sexta-feira, 14 de junho de 2024

O Papel da Maçonaria na Era Moderna

Antes de poder falar do papel da Maçonaria na era moderna, do seu presente e, mais em concreto, do seu futuro, aludo primeiro aos tempos mais imemoriais; a Ordem maçónica em Portugal remonta as suas origens muito possivelmente a 1727, pela mão do católico inglês Dugood, ou Dogut, que ergueu em Lisboa as colunas da Loja dos Herejes Mercadores. Nestes quase três séculos de existência, a Maçonaria está intimamente ligada à História de Portugal, tendo inspirado os grandes movimentos liberais, republicanos e democráticos no nosso país.

Mas não será justo falar de história da Maçonaria em Portugal sem relevar o período subsequente a 1869, data da criação do Grande Oriente Lusitano Unido, sob a égide do Grão-Mestre Conde de Paraty, e por onde passaram figuras tão ilustres como Elias Garcia, António Augusto de Aguiar, Bernardino Machado, mais tarde presidente da República, Sebastião de Magalhães Lima, Mouzinho da Silveira, Alexandre Herculano, Garrett, João de Deus, o cardeal Saraiva, patriarca de Lisboa, Machado Santos, Afonso Costa, António José de Almeida, António Maria da Silva, Miguel Bombarda, Sidónio Pais, Camilo Castelo Branco, Antero de Quental, Eça de Queirós, Rafael Bordalo Pinheiro, Egas Moniz (prémio Nobel da Medicina), Teixeira de Pascoais, Jaime Cortesão e Aquilino Ribeiro, entre muitos outros.

Mas com o intuito de inferir qual o verdadeiro papel do Maçon, tornemos por um breve instante às primícias do tudo; em termos etimológicos, a palavra Maçonaria deriva do francês “Maçonnerie”, que significa uma qualquer construção realizada por um qualquer pedreiro, o Maçon. A Maçonaria tem assim como propósito essencial, a edificação de algo e o Maçon, o também apelidado de pedreiro-livre, não é mais do que o obreiro dessa construção, o que trabalha para o erguer de um edifício.

Maçonaria significa, pois, construção; o Maçon edifica o seu futuro tornando-se um homem melhor e nesse trajeto a Maçonaria esclarece e aperfeiçoa a humanidade, tornando-a mais justa e perfeita. Este objeto está inscrito, como pedra basilar, nas constituições maçónicas do mundo moderno; a Constituição do Grande Oriente Lusitano de 1926, define a Maçonaria como “uma instituição essencialmente humanitarista, procurando realizar as melhores condições de vida social” enquanto que a Constituição de 1985 aponta como seu propósito o “aperfeiçoamento da Humanidade através da elevação moral e espiritual do indivíduo”. Diferem apenas as palavras, não o sentido.

Em suma, e citando em forma de homenagem o Nosso Irmão António Arnaud, a Maçonaria é uma ordem iniciática e ritualista, universal e fraterna, filosófica e progressista, baseada no livre-pensamento e na tolerância, que tem por objetivo o desenvolvimento espiritual do homem com vista à edificação de uma sociedade mais livre, justa e igualitária. Não aceita dogmas, combate todas as formas de opressão, luta contra o terror, a miséria, o sectarismo e a ignorância, combate a corrupção, enaltece o mérito, procura a união de todos os homens pela prática de uma moral universal e pelo respeito da personalidade de cada um, e considera o trabalho como um direito e um dever, valorizando igualmente o trabalho intelectual e o trabalho manual.

Apesar de todos estes predicados serem em tudo atuais, seleciono os dois que entendo melhor estarem alinhados com a inscrição que encima este texto; a Maçonaria como instituição universal e fraterna, isto é, a visão do mundo como uma verdadeira família, em que os homens se vejam verdadeiramente como irmãos, sem qualquer distinção de raça, sexo, religião, ideologia e condição social; e a Maçonaria como instituição progressista, no pressuposto de que é possível conceber um homem melhor, através da sua elevação espiritual, capaz de contribuir para o aperfeiçoamento da humanidade, encurtando desigualdades e reduzindo as injustiças sociais.

Mas, sendo a Maçonaria um espaço que se qualifica como de diálogo e de tolerância, de que forma deve, ou pode exercer a sua influência no mundo profano de modo a contribuir de forma resoluta para a fraternidade universal e para o progresso da humanidade? 

Vivendo num regime democrático, não serão os partidos o veículo privilegiado para realizar as transformações político-sociais que nós Maçons tanto almejamos? Na verdade, não, pois os partidos são em geral máquinas de poder, praticamente esvaziadas dos seus princípios programáticos e assolados por um carreirismo desenfreado e tentacular, que por vezes parece ameaçar e subverter o próprio ideal democrático.

Sendo a Ordem Maçónica um espaço de diálogo fraterno entre pessoas de todas as ideologias, esta pode e deve continuar a desempenhar por esta via, um papel de relevo no aperfeiçoamento das instituições, inclusive das instituições democráticas, insuflando-lhes os valores morais que são o apanágio de um verdadeiro Maçon.

Parece, assim inquestionável que a influência da Maçonaria no mundo profano não se exerce diretamente, pois não estabelece diretivas nem impõe qualquer tipo de intervenção concreta, mas apenas indiretamente, através do exemplo, da pedagogia e da influência individual dos seus membros nos locais onde exercem a sua atividade, sejam nos seus no empregos, partidos políticos, organizações cívicas e sociais. Não esqueçamos o início deste parágrafo… “parece inquestionável”. 

Não obstante, entendo que este preceito não desresponsabiliza a Maçonaria enquanto instituição; se não mais exemplos houvesse, vejamos como a Maçonaria foi, não só útil, mas como cardeal na abolição da escravatura, na reconstrução de uma sociedade destroçada pelo terramoto de 1755, na instauração da república em 1910, e mesmo na manutenção dos ideais maçónicos na sociedade durante a clandestinidade no período do estado novo. 

Ainda neste contexto, recordemos as organizações ditas para-maçónicas, existentes desde o século XVIII e fomentadas e dirigidas por Maçons, e que atuaram sobre múltiplos aspetos da atividade social, seja na cultura, na beneficência, na política, nos direitos do homem ou nas relações internacionais. 

Ao longo da sua vetusta história a Maçonaria em Portugal criou, dinamizou e deixou extinguir mais de 400 organizações para-maçónicas, das quais se enaltecem a Academia das Ciências, as Escolas Livres, a Voz do Operário os Jardins-Escolas João de Deus e das quais apenas perduram a Escola Oficina Nº 1 e o Internato de São João, ainda que de forma com tanto de modesto como de desvirtuada no seu objeto.

Retornando ao século XXI, e agora que está abolida a escravatura, reconstruída a metrópole, conquistada a liberdade, instaurada a república, escrita a constituição, reivindicada a igualdade, pelo menos na sua forma mais basilar, garantidos cuidados de saúde para todos, instituída a luta pela igualdade social, que contendas nos restam? Estaremos condenados ao esquecimento ou pior, a sermos apenas recordados nas parangonas das polémicas dos jornais? 

Por certo questionar-se-ão como se pode sequer propor a hipótese da extinção de uma instituição com um percurso de mais de dois séculos como o Grande Oriente Lusitano? Vetada à cessação por uma qualquer lei arbitrária de um qualquer governo? Fruto de desentendimentos internos que promovem a sua dissolução? Alvo de perseguições de uma Igreja velada por antigos ofícios? Saqueada por populares revoltosos?

Talvez num passado longínquo, mas não hoje; não, hoje a Maçonaria sucumbe por mérito de uma única palavra, utilidade; a Maçonaria falece porque deixa de ter um papel relevante para a sociedade, porque deixa de ter préstimo para os homens.

