terça-feira, 2 de abril de 2019

Tradição e Progresso: uma visão dualista

Na Generalidade das Constituições Maçónicas, defin
e-se a Maçonaria como uma Ordem universal, filosófica e progressiva, fundada na Tradição Iniciática, obedecendo aos princípios da Fraternidade e da Tolerância.
O ponto principal deste trabalho é a dialéctica dualista entre Tradição e Progresso, tanto no contexto maçónico como no contexto profano da Civilização e da Humanida
de. Serão estes dois conceitos antagónicos? Poderão coexistir pacificamente? Ou podem ser complementares? É possível haver um equilíbrio entre os dois?
Entende-se Equilíbrio na percepção grega do termo, traduzido na necessidade da existência simultânea do Bem e do Mal: um não tem sentido existir sem o outro, ou melhor dizendo, um só existe porque o outro também existe. 
No que respeita à Tradição, ou à base das tradições maçónicas com as suas histórias e lendas, existem alguns termos que são conhecidos e utilizados correntemente, cujo significado preciso não está inteiramente consolidado. Refiro-me às “Charges” e às “Landmarks”. Adaptando de um texto de Daniel Doron (33º), temos:
Old Charges - É o nome dado a um conjunto de 131 documentos antigos, entre os quais se inclui o manuscrito “Regius” de 1390, considerado o mais antigo documento maçónico conhecido. O termo “charges” pode ser traduzido por deveres ou responsabilidades. Assim, este conjunto de documentos estabelece os deveres dos maçons, nesta altura ainda operativos, deveres esses relacionados com o ofício de construtores e pedreiros e sua regulamentação, organizados em guildas. Fazem parte deste conjunto, os documentos relacionados com a Lenda de York.
Ancient Charges & Regulations - Estas não estão relacionadas com as “Old Charges”, são apenas um conjunto de 15 regras constantes nas primeiras páginas da Constituições da Grande Loja Unida de Inglaterra que todos os seus membros devem prometer cumprir antes de ser eleito Venerável Mestre.
Landmarks - Pode ser traduzido por marcos, são princípios básicos da Maçonaria, semelhantes aos axiomas da Matemática. Como o próprio nome indica, vem de marco geográfico, são os limites daquilo que é considerado dentro ou fora da Maçonaria. A sua origem pode ser atribuída ao Antigo Testamento em Provérbios 22-28_. Transcrevendo uma passagem das Constituições de Anderson: “Toda a Grande Loja (entenda-se assembleia da Grande Loja) anual tem o inerente Poder e Autoridade para fazer nova Regulamentação_, ou para alterá-los, para o real benefício desta antiga Fraternidade, desde que as “Old Landmarks” sejam sempre preservadas”. Note-se que não é dada um definição do termo.

Na Maçonaria uma definição de “Landmark” não é consensual, havendo inúmeros trabalhos dedicados ao tema. Por exemplo, temos a obrigatoriedade da crença no Grande Arquitecto do Universo e a presença de um Livro Sagrado aberto no altar, que são considerados “Landmarks”. Não se encontram nem nas “Old Charges” nem nas “Ancient Charges & Regulations”. Por outro lado, o reconhecimento dos três graus da Maçonaria Simbólica já fazem parte destas últimas. Alguns são da opinião que apenas os sinais, toques e palavras constituem “Landmarks”, enquanto outros incluem também as alfaias litúrgicas. A pessoa que fez a primeira tentativa de elaborar uma lista foi Albert Mackey, com os seus 25 “Landmarks” publicados na sua obra “A Fundação da Lei Maçónica” em 1858. Outras listas de “Landmarks” têm sido posteriormente publicadas. Segundo William Preston, as “Landmarks” estabelecem limites de modo a que as inovações decorrentes da evolução dos tempos possam ser aceites, ou recusadas na Maçonaria.
Está aqui patente a eterna luta entre Tradição e Progresso. Tendo as “Landmarks” um papel tão importante de fiel da balança entre estes dois conceitos opostos, mas não antagónicos, devem possuir determinadas qualidades para que possam desempenhar a sua função. A saber:
- existir desde tempos imemoriais, quer sob forma escrita ou oral;
- expressar a forma e a essência da Maçonaria;
- ser acordado que não pode ser alterada.
Se as duas primeiras qualidades não suscitam grandes dúvidas, já a terceira pode ser questionada, em cada época, especialmente no que diz respeito entre quem é acordado que uma “Landmark” não pode ser alterada. As “Landmarks” são assim os instrumentos através dos quais a Tradição pode ser abolida ou alterada, contribuindo para o Progresso.

A propósito da Lenda de York, descrita em vários manuscritos ao longo dos tempos, nomeadamente no manuscrito “Regius” ou “Halliwell” de 1390, manuscrito “Cooke” de 1490, manuscrito “Lansdowne” de 1560 e nas Constituições de Anderson (1ª edição em 1723, 2ª edição em 1738). Trata-se de uma lenda à cerca da formação de uma suposta Grande Loja Maçónica em York em 926 ou 930, durante o reinado de Athelstan, cujo grão-mestre seria o seu irmão príncipe Edwin, e que reunia todos os maçons do reino. Na sua assembleia redigiram-se as primeiras constituições maçónicas a partir da documentação antiga existente à altura, e tinha ainda a responsabilidade de se reunir anualmente para debater, preservar as tradições e a sua evolução ao longo dos tempos; no fundo, as questões relacionadas com Tradição e Progresso. Existem outras lendas ainda mais antigas que atribuem a criação de uma organização maçónica semelhante no século VII, no reino da Northumbria, mas sem grande suporte documental. 
A corrente anglo-saxónica da Maçonaria, de tendência teísta, defende o primado da Tradição, com a defesa cerrada das “Old Landmarks”, fortemente influenciadas pelo pensamento cristão; por contraste, a corrente continental, de tendência deísta, defende o primado do Progresso. Estas duas correntes tiveram uma cisão em 1877, depois do Congresso de Lausanne em Setembro de 1875, do qual surgiu um conceito mais abrangente do Grande Arquitecto do Universo, visto mais como um Princípio Criador do que um Ente Supremo. Uma análise mais aprofundada da questão leva a razões de outra natureza, nomeadamente política, para a existência deste cisma que perdura até aos nossos dias.

Na minha opinião, sendo as “Old Landmarks”, resultado de trabalho humano, filosófico e reflexivo numa ou em várias épocas, necessariamente podem conter imperfeições; à semelhança do conceito maçónico de que o trabalho de desbastar a pedra bruta nunca está concluído, estas também não deverão ser consideradas eternamente imutáveis. As “Old Landmarks” devem-se adaptar no tempo e no espaço em que são aplicadas. Este trabalho de adaptação deve ser progressivo e evolutivo de modo a poder continuar a desempenhar o papel para o qual eles foram criados, o de definir aquilo que é considerado Maçonaria. No entanto podem existir conceitos de tal modo universais que transcendem o tempo e o espaço, que podem ser considerados “Landmarks” inalteráveis como por exemplo a defesa da Vida Humana.
Por isso, a Tradição deve ser sempre respeitada de um ponto de vista histórico ou cultural, mas sua aplicação, numa determinada época, deve ser feita apenas se essa mesma Tradição fizer sentido às pessoas que vivem nesse Tempo. Se tal não acontecer, o Progresso deve alterar e adaptar a Tradição de acordo com o pensamento vigente. Este princípio de coexistência entre Tradição e Progresso, deve ser sempre aplicado não só no Mundo Maçónico mas também no Mundo Profano, contribuindo assim para o melhoramento da Humanidade, o objectivo último da Maçonaria.

Autor: Imhotep

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