sexta-feira, 23 de abril de 2021

Abílio Mendes

Pretendo homenagear com este ato uma das primeiras pessoas que “vi” quando abri os olhos para o mundo profano e que me acompanhou durante toda a minha infância, o meu médico pediatra: Abílio Mendes. Era alguém com quem senti, desde muito novo, o que é ser Maçom. Alguém que contribuiu indiretamente para que Vos tenha hoje como Irmãos.

Durante a fase inicial de descoberta do mundo, em que tudo é novidade para uma criança, ir ao médico pode representar uma boa aventura. Primeiro, o passeio com a minha bisavó, sempre com a minha bisavó, até ao seu consultório na Av. António Augusto de Aguiar.

Depois, a brincadeira com os outros meninos na sala de espera. E finalmente, a consulta. Qual consulta qual quê! O momento em que dois adultos experientes estavam à conversa e trocavam conselhos sobre a vida. O momento em que um minorca como eu podia descobrir mais qualquer coisa sobre esse tal mundo completamente desconhecido da vida. Que privilégio. Acredito que deveria passar todo o tempo de olhos esbugalhados e de ouvidos bem abertos.

Abílio Mendes já tinha sido pediatra do meu pai e tios. Afinal já havia uma ligação de alguns anos à minha família. Era nosso amigo.

De vez em quando lá havia nova encontro. Agora, que eu já tinha outra consciência, aproveitava as consultas para ir conhecendo melhor a minha família e ia naturalmente apercebendo-me do carácter e da beleza interior enquanto ser humano do meu médico.

Era alguém com imensa autodisciplina. As consultas começavam às 14:00 e a essa hora abria-se a porta do consultório e lá aparecia ele de chapéu de feltro, com o seu bigodinho característico e com o seu ar ternurento.

Era uma pessoa que não apontava as fraquezas do ser humano, procurando ser um impulsionador da mudança pela positiva. Apercebi-me que durante vários anos procurou

fazer ver aos meus pais a importância de interromperem o consumo de drogas e de apostarem num projeto de vida.

Não escolheu a profissão pelo dinheiro. Movia-o o seu espírito de missão, o seu gosto constante em ajudar o outro e a ajudar a formar as mulheres e os homens do futuro. Havia inclusive casos de pessoas com menos posses que pagavam o que podiam pelas consultas. Hoje, se cada um dos seus pequenos pacientes doutrora fechar os olhos, sente por certo a sua enorme força presente.

Após ter deixado as suas consultas ainda ia sabendo novidades. O meu antigo pediatra recebia agora as visitas dos meus dois primos.

Anos mais tarde em 1992, tinha eu 15 anos, soube pelos meus avós e bisavó da triste notícia da sua morte. Na necrologia de um qualquer jornal era referido este triste acontecimento e era ainda feita nota a algo para mim desconhecido até ao momento. Estava anunciado que o seu corpo estaria em câmara ardente no Palácio Maçónico.

De imediato comecei a pesquisar mais sobre o Palácio, sobre a sua localização, sobre a Maçonaria, sobre o Grande Oriente Lusitano e claro, sobre Abílio Mendes.

Na altura, estudava no Conservatório Nacional, na Rua dos Caetanos. Lembro-me que a passagem pela Rua do Grémio Lusitano tornou-se obrigatória. Talvez tivesse sorte e a porta estivesse aberta. Num dos dias até vi os mosaicos brancos e pretos do chão.  Fiquei todo contente.

A perceção que tinha de si e das suas qualidades, graças ao contacto direto que tive com ele, veio a confirmar-se e a uma escala completamente diferente. Afinal, Abílio Mendes tinha tido um papel interventivo na Sociedade Portuguesa. Deixou marca.

A maioria dos factos que passarei de seguida a descrever foram apoiados na publicação intitulada “Abílio Mendes”, editada pela Comissão Municipal de Toponímia da Câmara Municipal de Lisboa, em junho de 2010, por altura da inauguração da Rua Abílio Mendes.

