Pretendo homenagear com este ato uma das primeiras pessoas que “vi” quando abri os olhos para o mundo profano e que me acompanhou durante toda a minha infância, o meu médico pediatra: Abílio Mendes. Era alguém com quem senti, desde muito novo, o que é ser Maçom. Alguém que contribuiu indiretamente para que Vos tenha hoje como Irmãos.
Durante a fase inicial de descoberta do mundo, em que tudo é novidade para uma criança, ir ao médico pode representar uma boa aventura. Primeiro, o passeio com a minha bisavó, sempre com a minha bisavó, até ao seu consultório na Av. António Augusto de Aguiar.
Depois,
a brincadeira com os outros meninos na sala de espera. E finalmente, a
consulta. Qual consulta qual quê! O momento em que dois adultos experientes
estavam à conversa e trocavam conselhos sobre a vida. O momento em que um
minorca como eu podia descobrir mais qualquer coisa sobre esse tal mundo
completamente desconhecido da vida. Que privilégio. Acredito que deveria passar
todo o tempo de olhos esbugalhados e de ouvidos bem abertos.
Abílio
Mendes já tinha sido pediatra do meu pai e tios. Afinal já havia uma ligação de
alguns anos à minha família. Era nosso amigo.
De
vez em quando lá havia nova encontro. Agora, que eu já tinha outra consciência,
aproveitava as consultas para ir conhecendo melhor a minha família e ia
naturalmente apercebendo-me do carácter e da beleza interior enquanto ser
humano do meu médico.
Era
alguém com imensa autodisciplina. As consultas começavam às 14:00 e a essa hora
abria-se a porta do consultório e lá aparecia ele de chapéu de feltro, com o
seu bigodinho característico e com o seu ar ternurento.
Era
uma pessoa que não apontava as fraquezas do ser humano, procurando ser um impulsionador
da mudança pela positiva. Apercebi-me que durante vários anos procurou
fazer
ver aos meus pais a importância de interromperem o consumo de drogas e de apostarem
num projeto de vida.
Não
escolheu a profissão pelo dinheiro. Movia-o o seu espírito de missão, o seu
gosto constante em ajudar o outro e a ajudar a formar as mulheres e os homens
do futuro. Havia inclusive casos de pessoas com menos posses que pagavam o que
podiam pelas consultas. Hoje, se cada um dos seus pequenos pacientes doutrora fechar
os olhos, sente por certo a sua enorme força presente.
Após
ter deixado as suas consultas ainda ia sabendo novidades. O meu antigo pediatra
recebia agora as visitas dos meus dois primos.
Anos
mais tarde em 1992, tinha eu 15 anos, soube pelos meus avós e bisavó da triste
notícia da sua morte. Na necrologia de um qualquer jornal era referido este
triste acontecimento e era ainda feita nota a algo para mim desconhecido até ao
momento. Estava anunciado que o seu corpo estaria em câmara ardente no Palácio Maçónico.
De
imediato comecei a pesquisar mais sobre o Palácio, sobre a sua localização,
sobre a Maçonaria, sobre o Grande Oriente Lusitano e claro, sobre Abílio
Mendes.
Na
altura, estudava no Conservatório Nacional, na Rua dos Caetanos. Lembro-me que
a passagem pela Rua do Grémio Lusitano tornou-se obrigatória. Talvez tivesse
sorte e a porta estivesse aberta. Num dos dias até vi os mosaicos brancos e
pretos do chão. Fiquei todo contente.
A
perceção que tinha de si e das suas qualidades, graças ao contacto direto que
tive com ele, veio a confirmar-se e a uma escala completamente diferente.
Afinal, Abílio Mendes tinha tido um papel interventivo na Sociedade Portuguesa.
Deixou marca.
A
maioria dos factos que passarei de seguida a descrever foram apoiados na publicação
intitulada “Abílio Mendes”, editada pela Comissão Municipal de Toponímia da
Câmara Municipal de Lisboa, em junho de 2010, por altura da inauguração da Rua
Abílio Mendes.