Prova disso será talvez o continuado despovoamento das fileiras do Grande Oriente Lusitano, seja sob o pretexto de cisões realizadas sob duvidosos subterfúgios, seja pelo abandono de Irmãos desalentados, seja pela pouca adesão de novos Irmãos.

Seguramente que todos os Ir que hoje coabitam comigo neste templo têm no seu íntimo a honra e o privilégio que é ser Maçon, uma qualidade que não está ao alcance de todos. Mas se todo o homem livre e de bons costumes pode almejar juntar-se à nossa Ordem, seja por sua iniciativa ou por convite, porque não temos à nossa ombreira essa turba de homens de moral irrepreensível, que por certo os haverá?

É desses mesmos homens, aqueles que mais teriam para oferecer à sociedade, que é recorrente ouvir o discurso da falta de disponibilidade, da vergonha de represálias ou até mesmo da dificuldade em compreender a nossa utilidade na sociedade moderna.

E se dissertamos sobre o futuro, porque não são os mais jovens mais diligentes na sua aproximação à Maçonaria, da mesma forma que se entrincheiram nos meandros da política e de outras organizações apartidárias?

Não será este um claro prenuncio que algo deveria mudar?

Há um vocábulo que ouço recorrentemente no seio do Grande Oriente Lusitano e que me atemoriza tanto quanto decepciona; recrutamento. A Nossa Ordem não tem, não deve e não pode caminhar sobre a égide de crescer através da angariação de membros, como se de uma vulgar coletividade se tratasse. A Maçonaria é tudo menos vulgar; e sim, tem de crescer, não só em número como também, e perdoem-me a frontalidade, nas qualidades morais desses novos Irmão. A Maçonaria tem de florescer cativando, conquistado, fascinando, envolvendo, empolgando, e isso não se realiza com discrição, mas pelo contrário com presença, visibilidade, participação e intervenção social.

Se é verdade que somos por excelência uma organização discreta e nos reservamos o conhecimento de certas práticas e saberes, é também verdade que isto não pode ser sinónimo de displicência; não podemos ficar à margem da sociedade como se dela não fizéssemos parte, não podemos olhar o mundo com tanto desprendimento; não é esse o propósito da Maçonaria; não é esse o propósito de ser Maçon.

habitamos numa era despojada de valores ético-morais, dominada por um capitalismo infrene, sem alma nem regras, que enredou o homem em novas e mais sofisticadas servidões, privando-o da liberdade e da igualdade; urge pois a nossa intervenção na sociedade.

Nós, Maçons, somos muito mais do que carregadores de paramentos, anéis, luvas e símbolos; somos os filhos da viúva, os eternos aprendizes; temos e mantemos viva nas nossas mentes, esta condição, este estado que é perene e que constitui o nosso próprio ser, como ser fraterno.

Como podemos então impugnar tal desígnio?

Em primo e lugar de destaque estará sempre o Grande Oriente Lusitano, pois enquanto instituição jamais se poderá desresponsabilizar do seu propósito e do seu dever para com a humanidade, independentemente do subterfúgio, inclusive o da circunspeção. Repliquemos algumas das sugestões alvitradas por esta mesma Loja no XV Congresso do GOL:

- Reunir as obediências maçónicas seja por meio de tratados de amizade, de seminários, de conferências ou de simples encontros, para debater os temas prementes da sociedade e gerar as diretrizes para a ação no mundo profano.

- Exortar as lojas ao debate sobre as já referidas problemáticas da sociedade, procurando que as conclusões provenientes dessas demandas se traduzam em ações concretas.

- Fomentar uma imagem de maior transparência e abertura para o exterior, incentivando também a sociedade civil a participar ativamente em algumas das iniciativas de discussão organizadas.

- Reabilitar o nosso património, tornando-o útil à sociedade, seja através de novas instituições para-maçónicas que atuem na área do apoio social ou da educação, seja através da sua alocação para fins de beneficência.

- Revitalizar a Escola Oficina Nº1, reatribuindo-lhe o seu verdadeiro papel na educação em Portugal, assim como o recuperar do verdadeiro sentido e rumo do Internato de São João no apoio aos órfãos, crianças e jovens desamparados.

- Não mais expectar pela exposição desregrada na imprensa dos assuntos internos o Grande Oriente Lusitano mas, ao invés, criar uma figura que articule e potencie as comunicações com o mundo profano, em continuidade uma política de maior abertura ao exterior e de ensejo de uma contribuição palpável para o progresso da sociedade em particular e da humanidade em geral.

Ainda antes de voltar ao papel do Maçon enquanto indivíduo, cabe enfatizar o dever das lojas, cujo ofício é não só congregador e organizativo, mas também orientativo. A loja é tida como a união dos Maçons, e é precisamente quando estes se reúnem num qualquer templo para empreender os trabalhos maçónicos, que esta resplandece e enaltece em valor e significado.

A Maçonaria, quando bem compreendida, educa, instrói e orienta, contribuindo para elevar o nível moral e intelectual da sociedade, na prossecução dos trabalhos meditados dentro do templo maçónico. Este trabalho intelectual das oficinas deverá pôr em atividade os irmãos que tenham vocação para as letras, ciências, artes, etc., estimulando-os não só ao aprofundar desse saber como também à sua difusão. 

E nesse sentido, para que os que não sabem possam aprender, e os que sabem possam ensinar, que todos os irmãos devem participar nos trabalhos da sua loja, sem falhas, sem mácula, sem desânimo; a loja não pode sentir-se abandonada pelos seus obreiros, sob pena de se tornar insignificante e inútil.

Mas o estar em loja é algo mais do que cumprir os desígnios do ritual da sessão; é no interior desta célula orgânica, deste cérebro pensante, que as mentes se devem agitar, que a inquietude deve reinar, que a vivacidade deve prevalecer; o Maçon deve honrar-se a si e a todos os irmãos que já passaram pela sua loja nunca se remetendo ao silêncio, à inépcia, à prostração, à resignação, à sujeição. 

Por vezes penso se o benefício de já não estarmos sujeitos aos perigos do passado não se arrisca a tornar-se no pior dos desígnios, conduzindo muitos irmãos a um conformismo desolador. A tarefa maçónica contemporânea requer por isso um trabalho mais metódico e constante do que em épocas ancestrais bem mais conturbadas; é mais fácil treinar combatentes para derrubar um qualquer regime absolutista do que instruir obreiros para as conquistas por meio do discurso do conhecimento.

E eis pois que regressamos ao elo mais importante desta cadeia, o Maçon. E sobre o próprio, pronunciamos em Maçonaria que alguém que foi iniciado, nunca perde a sua qualidade de Maçon; ainda que seja forçado a concordar com o estrito das palavras, questiono a sua latitude… pode o crente ser católico se não praticar, tão só e apenas por ser batizado? Pode o mestre manter seu título, sem nunca erguer nenhuma obra, somente por ter escritos num papiro? E o Maçon, pode ser Maçon se não praticar as virtudes que tanto enaltece, apenas por ter sido iniciado?

Só desta forma, afirmando um ideal moral de solidariedade e justiça, podemos ambicionar em algum momento poder mudar o homem e a sociedade; e sim, acredito que apenas um homem com um simples gesto pode mudar o mundo… e se ao invés de apenas um só indivíduo, formos numerosos Maçons, indubitavelmente que, sob o cunho das virtudes que nos ligam, sob a égide da sabedoria, da força e da beleza que comungamos, como elos dessa cadeia que nos une pelo amor fraterno, que seremos verdadeiramente capazes de transfigurar a humanidade.

Vide comigo as palavras de Álvaro de Campos, em dois trechos do seu poema Tabacaria, e talvez apreendendo o caminho que não devemos trilhar, saibamos que rumo seguir, que Maçon ambicionar:

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

Façamos pois propósitos, tracemos objetivos, esquadrinhemos intenções, sejamos ambiciosos e, acima de tudo, sejamos constantemente irrequietos, obstinadamente irreverentes, incansavelmente inconsoláveis… apenas porque, só assim se muda o Mundo.