Abílio Mendes nasceu em 1911 na Maia. Fazia parte de uma família simples e era o mais novo de onze irmãos.

Estudou medicina, primeiro no Porto e depois em Lisboa, para onde se muda após ter sido referenciado pela imprensa como opositor ao Estado Novo.

Durante o seu percurso académico teve uma intensa atividade no movimento associativo estudantil como delegado de curso, membro da Direção da Associação de Estudantes e representante da Faculdade de Medicina no Bloco Académico Antifascista. Durante este período participou também ativamente nas revistas universitárias das duas Faculdades de Medicina onde estudou.

Em 1933 foi iniciado Maçom. Conforme assumiu, foi uma nova fase na sua vida. Conviveu com Eugénio Ferreira, Keil do Amaral, Ângelo Cortesão Casimiro, Orlando Juncal, Fernando Santos Silva e Alexandre Babo, entre outros.

Mais tarde veio a ter conhecimento de sua proposta de expulsão do curso pelo Ministro da Educação, quando apenas lhe faltava uma cadeira para terminar o curso. Valeu-lhe o apoio de alguns professores que convenceram o governante a deixá-lo terminar o curso.

Embora muitos dos seus companheiros das Lojas Maçónicas tenham entrado no Partido Comunista, Abílio Mendes nunca aderiu aos ideais da revolução soviética, perfilhando antes os ideais vindos da II Internacional. Fez parte da Acão Democrata e Social, do MUD, da Acão Socialista Portuguesa e mais tarde foi um dos fundadores do Partido Socialista. Já formado, concorreu por duas vezes aos Hospitais Civis de Lisboa e sempre bem classificado foi excluído por decisão ministerial, o que o impediu de entrar nos hospitais e na carreira universitária.

Obrigado a fazer a sua formação de Pediatra em regime de voluntariado, foi posteriormente convidado pelo professor de pediatria, Carlos Salazar de Sousa, para seu “assistente livre“.

Mesmo impedido pelo regime de entrar nos quadros dos hospitais, Abílio Mendes fez parte do grupo que abriu o serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria, onde dedicou muitos anos da sua vida profissional sem qualquer remuneração.

Conseguiu ao longo dos anos através da persistência, sabedoria e brilhantismo angariar um nome com grande reconhecimento nacional ao desenvolver a sua actividade como médico pediatra no consultório, tendo este sido o único meio de subsistência para si e para a sua família.

Aliou a sua vida profissional a uma constante preocupação pelo estudo e pela leitura dedicado sobretudo à Pedagogia e aos Filósofos do Socialismo.

Em 1982 aceitou o convite para Presidente da Liga Portuguesa dos Direitos Humanos e em 1990 foi agraciado com a condecoração de Grande Oficial da Ordem da Liberdade.

Foi ainda, nos últimos anos da sua vida, membro efetivo do Supremo Conselho do Grau 33 do Rito Escocês Antigo e Aceite para Portugal.

Os elogios fúnebres, foram proferidos pelo seu correligionário e amigo José Magalhães e pelo então Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano – Maçonaria Portuguesa, Ramon de La Féria, que recordou: “(...) Resistiu sempre contra o obscurantismo, contra a tirania e a ditadura Fascista que durante quase cinquenta anos tentou aniquilar o Grande Democrata e Republicano Doutor Abílio da Costa Mendes, e apesar de todos os obstáculos, traições e perseguições da PIDE conseguiu sobressair com tenacidade, vigor e real valor assumindo-se na Sociedade Portuguesa como Personalidade impar não só Cívica como Cientifica, como ainda fez sempre vingar o seu pendor Humanista e a Tolerância (...)”.

Referi, no início deste trabalho, que com Abílio Mendes tive o privilégio de sentir e ver o que é ser Maçom.

Acredito hoje, de forma veemente, que após o triste momento da sua morte iniciei o meu percurso consciente de aprendizagem e de trabalho da pedra bruta.


Autor: Abílio Mendes

Sem comentários: