lá sejam instalados meios de produção que permitam um modo de vida condigno aos seus habitantes, aliás até há pouco chamados depreciativamente indígenas.

O mundo actual está a sofrer de um vergonhoso défice de solidariedade. É aqui que eu penso que nós, maçons, honrando os nossos antigos, temos uma palavra a dizer e nos devemos colocar na primeira fila da solidariedade, como forma privilegiada de combater pela igualdade contra a tirania, como é nossa obrigação.

Aqui têm, meus irmãos, as minhas reflexões acerca da viragem que o mundo enfrenta nos nossos dias. Infelizmente, porém, embora seja para mim claro que só através de uma porfiada lutaa favor da solidariedade poderemos cumprir os nossos ideais, não tenho mérito nem talento para ousar indicar um caminho, e por isso me desculpo por estas reflexões conterem mais dúvidas do que conclusões. Penso, no entanto, que estas reflexões são úteis para que todos possamos contribuir para aquilo que aqui nos reúne: combater a tirania, a ignorância, os preconceitos e os erros, e glorificar o direito, a justiça, a verdade e a razão.

Com poucas certezas, estou porém certo e seguro relativamente à importância que o valor solidariedade hoje tem e continuará a ter para nós.


Autor: Bocage

 

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