Autor: Álvaro de Campos

quarta-feira, 29 de maio de 2024

O Paradoxo da Tolerância em Democracia: que limites

Como nota introdutória, quero referir que considero o tema em análise deveras frutífero, e até complexo, o que talvez explique a razão pela qual tenha sido muito explorado aqui nas nossas sessões. E, por conseguinte, cabiam certamente em cada um dos segmentos desta pequena reflexão várias pranchas autónomas. Porém, para que tudo caiba numa só, passarei, dentro do possível, a sumariar.

Ora vejamos: O conceito de Democracia teve a sua origem na palavra grega demokratia, composta por demo - “povo” - e kratos - que se traduz como “poder” ou “governo”. Neste complexo sistema político, o povo fica adstrito à participação política que no fundo é o que motiva e justifica o próprio poder político. Democracia, assim, representa e pretende alcançar uma “unidade plural” - o que por si só, é claramente paradoxal. Representa uma unidade, comum e uniforme, que resulta da pluralidade de consciências e opiniões. São a diferença e a individualidade a produzir a semelhança e o comum. 

O conceito de Democracia, como sistema político, surgiu por volta do Séc. V a.C., na cidade de Atenas. Representava uma alternativa à tirania, conceito definido por Platão e Sócrates como sendo a marca da ilegalidade, ou seja, a violação das leis e regras instituídas que conduziam à quebra de legitimidade para governar.

Não obstante, Platão, na sua obra República, é muito crítico do modelo de democracia ateniense da época, por não ser um regime democrático na sua plenitude de direitos e deveres, uma vez que não era plena, pois era vedado às mulheres, aos metecos (os estrangeiros) e ainda aos escravos o direito a eleger e a ser eleito. Platão também já antevia a democracia como permeável à corrupção, tal como a vemos na democracia moderna.

Platão considerava este modelo “o governo do povo”, mas usava a palavra “povo” em sentido pejorativo, pois para ele o povo era facilmente influenciado por características irrelevantes, como a aparência dos candidatos, e preconizava que só os filósofos, por terem uma compreensão mais profunda da realidade do que as pessoas comuns, estavam preparados para governar.

Platão dizia que a democracia era uma forma corrupta de governo. O idealismo platónico era muito acentuado no tocante ao modelo político de democracia que defendia e que se baseava na ideia de que só os filósofos, porque falam a verdade e amam a sabedoria, estavam preparados para governar.

A ideologia platónica convoca o perigo da democracia ateniense pelo facto de esta admitir opiniões e paixões desprovidas de saber filosófico e de relativizar a verdade e vencer pelo argumento e pelas paixões, tal como os que se limitam a dar opiniões. A estes Platão chamava Sufistas, e aos que querem convencer pelo argumento e que não se preocupam com a verdade ou com o saber e aos que opinam para convencer as outras pessoas e que amam apenas a opinião, não possuindo o conhecimento e o saber dos filósofos, para Platão são os Filodóxos.

Não obstante os mais de dois mil anos que que nos separam, e as idiossincrasias respeitantes à capacidade de eleger e ser eleito muito restrita, Platão tinha uma visão muito crítica e muito próxima do modelo de democracia moderna, pois já antevia os perigos da corrupção e da disseminação através de fake news, tal como hoje somos confrontados no nosso quotidiano.

Aqui chegados urge perguntar. Apesar dos vícios apontados por Platão relativamente ao modelo de democracia ateniense e que estão patentes cada vez mais na nossa Democracia Moderna, haverá um outro melhor e que mais afirme direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.? Infelizmente, não existe outro melhor, como Churchill muito bem sintetizou numa só frase. Ora toda a filosofia pós-platónica liga a democracia, no desenvolvimento do seu conceito, à tolerância.

Convém, no entanto, que comecemos por definir o termo “tolerância”, que deriva do latim tolerate, que significa “suportar” ou “aceitar”, e cuja evolução recriou um conceito diverso, complexo e, por vezes, contraditório.

Tolerância é o ato de agir com condescendência e aceitação perante algo que não se quer, algo que não se compreende ou algo que não se pode impedir, mas que, ainda assim, estamos dispostos a aceitar.

A falta de tolerância leva às guerras. No entanto, e ao mesmo tempo, não devemos - nem podemos – tolerar as guerras. A falta de tolerância leva à discórdia, e ainda assim, é da discussão civilizada que nasce o consenso e o entendimento. Devemos defender tolerância a mais ou tolerância a menos? No fim, de que vale realmente a tolerância, se esta constitui um paradoxo em que parece ser a semente do entendimento e simultaneamente do próprio conflito?

Os limites da tolerância parecem estar encerrados na própria tolerância. No fundo, é como se alguém nos pedisse para aceitarmos de forma cega e superficial a sua opinião e ainda assim, sabendo que não o devemos fazer, aceitássemos fazê-lo. É uma imposição intelectual ingrata e desconfortável, porque sabemos quem somos, ou, pelo menos, o que queremos, e, no entanto, existe aquele momento em que temos de abrir mão das nossas crenças e ideias, para tolerar umas novas, por vezes completamente alheias e opostas às antigas. Não se trata de integrar, mas, uma vez mais, tolerar. E isto, veja-se, por nossa própria escolha livre.

Não estamos a discutir compaixão, nem tampouco entendimento ou reconsideração. Estamos a falar de aceitar pelo mero facto de aceitar. Por exemplo: sabemos que a Liberdade - tema que nos é tão caro - é um valor que deve ser respeitado ao mais alto e íntimo nível, mas ainda assim sabemos que não é um valor absoluto, e temos consciência dos limites em que a mesma se contém: “a minha liberdade termina onde a liberdade do outro começa”. Ora a tolerância também não pode ir muito mais além. Não é aceitável algo como: “eu tolero o que tomas como absoluto, apesar de não concordar, aceitar ou acreditar nisso”. Aqui, a Tolerância e o acto de tolerar começa a parecer extremista, forçado e desnecessário.

Tolerância começa a parecer uma imposição idealista sem uma vontade de verdadeiro conhecimento e compreensão. Tal conceito - ou ideal - não pode manchar os nossos objetivos e visões individuais e para a própria humanidade. Sabemos, todos nós, onde estamos e para onde queremos e ambicionamos ir. A tolerância tem de ser contida - talvez corrigida – e quando ultrapassar aqueles limites tem de ser rejeitada pura e simplesmente. A tolerância é assim um pilar fundamental da capacidade de uma sociedade global para coexistir harmoniosamente, respeitando as diversas crenças e promovendo a compreensão mútua: esta afirmação provém da Declaração de Princípios sobre a tolerância aprovada pela UNESCO EM 1995, e é a forma correcta de definir o correcto dever de tolerância.

Portanto a tolerância é como a liberdade, que não é um valor absoluto, mas relativo, isto é, com limites (eu não posso tolerar aquilo que viola os meus valores mais perenes), e é útil no sentido em que eu, aceitando a priori um ponto de vista alheio, posso daí partir para a sua refutação.

Isto tem toda a aplicação no trabalho maçónico. Não adianta contrariar logo o meu “irmão” porque me expôs uma conclusão para mim inaceitável. Tenho, com toda a tolerância, de ouvir o caminho que o levou a essa conclusão, para refutar o preciso ponto onde divergimos.

Tal método é essencial para o trabalho em Loja, e este conceito de tolerância é seguramente aquele a que se referem todos os catecismos maçónicos, quando – frequentemente – usam o termo. A discussão em Loja é profícua até ao ponto onde os Irmãos concordam… em discordar. Entendo que em Loja não é admissível o caminho: “- Não discuto contigo porque não estás de acordo com o que eu digo ou penso, logo não és igual a mim.” A diversidade e a complementaridade são a riqueza de uma Loja maçónica, que não pode ser escamoteada.