Abílio
Mendes nasceu em 1911 na Maia. Fazia parte de uma família simples e era o mais novo
de onze irmãos.
Estudou
medicina, primeiro no Porto e depois em Lisboa, para onde se muda após ter sido
referenciado pela imprensa como opositor ao Estado Novo.
Durante
o seu percurso académico teve uma intensa atividade no movimento associativo estudantil
como delegado de curso, membro da Direção da Associação de Estudantes e representante
da Faculdade de Medicina no Bloco Académico Antifascista. Durante este período
participou também ativamente nas revistas universitárias das duas Faculdades de
Medicina onde estudou.
Em
1933 foi iniciado Maçom. Conforme assumiu, foi uma nova fase na sua vida.
Conviveu com Eugénio Ferreira, Keil do Amaral, Ângelo Cortesão Casimiro,
Orlando Juncal, Fernando Santos Silva e Alexandre Babo, entre outros.
Mais
tarde veio a ter conhecimento de sua proposta de expulsão do curso pelo
Ministro da Educação, quando apenas lhe faltava uma cadeira para terminar o
curso. Valeu-lhe o apoio de alguns professores que convenceram o governante a
deixá-lo terminar o curso.
Embora
muitos dos seus companheiros das Lojas Maçónicas tenham entrado no Partido Comunista,
Abílio Mendes nunca aderiu aos ideais da revolução soviética, perfilhando antes
os ideais vindos da II Internacional. Fez parte da Acão Democrata e Social, do
MUD, da Acão Socialista Portuguesa e mais tarde foi um dos fundadores do
Partido Socialista. Já formado, concorreu por duas vezes aos Hospitais Civis de
Lisboa e sempre bem classificado foi excluído por decisão ministerial, o que o
impediu de entrar nos hospitais e na carreira universitária.
Obrigado
a fazer a sua formação de Pediatra em regime de voluntariado, foi
posteriormente convidado pelo professor de pediatria, Carlos Salazar de Sousa,
para seu “assistente livre“.
Mesmo
impedido pelo regime de entrar nos quadros dos hospitais, Abílio Mendes fez
parte do grupo que abriu o serviço de Pediatria do Hospital de Santa Maria,
onde dedicou muitos anos da sua vida profissional sem qualquer remuneração.
Conseguiu
ao longo dos anos através da persistência, sabedoria e brilhantismo angariar um
nome com grande reconhecimento nacional ao desenvolver a sua actividade como
médico pediatra no consultório, tendo este sido o único meio de subsistência
para si e para a sua família.
Aliou
a sua vida profissional a uma constante preocupação pelo estudo e pela leitura dedicado
sobretudo à Pedagogia e aos Filósofos do Socialismo.
Em
1982 aceitou o convite para Presidente da Liga Portuguesa dos Direitos Humanos
e em 1990 foi agraciado com a condecoração de Grande Oficial da Ordem da
Liberdade.
Foi
ainda, nos últimos anos da sua vida, membro efetivo do Supremo Conselho do Grau
33 do Rito Escocês Antigo e Aceite para Portugal.
Os
elogios fúnebres, foram proferidos pelo seu correligionário e amigo José
Magalhães e pelo então Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano – Maçonaria
Portuguesa, Ramon de La Féria, que recordou: “(...) Resistiu sempre contra o
obscurantismo, contra a tirania e a ditadura Fascista que durante quase
cinquenta anos tentou aniquilar o Grande Democrata e Republicano Doutor Abílio
da Costa Mendes, e apesar de todos os obstáculos, traições e perseguições da
PIDE conseguiu sobressair com tenacidade, vigor e real valor assumindo-se na
Sociedade Portuguesa como Personalidade impar não só Cívica como Cientifica,
como ainda fez sempre vingar o seu pendor Humanista e a Tolerância (...)”.
Referi,
no início deste trabalho, que com Abílio Mendes tive o privilégio de sentir e
ver o que é ser Maçom.
Acredito
hoje, de forma veemente, que após o triste momento da sua morte iniciei o meu percurso
consciente de aprendizagem e de trabalho da pedra bruta.
Autor: Abílio Mendes
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