E isto é tanto a riqueza de nós, maçons, quanto é certo que, se este fosse o caminho do fórum político-social profano, o método de trabalho de quem quer alcançar o poder (económico, político, social), o conceito de democracia andava mais próximo, e não estava sujeito às críticas, de Platão. Mas nesse caso - lá está - estávamos no mundo ideal que ele preconizava: só os que falam a verdade e amam a sabedoria devem governar.

Não vos trouxe estas reflexões para resolver o paradoxo, porque não sei fazê-lo. Trata-se, apenas, de o apresentar enquanto o nó górdio das sociedades dos nossos dias, para suscitar uma reflexão.

Autor: Bocage

segunda-feira, 13 de maio de 2024

A Cadeia de União

Regressado de tempos difíceis e renovado em sentimentos e emoções neste retorno tão desejado, trago a este templo uma breve reflexão pessoal sobre a história, significados e importância da Cadeia de União. 

Esta organização circular tão carregada de simbolismo, tanto evidencia simplicidade e inocência como se revela como a mais complexa e abrangente conexão universal, numa prática que suscita elevados sentimentos de fraternidade e forte ligação.

A “Cadeia de União” representa, na sua singela simplicidade, uma figura complexa, não só em termos de organização da sua configuração, como também no que diz respeito ao seu sentido simbólico. Para além do rito da “Cadeia de União” corresponder à operacionalização humana do conceito de entrelaçar, é possível, também, a partir dela intuir sobre a ideia de cadeia, numa percepção de fortaleza, de conjugação perfeita de pés em esquadro, troncos e mãos, numa dinâmica comunicacional que, em muito, ultrapassa o conceito e o sentido de União. É significativamente mais profunda que a comunicação entre irmãos, seja por meio de oração, seja pela transmissão da palavra semestral.

Mas, a Cadeia, que é de facto de União, representa, na unicidade da sua forma e importância da sua mensagem, uma ideia de fraternidade, de coesão, de ligação e conexão harmoniosa, que se evidencia em tudo o que é físico e espiritual, numa coreografia da tradição maçónica.

A primeira referência à Cadeia de União remonta ao ano de 1696 e é descrita nos manuscritos dos arquivos de Edimburgo, como uma estrutura circular, organizada, que se recria, como hoje ocorre, no final dos trabalhos. Digamos que, com o passar do tempo, a cadeia de união ampliou sua presença e, a partir do século XIX, tornou-se num ritual frequentemente realizado no âmbito do encontro maçónico. 

A Cadeia de União constitui-se um grande momento de intimidade cúmplice e de proximidade assumida. 

É um momento em que todos os irmãos dão as mãos, formando um círculo e olhando para o centro da loja. Tudo é simbolicamente importante nesse momento união: a maneira de dar as mãos, a formação do círculo, o toque dos pés, as palavras ditas pelo Venerável Mestre.  

Alguns autores, (como Irène Mainguy) referem-se, até, a um fluxo de energia circulando por todos os maçons ligados na cadeia, num vínculo que une irmãos, muito para além do próprio tempo e espaço.

Pela Cadeia de União, corporiza-se aquilo que é a unidade da corrente através da multiplicidade dos seus elos. Mas outras conotações podem ser apontadas na representação da Cadeia. 

Ao se organizarem em círculo, os maçons definem, claramente, a sua cadeia de união como algo que representa o grande elo, a grandeza, a eficiência e o poder do sagrado. A Cadeia torna-nos elos de Força, Beleza, Sabedoria, Partilha e União, que não só liga os Irmãos entre si, como liga os Homens ao Grande Construtor do Universo.

Na verdade, a Cadeia de União pode ser considerada como uma expressão superior do Amor Fraterno, baseado no amor tremendo, invencível, avassalador e puro de Deus. As mãos nuas dos Irmãos, ligadas naquele momento, falam da Honestidade dos corações e, a sua união representada pela comunhão que se interpreta pela sua posição, invoca os valores da Fraternidade. A Cadeia de União é exponencialmente mais expressiva e simbólica do que toda a mímica de entrelaçar os braços, do aperto de mãos e do toque dos pés em esquadro.

Através da Cadeia de União, o Maçon conecta-se com os seus Irmãos! É uma prática de partilha de sentimentos e pensamentos, que ocorre, concretamente, em presença de todos, mas que alcança todos os que, por uma razão inopinada ou fragilidade momentânea, possam estar ausentes do templo. 

A representação formal da Cadeia de União remete-nos, igualmente, para os deveres, princípios e virtudes próprios do “Ser Pessoa” e do “Ser Maçon”. 

Todos os Irmãos, unidos na expressão coreográfica da ligação existente entre si, alinham-se defendendo e fazendo cumprir um ideal de atitude, comportamento e orientação que nos assegura a capacidade de:

• Ser bondoso, amigo e cordial para com todos.

• Ser empático e disponível para todo o Irmão que precise de ajuda. 

• Acolher, apoiar e defender os Irmãos nas suas falhas ou fragilidades, revelando capacidade superior para compreender os factos e os contextos individuais.

• Ser próximo, gentil e cuidadoso em conteúdo e forma, em situações de correção, sugestão ou orientação para a melhoria ou, até mesmo, qualquer recomendação sobre alteração de comportamentos.

• Assegurar-se de uma atitude permanente e proativa de bondade para com todos outros, preocupando-se em manter uma postura bondosa, amistosa, coerente e justa em todas as situações.

No fundo, a Cadeia de União, significa e valida o quão inquebrável é a ligação entre os Irmãos, unidos pelos laços da Fraternidade.

Sem aquele momento de união universal, ninguém abandona o local. A Cadeia de União permite uma despedida em harmonia, uma separação entre Irmãos, na certeza de que todos estão felizes e realizados, que todos se sentem e são respeitados como seres únicos e individuais, mas também imensamente pertença de um conjunto uno e inquebrável, como é a ligação e a União Fraterna, de harmonia e paz interior que reina entre os Irmãos. Nesta perspectiva, podemos até afirmar, que a Cadeia de União formada dentro do Templo e simbolicamente associada a uma ideia de União Fraterna é, realmente e em si própria, a representação da própria Fraternidade.      

Conceição (2002) refere-nos de forma categórica (e cito) que “Individualmente somos fracos, isolados e falíveis, contudo, quando o Venerável, antes do encerramento dos trabalhos, evoca a união de todos os Maçons (…) há um sopro mágico que se introduz no Templo”. 

De facto, a Cadeia de União é o corolário obrigatório das sessões de trabalho! Momento alto de simbolismo e expressão mítica. Há uma agregação das forças psíquicas presentes, focadas no mesmo objetivo e há, assumidamente, uma energia que esta cadeia pode armazenar que passa ao longo da cadeia por todos os seus integrantes.

A Cadeia de União é, também, uma cadeia de defesa!!! Juntos somos mais fortes! E, mantendo-nos juntos, conseguiremos ser mais capazes, competentes e impenetráveis face às influências nefastas do exterior. Por outro lado, a conexão que se manifesta naquele momento, dá significado às palavras que possam ser proferidas, à oração que se murmure, à referência de compaixão que se anote e, ainda, à invocação proferida pelo Venerável, relativa a eventuais preocupações e aspirações gerais e particulares. 

Nenhum Maçom pode (ou deve) integrar a Cadeia de União se carregar em si, o peso de sentimentos negativos, se trouxer o coração carregado de rancor, inveja, raiva, ira, egoísmo ou qualquer outro sentimento maléfico. Da Fraternidade e União, resultam espíritos conectados! E também uma energia benfeitora, humana e criativa, sempre construtora do Bem

Autor: Noah 

quinta-feira, 25 de abril de 2024

O Cinquentenário do 25 de Abril

Discorrer sobre o 25 de Abril é falar de liberdade, enquanto expressão das nossas aspirações, da persecução dos nossos sonhos e da esperança de podermos viver conforme os nossos valores. A liberdade, pedra angular daquela que é a nossa divisa, não só fundamenta as sociedades justas e equitativas, como a sua privação torna totalmente pueril a igualdade e a fraternidade; a verdadeira igualdade só é alcançável quando todos experienciamos liberdade de pensamento e de oportunidades, e a fraternidade apenas floresce quando temos a liberdade de nos unir, de plena vontade, sem medo e sem coerção. 

Falar em liberdade é também recordar a história da Loja Estrela d’Alva; tendo erguido colunas no início do século passado, a sua narrativa cruza momentos marcantes da nossa história, onde se incluem as décadas de ditadura que culminam no 25 de abril de 1974, cujo cinquentenário hoje celebramos.

É neste contexto que vos trago algumas palavras condignas com esta solenidade; palavras de difícil traçado, por evocarem um passado que, pela minha juventude não experienciei, mas que vive no meu coração e no meu quotidiano, e se sustenta no exemplo de vida dos inúmeros Irmãos que hoje recordamos e homenageamos. É um recorte dessas memórias que vos ofereço hoje, para que as histórias de vida dos Irmãos que lutaram incansável e altruisticamente em prol da liberdade, não se percam nas páginas estéreis dos livros e permaneçam sempre vivas nos nossos corações.

Dos inúmeros Irmãos vivenciaram esses tempos, há dois nomes que hoje entendi relevar, pelo papel que desempenharam neste hiato democrático, os Nossos Irmãos Raul Wheelhouse e José Joaquim Pascoal Gomes.

Recuando ao turbulento ínterim do início da década de 30, com o Palácio Maçónico encerrado e os Maçons a viverem em semiclandestinidade, Raul Wheelhouse, médico e cirurgião no Sardoal, enquanto Venerável da Loja Estrela d’Alva, desenvolve profusa atividade Maçónica dentro e fora da Loja, com uma importante participação na fundação dos Triângulos do Sardoal e do Entroncamento. 

Republicano convicto, e fervoroso ativista político, enquanto opositor à ditadura militar vigente, é mantido sobre apertada vigilância pela polícia de defesa política e social o que conclui na sua demissão forçada de médico do partido municipal e na sua posterior prisão em 11 de março de 1933; a sua libertação precoce, serve apenas de preludio para o seu julgamento e condenação ao degredo, no forte de São João Batista em Angra do Heroísmo.

Em 1935, com a Maçonaria vetada à proibição e com o Palácio Maçónico usurpado pela Legião Portuguesa, Raul Wheelhouse regressa do exílio e retoma o seu Trabalho Maçónico como Venerável, cargo que desempenha até 1944. Manteve também durante inúmeros anos consultório na sua casa do Sardoal, sendo ainda hoje recordada a sua grande competência, altruísmo e generosidade para com aqueles que não tinham capacidade económica para pagar os honorários que lhe cabiam, reduzindo-os ou deles abdicando.

Em 1945, e com o fim da segunda grande guerra, Salazar anuncia a dissolução da Assembleia Nacional e a convocação de colégios eleitorais, com o intuito de mostrar no plano internacional o suposto carácter democrático do regime; aproveitando esta aparente abertura, um grupo de republicanos, do qual faz parte Raul Wheelhouse, reúne a 8 de outubro de 1945 no Centro Escolar Republicano Almirante Reis, plenário que mais tarde resulta na criação do Movimento de Unidade Democrática, MUD.

É nesse mesmo ano que primeiramente ouvimos falar de José Joaquim Pascoal Gomes, à época sem qualquer filiação Maçónica, mas cuja recusa persistente em subscrever qualquer lista de apoio ao governo de Salazar, o faz abandonar o serviço publico e filiar-se também no MUD. No ano subsequente, o Partido Socialista Português reorganiza-se sob a designação de Partido Socialista - Secção Portuguesa da Internacional Operária (PSP-SPIO), e vê Raul Wheelhouse ingressar como presidente da sua comissão executiva, cargo que exerce até 1948.

Viviam-se tempos que exigiam aos Maçons cuidado nos métodos e frugalidade na matéria escrita, e terá sido nesse período que Raul Wheelhouse não só exerce diversos cargos no Grande Oriente Lusitano Unido, como facilita o seu domicílio para a realização de reuniões dos distintos órgãos da Obediência. A 23 de outubro de 1947 é iniciado na Loja Estrela d’Alva, José Joaquim Pascoal Gomes, à data composta por cerca de trinta Obreiros.

Em 1949, Raul Wheelhouse e Pascoal Gomes tomam parte ativa na candidatura à presidência da república do general Norton de Matos; em 1958, enquanto apoiante de Arlindo Vicente, Pascoal Gomes é detido pela PIDE e mantido recluso em Caxias. Nesse mesmo ano, Raul Wheelhouse participa na candidatura do general Humberto Delgado à presidência, dando-lhe posterior guarida na sua casa do Sardoal aquando da sua perseguição pela polícia política, pouco antes de este ser forçado ao exílio.

Liberto do seu cárcere, os tempos obrigam a que Pascoal Gomes desempenhe uma multiplicidade de cargos em Loja; e é enquanto intendente dos banquetes, que assume a incumbência de assegurar a realização das reuniões de Loja, por à época estas tomarem frequentemente, e por precaução, a forma de um almoço mensal sob um qualquer pretexto profano. Esse desassossego, a bem do anonimato, conduz os Irmãos do Restelo a Linda-a-Velha, passando pelo estabelecimento do Garrido Alfaiate nos Restauradores, pelo Restaurante da Quinta de S. Vicente, pela Pastelaria Ferrari, e mesmo pelo domicílio de Raul Wheelhouse, no Sardoal.

Nesse tempo e geografia, Pascoal Gomes recorda três figuras notáveis que refere terem marcado a sua vida profana e Maçónica; o Dr. Ramon de La Féria, o Dr. Luís Rebordão, à época Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano Unido e o Dr. Luís Dias Amado, e enaltece ainda as relações de grande proximidade entre a sua Loja Estrela d’Alva e as Lojas Pureza, Simpatia e União e Liberdade. A partir de 1966 passa a integrar os órgãos do, à época denominado Asilo de S. João, até que entre 1970 e 1973 passa a membro efetivo da respetiva direção, período coincidente com a transição para a atual denominação, de Internato de São João.

Em torno de 1972, e ainda que com profundas reservas do regime, Raul Wheelhouse é finalmente autorizado a voltar a exercer a Medicina no serviço público, integrando a Casa do Povo do Sardoal.

Chegados a 25 de abril de 1974, Pascoal Gomes encontra-se afastado dos Trabalhos de Loja, por estar em tratamento no estrangeiro para uma grave enfermidade, e viu-se privado de testemunhar, o que o próprio denomina de “a gloriosa manhã da libertação da nossa Pátria amada”, ausência que muito o marcou.

Já em plena liberdade, a 30 de novembro de 1974 é formalmente entregue no Grande Oriente Lusitano o quadro da Loja Estrela d’Alva com 14 obreiros e a 11 de Dezembro desse mesmo ano realiza-se neste Palácio a primeira Sessão em plena liberdade.

Com o regresso dos Trabalhos Maçónicos à luz do dia, Pascoal Gomes participa ativamente na reconstrução deste Palácio, contribuindo com inúmeros recursos pessoais e materiais. Parte para Oriente Eterno em 18 de janeiro de 2000, como homem livre.

Não vivemos de memórias passadas, mas honramos o nosso passado e neste dia em que evocamos os 50 anos do 25 de abril, sobrelevo que cabe a nós maçons, mais do que nunca, a árdua, mas nobre tarefa de perpetuar esse legado, recordando hoje e sempre todos os que lutaram e continuam a lutar prol da liberdade.

Autor: Álvaro de Campos

sábado, 23 de março de 2024

A Espiritualidade e o Sentido da Vida

A busca pelo sentido da vida é uma questão filosófica que tem intrigado os pensadores ao longo da história. Na atualidade, a espiritualidade se apresenta como um caminho de autoconhecimento e transformação interior que permite ao ser humano transcender a sua natureza limitada e encontrar um sentido mais profundo na vida.

No entanto, a espiritualidade enfrenta desafios significativos. O mundo moderno é marcado pela fragmentação, pela superficialidade e pelo individualismo. Muitas pessoas vivem em um estado de desconexão, sentindo-se isoladas e desorientadas em relação ao mundo e a si mesmas. Nesse contexto, a espiritualidade pode ser vista como uma forma de reconectar com algo maior e de encontrar um propósito mais elevado na vida.

Um dos grandes pensadores que refletiu sobre o sentido da vida foi o psiquiatra austríaco Viktor Frankl. Ele afirmou que "O sentido da vida é encontrar o seu propósito. O homem deve ter uma razão para viver e um propósito a realizar". Essa afirmação de Frankl é muito relevante para a espiritualidade na atualidade, que busca encontrar um sentido mais profundo na vida e um propósito maior para a existência.

Mas como podemos buscar a espiritualidade em um mundo tão frenético e individualista? 
Uma das tendências para o futuro é a busca por práticas espirituais que possam ser realizadas no cotidiano, de forma simples e acessível. A meditação, por exemplo, é uma prática que vem ganhando espaço e pode ser realizada em poucos minutos por dia, em qualquer lugar. Além disso, a procura por valores como a empatia, a compaixão e a solidariedade, pode ser vista como uma forma de cultivar a espiritualidade no cotidiano.

Outra tendência é a busca por uma espiritualidade inclusiva, que respeite as diferentes tradições espirituais e as diferentes formas de buscar o sentido da vida. Essa abordagem inclusiva e aberta pode ser uma forma de encontrar um senso de unidade e de propósito comum, em um mundo cada vez mais complexo e interconectado.

Além disso, a espiritualidade pode ser vista como uma forma de enfrentar os desafios éticos e morais que enfrentamos hoje. O mundo moderno é marcado pela complexidade e pelas contradições, com avanços tecnológicos que trazem benefícios inegáveis, mas também desafios éticos e morais. A espiritualidade pode ser uma fonte de orientação nesse contexto, ajudando as pessoas a tomar decisões mais éticas e a construir uma sociedade mais justa e equilibrada.

No entanto, para que a espiritualidade possa desempenhar esse papel, é preciso que ela esteja presente na vida cotidiana das pessoas e que seja acessível a todos. Isso significa que deve ser vista como algo que pode ser vivenciado em qualquer contexto, e não apenas em momentos de culto ou de prática religiosa, deve ser vista como algo que pode ser conseguido por pessoas de diferentes origens e culturas, sem discriminação ou exclusão.

Sinto que a espiritualidade tem um papel fundamental na atualidade, ajudando as pessoas a encontrar um sentido mais profundo na vida e a enfrentar os desafios éticos e morais do mundo moderno. Para que a espiritualidade possa cumprir esse papel, é preciso que ela seja inclusiva, aberta e acessível a todos, e que esteja presente na vida cotidiana das pessoas. 

Como afirmou Viktor Frankl, o sentido da vida é encontrar o seu propósito, e a espiritualidade pode ser um caminho para alcançar esse objetivo.
É importante que cultivemos a espiritualidade em nossas vidas, buscando práticas que nos possam ajudar a reconectar com algo maior e a encontrar um propósito mais elevado. A meditação, a reflexão e a busca por valores como a empatia e a solidariedade podem ser formas de cultivar a espiritualidade no cotidiano. Além disso, é importante que sejamos críticos e reflexivos em relação aos valores e práticas que não contribuem para a construção de um mundo mais justo e equilibrado.

A busca pela espiritualidade não deve ser vista como algo que nos afasta do mundo, mas sim como uma forma de nos conectarmos com ele de forma mais profunda e significativa. Pode ser uma fonte de esperança e de inspiração em um mundo que muitas vezes parece caótico e sem sentido. Ela nos pode ajudar a encontrar um propósito mais elevado na vida e a construir um mundo mais justo e equilibrado para todos.

Portanto, procuremos práticas e valores que nos permitam encontrar um sentido mais profundo na vida e contribuir para a construção de um mundo melhor. Citando mais uma vez Viktor Frankl, "O que dá sentido à vida é a responsabilidade. Em cada situação, temos uma responsabilidade a cumprir, seja para com nós mesmos, seja para com o mundo". Que possamos assumir essa responsabilidade e buscar a espiritualidade como um caminho para encontrar o nosso propósito e contribuir para um mundo mais justo e equilibrado.

Autor: Viktor Frankl

sábado, 17 de fevereiro de 2024

A Tolerência vs a Liberdade vs o Status Quo

O tema da tolerância tem sido um tema central na nossa sociedade, embora nem sempre pelas razões certas, pois parece que o que se procura é, mais do que obter realmente uma aceitação das diferenças ou do direito à diferença, uma imposição administrativa dessas diferenças ou desses “direitos”.

Vale a pena começar por perceber qual é, em língua portuguesa, o significado, ou significados, da palavra Tolerância. Retirando então os diversos significados relacionados com a Medicina ou a Engenharia, temos então que a Tolerância pode ser:

- ato de admitir sem reação agressiva ou defensiva;

- atitude que consiste em deixar aos outros a liberdade de exprimirem opiniões divergentes e de atuarem em conformidade com tais opiniões; aceitação.

Ora esta última definição faz menção a um outro direito que, sem dúvida, está intimamente ligado à Tolerância, que é a Liberdade. Achei, por isso, que seria igualmente interessante olhar para a definição de liberdade, neste contexto, tendo selecionado os seguintes significados:

direito que qualquer cidadão tem de agir sem coerção ou impedimento, segundo a sua vontade, desde que dentro dos limites da lei;

- capacidade própria do ser humano de escolher de forma autónoma, segundo motivos definidos pela sua consciência; ou ainda,

- garantia que todos os cidadãos têm de não serem impedidos do exercício dos seus direitos, exceto nos casos determinados pela lei.

E é aqui que as coisas se tornam mais complicadas, pois se por um lado qualquer pessoa tem o direito e a liberdade de manifestar a sua forma diferente de estar perante os outros e perante a sociedade, não é menos verdade que quem fica perante essa manifestação de diferença pode igualmente ver a sua liberdade invadida e diminuída se essa manifestação de diferença de alguma forma o perturbar.

Dando exemplos concretos. Se eu me sentir impressionado por ver alguém profusamente coberto de piercings no rosto e com um alfinete de ama de grandes dimensões espetado na bochecha, vou ter uma atitude de afastamento e de eventual repulsa perante essa pessoa, porque fico impressionado, arrepiado, o que lhe quiserem chamar. E agora? Estou a ser intolerante perante uma pessoa que gosta de marcar a diferença mutilando-se, ou tenho a liberdade de me sentir incomodado e impressionado com isso, podendo chegar a manifestar-lhe esse sentimento? É que se o fizer essa pessoa vai dizer que sou intolerante, entre outras coisas.

Um outro exemplo diferente que aconteceu realmente comigo: há uns anos atrás estava à espera de ser atendido numa loja do cidadão quando vejo um indivíduo entrar com uma t-shirt que tinha escrito “Jesus is a cunt”. É claro que me senti profundamente incomodado com aquela frase e interpelei o indivíduo em causa. Onde se aplica a tolerância aqui?

A questão crucial é: teremos nós de aceitar todas as diferenças e afirmações que cada um quiser assumir (de aspeto, de sexualidade, de vestimenta, de abuso de substâncias) só porque a sociedade nos obriga a ser tolerantes em nome do direito à diversidade? E o meu direito pessoal a querer ser diferente dessas pessoas? Não estaremos cada vez mais a caminho de uma ditadura das minorias, em que os governos decretam leis sem o mínimo de lógica, só para que esses grupos, normalmente barulhentos e persistentes na contestação, deixem de se manifestar e não causem perturbação na sociedade?

Mas vamos um pouco mais além e vejamos onde chega esse impingimento da diferença e, para muitos, do mau gosto e do ridículo. Vamos falar um pouco de Cultura.

Durante séculos vários artistas enriqueceram a sociedade ocidental com os seu trabalhos de beleza surpreendente, como a Mona Lisa de da Vinci, a Pietá de Michelangelo, a Ronda Noturna de Rembrandt, o Pensador de Rodin, obras que nos inspiraram, elevaram e nos terão levado até a alguma introspeção. E isto porque estes e outros artistas procuraram os mais altos níveis de excelência, melhorando os ensinamentos dos seus mestres e aspirando à mais alta qualidade possível para os seus trabalhos. E o resultado disso é que ainda hoje, tantos séculos após, ainda nos deslumbramos com alguns desses trabalhos.

Mas ao longo do século XX algo aconteceu. O profundo, o inspirador e o belo foram substituídos pelo novo, o diferente e o feio. Hoje, o ridículo, o sem sentido e o puramente ofensivo é tido como o melhor da arte moderna. Lembro-me, por exemplo de uma exposição subordinada ao tema “O Cu é Lindo” que esteve em exposição há uns anos no Centro Cultural de Belém, só para dar um exemplo. Michelangelo esculpiu a sua estátua de David a partir de uma única pedra. Em contrapartida o Museu de Arte Contemporânea de Los Angeles tem exposta uma pedra com 340 toneladas como sendo uma obra de arte. E não esqueçamos a Petra, do escultor alemão Marcel Walldorf que representa uma mulher polícia de choque agachada a urinar, com direito a poça de urina e tudo, que ganhou um prémio da Academia de Belas artes de Dresden em 2011. Estes são alguns exemplos de como os nossos padrões de exigência e qualidade baixaram. Mas como é que isto aconteceu? Como é que a busca milenar da perfeição artística e da excelência se perdeu?

Na verdade foi forçada a desaparecer. No final do século XIX um grupo denominado de Impressionistas rebelou-se contra a Academia Francesa de Belas Artes, que seguia os padrões clássicos. Qualquer que fosse a sua intenção, estes novos modernistas lançaram as sementes do relativismo estético: “A beleza está nos olhos de quem vê”. De acordo com esta corrente, na pintura as cores e tonalidades não devem ser obtidas pela mistura das tintas na paleta do pintor. É o observador que, ao admirar a pintura, combina as várias cores, obtendo o resultado final. A mistura deixa, portanto, de ser técnica para ser óptica. Na escultura a obra inacabada é o exemplo ideal do processo criativo do artista. Ora se alguns dos primeiros seguidores do impressionismo produziram trabalhos de grande beleza, como Monet, Degas ou Renoir, a cada nova geração os padrões de qualidade foram baixando até deixarem de existir.

Tudo o que restou foi a arte reduzida à expressão pessoal. O historiador de arte Jakob Rosenberg disse uma vez que “A qualidade na arte não é meramente uma questão de opinião pessoal, mas em grande parte analisável objetivamente”. Eu estou de acordo. Mas a ideia de um padrão universal na arte é atualmente muito contestado, quando não ridicularizada abertamente. Mas sem padrões estéticos não é possível determinar a qualidade ou a inferioridade.

Muitos dos artistas da atualidade apenas usam a sua “arte” para fazer declarações, frequentemente sem qualquer outra intenção a não ser chocar. Os artistas da antiguidade também faziam afirmações através do seus trabalhos, mas nunca à custa da excelência visual do seu trabalho. Mas não são os artistas os culpados por este estado de coisas. A culpa é sobretudo da chamada “Comunidade Artística”: os curadores de museus, proprietários de galerias e os críticos, que encorajam e financiam a criação deste lixo artístico. São eles os “reis nus” da arte, pois quem mais gastaria 10 milhões de dólares numa pedra de 340 toneladas e lhe chamaria arte?

E é aqui que voltamos de novo ao tema da tolerância. Porque é que temos de ser vítimas de todo este mau gosto? Não temos! Ao não frequentar estas exposições, ao não comprar ou promover estas obras estamos a expressar a nossa opinião, pois uma galeria de arte é um negócio como qualquer outro e a continuidade de um museu também assenta nas receitas que obtém dos seus visitantes. Se o produto não vender deixa de ser produzido. E também podemos fazer pressão para que as escolas ensinem padrões de qualidade visual que se perderam por terem sido abafados por este nova vaga de modernismo. No entanto esta minoria da “Comunidade Artística” tenta condicionar-nos e obrigar-nos a mudar os nossos gostos e os nossos padrões estéticos ao ponto de cairmos no ridículo por não apreciarmos uma peça de arte contemporânea que esteja na berra. Mais uma vez uma minoria está a condicionar a liberdade dos demais.

Mas não deixo de concordar que o Status Quo, ou o Establishment, podem também eles ser nefastos para a nossa perceção do que é certo, aceitável e defensável, versus o que devemos evitar ou condenar. E num vídeo recentemente partilhado no nosso grupo de whatsapp, retirado de um episódio de uma série da RTP, pude ver isso bastante bem explicado e demonstrado de uma forma inequívoca. Para quem não se lembre, a cena passava-se numa escola e o professor falava de três candidatos a uma eleição, perguntando aos alunos quem escolheriam:

- o primeiro candidato está parcialmente paralisado com poliomielite, tem hipertensão, anemia e uma série de outras doenças graves. Mas segue a sua ideologia e consulta astrólogos sobre a sua política. Engana a mulher, fuma muito e bebe demasiados martinis;

- o segundo tem peso a mais, já perdeu três eleições, sofre de depressão, teve dois enfartes, é irascível e fuma charutos sem parar. À noite quando regressa a casa bebe grandes quantidades de champanhe, conhaque, Porto e whisky, e toma dois comprimidos para dormir;

 - o terceiro é um herói de guerra muito condecorado, trata as mulheres com respeito, gosta de animais, nunca fumou e bebe uma cerveja em raras ocasiões.

Obviamente que todos os alunos votavam no terceiro candidato, não sabendo eles que estariam a rejeitar Franklin D. Roosevelt (o primeiro candidato) e Winston Churchill (o segundo), ambos estadistas marcantes, estando a colocar o seu voto em Hitler.

Sabemos que o mundo nunca é como esperamos, mas isso é algo que temos de aceitar. A veleidade que os humanos têm de que podem mudar o mundo não passa disso mesmo, uma boa intenção utópica, especialmente se a nossa forma de o fazer é chocando os outros e obrigando-os a aceitar tudo o que fazemos, pois estamos eventualmente a tirar-lhes também a sua liberdade de serem como são. Há uma frase feita que diz “Todos Iguais, Todos Diferentes”, mas o facto de sermos diferentes não implica que tentemos impor aos outros essas diferenças, que tentemos quebrar regras, em nome de uma suposta liberdade pessoal que todos devem ser obrigados a respeitar.

A ausência de luz produz as trevas, a ausência de calor causará o frio, sem o bem instalar-se-á o mal, sem amor grassará o ódio e sem regras passaremos a viver o caos.

Autor: António Egas Moniz

terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Fio de Prumo

Em mais este passo de caminhada para o Conhecimento, a tarefa que me foi atribuída foi a de vos trazer uma prancha sobre um dos Símbolos da Nossa Ordem.

A simbologia é de importância fundamental, estando presente em todos os rituais e objectos usados. Eles contêm um significado próprio e não imediato, que os torna representações de conceitos mais profundos e ricos. O estudo dos nossos símbolos é assim primordial para aceder aos conhecimentos ancestrais em que se assenta a Nossa Ordem e que nos guiam na caminhada em que procuramos rectificar a Pedra Bruta de que somos constituídos na almejada Pedra Cúbica.  

Devo dizer que a escolha foi imediata: o Fio de Prumo.

Razão: porque, ainda sem mais pesquisa nem entendimento simbólico, associava este símbolo ao conceito de verticalidade de carácter, que pretendo ser característica da minha forma de estar.

Dito isto, falhei redondamente nesta tarefa.

Com efeito, ao buscar mais conhecimento sobre este Símbolo e seus significados, percebi que não só ele só pode ser entendido na plenitude quando associado ao Nível, como, olhando mais atentamente, percebemos que ele é um elemento do próprio Nível, já que este Símbolo é composto de um Fio de Prumo e um Esquadro.

Assim, optei por alargar o traçado desta prancha, alcançando a descrição e o meu entendimento sobre cada um deles e o seu efeito combinado. Reconhecendo que qualquer deles são símbolos de um Grau que ainda não atingi, assumo que está limitada a minha capacidade para aceder à plenitude do entendimento sobre os mesmos, mas permitam-me que, não obstante estes constrangimentos, me lance a esta obra, a qual irei maturar e evoluir à medida que aceda a mais e melhor conhecimento sobre cada um destes símbolos.

Começando então com o Fio de Prumo, é provavelmente o mais singelo dos instrumentos de um Maçon. Bastará atar um qualquer objecto pesado que sirva de pêndulo na ponta de um cordel e a força da gravidade tratará de nos garantir a preciosa indicação da vertical, fundamental à construção de um edifício sólido. Menos óbvio, mas igualmente importante é o facto de o Fio de Prumo nos dar a projecção de um ponto do edifício ao plano horizontal, também isso fundamental para garantir um edifício justo e perfeito (referes-te ao Nosso plano interior?).

Do ponto de vista simbólico este símbolo da joia que adorna o 2º Vigilante representa a profundidade do conhecimento e sua verticalidade, bem como a relação como o Alto, nessa ligação entre a profundeza de onde emana a força gravítica, até à vastidão da Abóboda Celeste (conforme encontramos em A Simbólica Maçónica - Jules Boucher). É com a orientação do Fio de Prumo que poderemos descer à profundeza do nosso interior para nos descobrirmos, onde devemos buscar o aperfeiçoamento, para de seguida poder subir aos altos graus de conhecimento e espiritualidade.

Existe também uma conotação com verticalidade de carácter que se espera de um Maçon que, como disse atrás, foi a razão inicial para a escolha deste símbolo para esta prancha.

Olhando agora ao Nível, ele é constituído por algo que permita assentar em dois pontos de uma recta, com um fio de prumo a mostrar que ambos estão nivelados quando o mesmo encontra na em ângulo recto com a linha definida pelos pontos onde o nível está assente. 

Esta configuração permite aferir a horizontalidade dos pontos em que está assente, sendo de fundamental importância para o correcto alinhamento das superfícies durante a sua construção.

A representação varia consoante a bibliografia, mas a que considero mais rica do ponto de vista simbólico é a que se faz através da conjugação do Esquadro de braços iguais e do Fio de Prumo. É, de resto, essa que podemos encontrar, por exemplo, na escadaria do nosso Palácio Maçónico ou na joia que adorna o 1º Vigilante. 

Do ponto de vista simbólico, ele representa a Igualdade, não do que somos, pois existe sempre o espaço à individualidade, mas dos direitos e responsabilidades que temos enquanto seres humanos e Maçons (Plantageneta citado por Jules Boucher em A Simbólica Maçónica).

É para mim interessante que seja este o símbolo da joia que adorna o 1º Vigilante. 

Existe uma corrente, expressa pelo autor já citado, que defende que, pelo facto de conter ele próprio um Fio de Prumo, o Nível é um instrumento mais completo, logo mais adequado a adornar o único em Loja que pode substituir o V∴ M∴ na ausência deste.  

Ainda que sem ter encontrado referências, depreendo que, por ser uma combinação das joias que adornam 2º Vigilante (o Fio de Prumo) e o Venerável (Esquadro), ele representa a síntese une as três principais luzes da Loja  num contínuo.  

Interrogo-me também se a escolha do símbolo da igualdade não estará ligada ao exemplo a passar aos Companheiros que o 1º Vigilante acompanha, os quais, estando a avançar no seu caminho de conhecimento, não podem deixar de vista a humildade de lembrar que, na base somos todos iguais e todos os Homens merecem o mesmo respeito, independentemente do caminho que seguem e das oportunidades que têm.

Analisados que estão estes dois símbolos individualmente, queria olhar para eles de forma combinada. 

A vertical e horizontal, associadas a cada um destes símbolos, são exemplos das polaridades universais que, sendo opostas, interagem entre si e se complementam. 

Assim acontece com os símbolos que as representam; juntando os dois, vemos que é formada uma Cruz, a qual carrega todo um simbolismo que irá para além daquilo que me proponho traçar nesta prancha. É no entanto um símbolo que transmite a noção de equilíbrio, conjugando os conceitos de igualdade e verticalidade num todo que representa o Homem.

Tratando-se dos Símbolos que adornam ambos os Vigilantes, principais auxiliares do Venerável na condução da Loja, a correlação de ambos é também expectável. Ambos trabalham em conjunto pelas mesmas causas olhando por colunas ortogonais entre si, e assim complementando-se, um representado pelo Vertical (Activo) e outro pelo horizontal (Passivo), também aqui com a representação das polaridades opostas. 

Por fim, e uma vez que o Esquadro aparece como elemento constitutivo do Nível, quero debruçar esta análise sobre este símbolo que adorna o Venerável Mestre, completando assim a tríade que dirige os trabalhos da Loja. 

Composto por dois segmentos de recta formando um ângulo de 90º, o Esquadro é, segundo Ragon, o instrumento que permite tornar os corpos quadrados. 

Ele representa Matéria (daí ser um símbolo passivo) e a acção do Homem sobre a mesma para a rectificar, com um directo paralelo para a acção do Homem sobre si mesmo com o objectivo de caminhar no sentido de se tornar justo e perfeito.

Esta joia é a que adorna o Venerável Mestre, pois representa a missão deste ajudar os maçons da loja na busca da melhoria no caminho nunca alcançado da perfeição, pelo que é necessário a rectidão providenciada pelo Esquadro para permitir desbastar a Pedra Bruta para a transformar em Pedra Cúbica. 

Nesta joia os braços do esquadro não são iguais, antes têm uma relação de três por quatro, que alude directamente ao Triângulo Pitagórico, ficando o lado mais comprido para o lado direito para simbolizar a predominância do activo (lado direito) sobre o passivo (lado esquerdo).

É igualmente interessante observar que com dois esquadros podemos formar uma Cruz ou um Quadrado, mas estes são temas que, como atrás mencionado, não irei aprofundar nesta prancha

Certo de que não terei trazido nada de fundamentalmente novo, ficarei satisfeito se este traçado tiver servido para reavivar nos Vossos espíritos a riqueza deste símbolos.  É com a utilização combinada deles que se consegue erguer um templo mais alto, belo e sólido, capaz de enfrentar os abalos do mundo exterior. E se assim é na representação do que é a nossa Loja, também o é, necessariamente, no nosso Templo Interior. 

Autor: Damião de Goes